América Latina

Golpistas ganham terreno na Bolívia, e Evo Morales alerta para "democracia em risco"

Violência se intensificou nas últimas duas semanas; opositor Carlos Mesa não aceita a reeleição do atual presidente

Caracas (Venezuela) |
Atos violentos avançam sobre La Paz exigindo a renúncia do presidente Evo Morales
Atos violentos avançam sobre La Paz exigindo a renúncia do presidente Evo Morales - Agência Boliviana de Informação

Após os protestos massivos no Equador, no Chile e no Haiti, mais um país sul-americano mergulha em uma crise política e tem as ruas tomadas por manifestantes: a Bolívia. As motivações, no entanto, são completamente distintas. Depois de não reconhecer a legitimidade das eleições e da vitória de Evo Morales e Álvaro García Linera -- reeleitos com 2,8 milhões de votos e mais de dez pontos percentuais de diferença em relação ao segundo colocado, Carlos Mesa, no pleito de 20 de outubro --, organizações políticas passaram a organizar atos violentos em várias partes do país e tentam impor sua vontade sobre a da maioria da população.

O setor mais radical da oposição queria forçar a realização de um segundo turno e agora pede a renúncia de Morales, utilizando o vandalismo como forma de pressão. Outro setor, mais moderado, exigia uma nova auditoria dos resultados. Esta decisão foi acatada pelo presidente, que convidou a Organização dos Estados Americanos (OEA), Paraguai, México, Espanha e as Nações Unidas para acompanhar o processo de revisão -- que começou no dia 31 de outubro e terminará na próxima quarta-feira (13).

 “Se alguém está seguro de que houve fraude, estaria feliz por levar todas estas provas a organismos internacionais. Como não têm nenhuma prova, passam agora de afirmar fraude para realizar um golpe”, denunciou Morales.

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Sob o discurso de que "Deus deve voltar a ocupar o Palácio de Governo", Luis Fernando Camacho, presidente de uma organização conhecida como "Comitê Cívico de Santa Cruz", na região oriental do país, lidera os protestos mais violentos. Para esta segunda-feira (11), ele promete uma marcha até o Palácio Quemado, antiga sede do governo, no centro de La Paz.

“Vamos numa ação única, total, definitiva e contundente. Não vamos sair sem ter o fruto que buscamos”, declarou o advogado opositor ao anunciar que chegará a La Paz com a carta de renúncia que redigiu para o chefe de Estado.

 

Grupos de policiais dos departamentos de Cochabamba e Santa Cruz se declararam em motim na noite de sexta-feira (8), o que dá a entender uma fissura nas forças de segurança do Estado.

Frente a isso, o gabinete da Presidência emitiu um comunicado na quinta-feira (7) e outro neste sábado (9), denunciando uma tentativa de golpe de Estado organizada por Camacho e Mesa. “Impulsionam a queima de instituições eleitorais, perseguem indígenas, camponeses, trabalhadores ou pessoas que tenham alguma afinidade política com o partido do governo. Convocam as Forças Armadas a não reconhecer o governo constitucional”, disse o governo.

 

 

Neste sábado (9), com a Praça Murillo cercada, Morales voltou a afirmar que a democracia está em risco, e convocou uma reunião imediata com setores de oposição dispostos a conversar. A ideia é instalar uma mesa de diálogos, em que os dois lados possam ceder, com o objetivo de assegurar a paz e o Estado de Direito.

Desde a primeira eleição de Morales, em 2005, o país passou por uma transformação política e econômica. Graças à nacionalização dos hidrocarbonetos, o país mantém uma média de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) acima dos 4%, e a pobreza extrema caiu de 38,2% para 15,2% nos últimos 14 anos.

Violência generalizada

Um morto e 89 feridos foi o saldo de um dia de violência promovida por setores da oposição boliviana na região de Cochabamba. Além disso, a prefeita do município de Vinto, Maria Patrícia Arce Guzmán, do partido governante Movimento Ao Socialismo (MAS-IPSP), foi agredida e escrachada em praça pública depois que os opositores queimaram a prefeitura, na última quarta-feira (6).

