Legislação Penal

Sociedade civil critica urgência para votação do pacote "anticrime"

Aprovado na ultima quarta (30) por um grupo de trabalho na Câmara, texto segue para disputa em plenário

Brasil de Fato | Brasília (DF) |

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De autoria de Moro, pacote se divide em três projetos de lei que tramitam na Câmara; outros três tramitam no Senado
De autoria de Moro, pacote se divide em três projetos de lei que tramitam na Câmara; outros três tramitam no Senado - Lula Marques/PT na Câmara

Integrantes da sociedade civil e da oposição ao governo Bolsonaro (PSL) questionam a possibilidade de votação de urgência para o texto produzido pelo grupo de trabalho (GT) que analisou, na Câmara dos Deputados, mudanças na legislação penal e processual penal. O material inclui trechos do Projeto de Lei (PL) 882/2019, uma das propostas do chamado pacote "anticrime", do ministro Sérgio Moro, e dos PLs 10.372 e 10.373, de autoria do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes.

Uma articulação de parte dos deputados da Casa atua para aprovar o regime de urgência para o texto ainda esta semana. Produzido na ultima quarta-feira (30), com o encerramento dos trabalhos do grupo, o documento final do GT é um texto alternativo ao parecer do relator, deputado Capitão Augusto (PL-SP).

"Não gosto muito do regime de urgência pra legislação penal, porque parece que ela sempre é regime de urgência. Aí vem uma medida muito impactante, e às vezes isso não tem dado resultado. Acho que esses projetos não mereciam urgência. Devem ter a tramitação ordinária, clássica, com a devida ponderação, porque aí cada vez mais se amadurecem as questões", argumenta o defensor público Pedro Carriello, do Rio de Janeiro , membro da campanha “Pacote Anticrime: uma solução fake”, formada por diferentes entidades e especialistas.   

Nos bastidores, deputados avaliam como inevitável a aprovação de urgência para a matéria, que tem o apoio da bancada da bala e de outros parlamentares. Com uma configuração de forças favorável à medida, a tendência é que ela dispute os holofotes, nos próximos dias, com as demais pautas que incendeiam o jogo político, como é o caso dos desdobramentos do caso Marielle.

Durante os sete meses de debate no GT, a matéria esteve cercada de polêmicas, o que fez com que o prazo inicial de 90 dias do grupo fosse prorrogado mais de uma vez. No rol das controvérsias, figuraram críticas a diferentes medidas propostas por Moro.

Entre elas, tiveram destaque a legalização da prisão após condenação em segunda instância e o excludente de ilicitude, que liberava de punição policiais que matassem em serviço quando estivessem sob o que o projeto do ministro classifica como “medo, surpresa ou violenta emoção”. Esses dois pontos estão entre os trechos que foram rejeitados pelo colegiado.

“Acho que a proposta original do Moro sai transformada para melhor no que diz respeito à perspectiva da sociedade”, avalia o deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ), um dos três parlamentares de oposição que compunham o GT.

Também foram aprovadas novas normas para os acordos de colaboração premiada que se dão no âmbito da Lei das Organizações Criminosas, com ênfase para o fato de que as delações deverão ser usadas apenas como instrumentos para obtenção de provas, não devendo ser utilizadas como prova única para incriminar alguém. O instrumento é um dos mais alvejados entre os utilizados pela operação Lava Jato, que dividiu o país entre defesas de caráter punitivista ou garantista.

"A natureza do pacote era autoritária, com inúmeras medidas inconstitucionais. Então, a primeira coisa que nós evitamos foi deixar prosperar um pacote autoritário e inconstitucional", considera o deputado Paulo Teixeira (PT-SP), também do colegiado.    

A oposição comemora ainda a retirada de outros pontos que estavam em discussão no colegiado, como o chamado plea bargain, instituto do direito estadunidense que prevê penas mais brandas para réus confessos em troca de estes não serem submetidos a um processo judicial. A proposta de instituição da modalidade – que trata de um acordo entre acusado, juiz e Ministério Público –, no entanto, não foi engavetada. Ela deverá ser avaliada agora por outro colegiado, a comissão que estuda mudanças no Código de Processo Penal (CPP).  

O GT também incorporou ao relatório mais de dez medidas que não constavam nas propostas de Moro e Alexandre de Moraes. Uma delas é a criação do chamado “juiz de garantias”, que consiste na existência de um magistrado para atuar exclusivamente na fase pré-processual. Segundo a proposta, ele deve encerrar sua participação no processo quando for proposta a ação penal, fase a partir da qual a competência passa a ser do juiz natural. A ideia é evitar pré-julgamentos e eventuais contaminações que possam prejudicar o réu.

“O juiz do inquérito tem que tomar algumas medidas, como quebra de sigilo, busca e apreensão, e de repente ele acaba sendo contaminado por essas provas, então, ele não pode ser o mesmo juiz do processo, de quando é oferecida a denúncia. Isso me parece um avanço significativo no sistema brasileiro de hoje”, avalia Pedro Carriello.

Críticas

O relatório que recebeu aval do GT também é alvo de críticas. Uma delas trata do aumento do tempo máximo de cumprimento de pena, que passa de 30 para 40 anos. Pedro Carriello classifica a alteração como um “retrocesso” porque favorece a lógica do encarceramento – tema em que o Brasil é destaque mundial, com cerca de 812 mil presos, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de julho deste ano.

“É uma perda. Mais uma vez, a gente cai um pouco na velha ideia de que, prendendo mais e por mais tempo, combate-se o crime. Isso é um dado que a própria ciência já evidenciou que não traz resultado no combate à violência”, afirma Carriello.

Outra crítica ao projeto diz respeito à criação de um banco de perfil genético para fichar informações de pessoas que passam pelo sistema de Justiça criminal. A assessora do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) em Brasília, Raíssa Belintani, pontua que a medida pode ajudar a endossar o preconceito social que atinge ex-detentos.

“É muito perigoso mapear pessoas dessa forma. A gente já sabe que quem passa pelo sistema criminal, especialmente pelo carcerário, já tem um estigma que não passa depois, que marca a vida pra sempre, que dificulta a reinclusão no mercado de trabalho, a retirada de novos documentos, etc. Vários direitos já ficam afetados. A partir do momento em que você faz um registro genético de que essa pessoa passou por ali, você está formalizando essa estigmatização. Isso é muito sério”, critica, acrescentando que o Estado não teria também condições estruturais de efetivar a medida.    

O defensor público Pedro Carriello observa que a mudança pode vir a ser alvo de questionamento no STF. Ele pontua que a Lei 12.654, vigente no país, sujeita a uma identificação genética somente os condenados por crimes dolosos de natureza grave contra pessoa ou por crimes hediondos, como homicídio qualificado e estupro.

A norma atual não especifica se a regra deve ser aplicada exclusivamente para processos com trânsito em julgado, o que faz com que seja utilizada em casos de condenados após a primeira ou segunda instância. Por conta disso, a lei é hoje alvo de disputa no STF, em meio às intensas controvérsias que cercam o tema da presunção de inocência. A norma aprovada pelo GT, proposta pelo ministro da Justiça, endurece a aplicação, prevendo expressamente que a medida possa ser aplicada antes do trânsito em julgado.

“O Moro colocou isso no crime doloso, sem exigir nem violência grave, ou seja, até um furto, que é um crime sem violência, pode ser enquadrado, ou casos de estelionato e batida de trânsito com danos. Eu acredito que essa matéria vai desaguar no Supremo porque até mesmo a legislação atual, que não é tão rígida quanto a proposta por ele, já está em questionamento”, projeta Carriello.

 

 

Edição: Daniel Giovanaz