Maria Patrícia Arce Guzmán denunciou que sofreu ameaças de morte durante o escracho público no centro do município de Vinto. (Foto: Divulgação)

Além de obrigá-la a caminhar por 7km, descalça, cortar seu cabelo e ameaçá-la de morte, os manifestantes lançaram tinta vermelha sobre seu corpo. Analistas bolivianos e setores do governo dizem que o ato demonstra que a violência tem como pano de fundo ideológico o combate às esquerdas.

“Isso nunca aconteceu durante a democracia. Isso é fascismo. O que a Bolívia está enfrentando hoje é uma onda fascista. Vejam o que fazem sem ser governo. O que seria da Bolívia se fossem governo?”, afirmou o vice-presidente Álvaro Garcia Linera, durante coletiva de imprensa na quinta-feira (7).

A crise foi gestada antes mesmo da apuração dos votos. Durante a campanha, os candidatos Carlos Mesa, ex-presidente e membro do partido Comunidad Ciudadana, e Oscar Ortiz, do grupo Bolivia Dice No, já incitavam a população à desobediência civil e garantiam que não reconheceriam o resultado, caso o MAS-IPSP fosse vencedor em primeiro turno.

Apesar de manter uma retórica de defesa dos resultados da auditoria, em suas declarações, Mesa também tem apoiado os atos violentos.

Limbert Guzmán Vásquez , jovem de 20 anos, foi morto durante os protestos da última quarta-feira (6), na ponte Huayculi, município de Quillacollo, região de Cochabamba. Contratado por partidários da Comunidad Ciudadana há uma semana, o jovem de origem indígena, que sonhava ser engenheiro civil, faleceu depois de sofrer duas paradas cardíacas e de ser diagnosticado com paralisia cerebral.

O Ministério Público investiga o caso. Segundo denúncias, Guzmán poderia ter falecido depois de ser agredido nos confrontos da tarde de quarta-feira ou atingido por fogos de artifício.

Em confrontos na cidade de Montero, estado de Santa Cruz, na semana passada, outras duas pessoas faleceram. Marcelo Salvatierra Salvatierra, de 55 anos, teria sido morto depois de receber dois disparos de arma de fogo, assim como Marcelo Terrazas Seleme, de 41 anos, membro da União da Juventud Cruceñista, morto depois de sofrer um disparo.

Governo e oposição se acusam mutuamente pela responsabilidade das vítimas. As investigações seguem inconclusas.

A violência também chegou à La Paz. Há pelo menos três dias, manifestantes tentam tomar a Praça Murillo, onde está a sede do governo. O cordão de defesa é feito pela polícia junto a centenas de trabalhadores que condenam a ação opositora.

Camacho tentou desembarcar na capital, mas foi impedido por uma multidão de apoiadores do governo e do MAS-IPSP quando chegou ao aeroporto da cidade de El Alto, na terça-feira (5). Os manifestantes condenam a tentativa de deslegitimação do resultado eleitoral e, desde 21 de outubro, realizam marchas para exigir a paz e o respeito ao voto.

“A história política da Bolívia tem muitas revoltas, mas o que estamos vivendo hoje se caracteriza como uma organização por parte de grupos dos mais reacionários. É a primeira vez que se fala da religião, de Deus, da volta de Deus ao palácio, e se identifica com muita sanha aos militantes do MAS”, confirma o analista político boliviano Juan Luis Gutierrez.

Dois países, um mesmo roteiro

A Bolívia vive uma situação similar ao que a Venezuela enfrentou durante 2019. Assim como o venezuelano Juan Guaidó, Camacho se autodeclara líder da oposição: não disputou as eleições e, logo em seguida, passou a desconhecer o resultado, exigindo a renúncia de Morales e García Linera.

Também como Guaidó, Camacho buscou apoio internacional na sua tentativa de deslegitimar as eleições, porém abandonou a OEA depois de recusar a auditoria do processo e partir para a exigência da renúncia imediata de Morales.

Camacho também é um líder político jovem, que busca se desvincular de Carlos Mesa e outros nomes que concorreram às eleições. Com fenótipo branco, o presidente do comitê cívico de Santa Cruz utiliza um discurso racista e religioso para criar uma base social com valores opostos aos que representa o governo atual -- composto por movimentos indígenas, sindicalistas, mineiros, cocaleiros e camponeses em geral.

O opositor é contrário à determinação da Bolívia como um Estado Plurinacional, que reconhece as diferentes nacionalidades indígenas -- mais de 62% da população -- e admite 36 línguas originárias como idiomas oficiais do país.

Camacho é natural de Santa Cruz, estado que faz parte da chamada Meia Lua (Media Luna), região de maioria branca, rica em hidrocarbonetos, como o gás natural, e com forte presença do agronegócio, onde foram registrados conflitos separatistas em 2008. Ela abrange os estados de Tarija, Chuquisaca, Santa Cruz, Beni e Pando, no oriente boliviano, região de fronteira com Brasil.  

Um referendo revogatório no dia 10 de agosto de 2008 previa validar ou não a eleição de Evo Morales e Alvaro Garcia Linera como presidente e vice. Com 67,43% dos votos a favor, Morales e Linera foram ratificados no poder, assim como os governantes de Chuquisaca, Oruro, Potosí, Tarija, Santa Cruz, Pando e Beni. No entanto, os governos de La Paz e Cochabamba, ocupados por membros da oposição, foram alterados.

Apesar da derrota, desde então, por meio de "comitês cívicos", a oposição tenta criar um clima de disputa civil entre a região da planície oriental, de maioria branca, e o planalto ocidental andino, de maioria indígena.

“Camacho aposta muito na frustração das elites bolivianas em relação ao tema religioso. Essa dicotomia entre a nova Casa do Povo e o antigo Palácio de Governo; entre o Estado Plurinacional e a República. Ao que parece, é um discurso estudado há anos. Os atos em Santa Cruz são uma espécie de missa, com cantos litúrgicos, que culminam com a chegada de Camacho, que usa qualquer argumento para desprestigiar o governo. Tudo isso é transmitido ao vivo por alguns meios de comunicação, e não fazem o mesmo quando os camponeses fazem suas assembleias populares”, analisa Gutierrez.

Luiz Fernando Camacho (ao centro) em um dos atos convocados pelo comitê cívico de Santa Cruz. (Foto: Divulgação)

Os comitês cívicos foram criados em 1950, durante uma crise política que afetou o país e acabou com os governos municipais. Cada um dos nove comitês departamentais deveria representar os interesses dos cidadãos em relação ao governo central. No entanto, com o passar dos anos, esses grupos foram tomados por setores empresariais e oligarcas em distintos estados. Camacho que é presidente do comitê do departamento de Santa Cruz, é empresário e, assim como o deputado venezuelano Juan Guaidó, tem apoio de meios de comunicação dentro e fora do país e é acusado de atividades ilícitas.

O boliviano foi um dos denunciados no escândalo dos Panamá Papers, que revelou uma rede internacional de políticos que usavam empresas-laranja no Panamá para lavagem de dinheiro e evasão de impostos.

Tanto na Bolívia, como na Venezuela, a oposição segue os dez passos do manual “Da Ditadura à Democracia – Um Sistema Conceitual para a Libertação” de Gene Sharp, intelectual estadunidense que elaborou uma teoria de mudança de governo por meio de ações de rua violentas, que supostamente refletem um descontentamento popular e contam com apoio no exterior.

A primeira vez que o manual foi usado de maneira pública e bem sucedida foi na chamada “Primavera Árabe”, em 2013, que levou à destituição de governos progressistas no Oriente Médio.

“O uso de grupos juvenis de certos extratos médios e médios-altos caracterizam esse grupos de choque, que, se pode ver, estão preparados militarmente, com escudos, capacetes, morteiros e bazucas. Eles são divididos em grupos de ofensiva, retaguarda, primeiros socorros. Definitivamente, há uma série de elementos parecidos com o que aconteceu na Venezuela e na Nicarágua”, detalha Gutierrez.

O analista também denuncia a relação de ONGs, como Human Rights Watch, do empresário estadunidenses George Soros, com a organização dos protestos. Outra plataforma, Ríos de Pie, tem difundido materiais gráficos que auxiliam a formação de grupos violentos e a tomada de instituições públicas.

 

Planos golpistas

Áudios interceptados pelo governo mostram ligações telefônicas entre membros da oposição boliviana e parlamentares estadunidenses. Nas conversas, Manfred Reyes Villa, empresário, ex-oficial militar, presidente do Comitê Cívico de Cochabamba por nove gestões e ex-governador do mesmo estado, afirma que havia um compromisso dos senadores republicanos estadunidenses Marco Rubio, Bob Menéndez e Ted Cruz para promover sanções econômicas contra a Bolívia, caso Evo Morales permanecesse à frente do governo.

“Estes três nomes mencionados na nossa agenda são a chave que está tomando medidas para que os interesses do povo boliviano tenham a justiça do voto do dia 21 de fevereiro de 2016”, uma outra voz não-identificada em uma das ligações. Na referida data, os bolivianos realizaram outro referendo constitucional, que tinha como objetivo decidir se a disputa à reeleição poderia acontecer por tempo indefinido. Caso a população votasse pelo "sim", Evo Morales poderia disputar as últimas eleições de 2019. O resultado foi de 51% pelo "não".

Aquela foi considerada a primeira vitória da oposição depois de 11 anos. No entanto, mais tarde,  o Tribunal Supremo de Justiça invalidou a medida, afirmando que a disputa eleitoral era um direito humano, e ninguém deveria ser impedido de concorrer. Assim, Morales foi autorizado a disputar a reeleição para um quarto mandato.

"A insatisfação das pessoas já estava instalada, e isso não termina assim. É um processo que começa muito antes. O problema de decidir se Evo ou qualquer presidente pode ser reeleito quando vezes seja necessário foi um tema debatido na Assembleia Constituinte em 2008 e 2009, e foi um dos pontos que a oposição não queria ceder. Nesse momento, a Assembleia não conseguia avançar, porque a oposição não aceitava esse artigo", relembra o analista boliviano.

A partir de então, a oposição prometeu lançar uma candidatura de unidade para derrotar o MAS-IPSP nas urnas. Porém, não houve acordo: uma parte decidiu concorrer às eleições, enquanto outra gestava a atual tentativa de golpe de Estado.

As autoridades bolivianas também encontraram documentos que confirmam um plano golpista em três etapas. A primeira, já executada, seria a organização de uma rede de contas falsas em redes sociais para difusão de fake news e apoio aos chamados dos comitês cívicos. A segunda, chamada “intensiva”, buscaria provocar um estado de crise social no país com distúrbios violentos de julho a outubro, convocados pelos comitês. A terceira seria a fase final do plano, prevendo a imposição de um governo paralelo depois das eleições -- que seriam consideradas fraudulentas em caso de vitória de Morales.

Nesse informe, está o nome de Juan Martín Delgado, presidente da União da Juventud Cruceñista, respaldado por Luis Fernando Camacho.

Camacho, assim como Guaidó, exige a realização de novas eleições. Ele estabelece o prazo de 15 de dezembro e já adiantou que Morales não poderá ser candidato.

Por outro lado, oito nações, além do Movimento de Países Não Alinhados (MNOAL) e da Aliança Bolivariana para os povos da Nossa América (ALBA), reconhecem a legitimidade do processo eleitoral boliviano.

O governo chama a população a restabelecer a paz e esperar pelo resultado de auditoria, que é vinculante -- ou seja, se define que houve fraude eleitoral, as eleições poderão ser anuladas. No entanto, os protestos se intensificam.

 "Não se sabe quem é o verdadeiro representante da população que está na oposição. Então, ao não ter um ator-chave, não há com quem dialogar. Carlos Mesa não se anima ea ser essa pessoa e Fernando Camacho, definitivamente, quer se distanciar da via institucional. Então, para retomar um caminho de pacificação na Bolívia é necessário, além das propostas do MAS, uma oposição clara, que queira jogar com regras limpas e reais. Sem esse tipo de oposição, é difícil estabelecer um diálogo”, finaliza Gutierrez.

Edição: Daniel Giovanaz