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Conheça a história do coletivo independente de teatro "Rubra"

Grupo trouxe a quadrinista britânica Una para um bate-papo sobre o seu livro

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Cena da peça "Una - Dedicado a todas as outras" por coletivo Rubra
Cena da peça "Una - Dedicado a todas as outras" por coletivo Rubra - Ana Benarcci
Grupo trouxe a quadrinista britânica Una para um bate-papo sobre o seu livro

Em meados de 2017, o diretor Felipe Vieira de Galisteo foi à livraria à procura de algo que o inspirasse para produzir uma peça. Foi quando esbarrou com o quadrinho “Desconstruindo Una”, da autora britânica Una, seu pseudônimo.

A lgraphic novel conta a história da autora, que aos 10 anos foi vítima do primeiro abuso sexual. Ao longo da adolescência, outros dois homens também cometeram crimes sexuais contra ela, e Una demorou muito tempo para falar sobre isso.

No livro, ela conta sua história em conjunto com um dos episódios mais terríveis da Inglaterra:  o estripador de Yorkshire, Peter Sutcliffe.

Nos anos 1970, ele tirou a vida de 13 mulheres e tentou assassinar outras sete. Na época, os investigadores e a polícia de Yorkshire chegou a conclusão que ele matava apenas prostitutas. Mas em 1997, as autoridades mudaram o discurso após o assassinato de uma jovem de 16 anos, classe média, em Leeds — cidade na qual Una nasceu e foi criada.

Felipe trabalhava como diretor de teatro em Oficinas Culturais do município de Mauá, região Metropolitana de São Paulo. Com uma turma de teatro avançado, ele viu uma oportunidade de transformar a HQ em peça, e criou “Una – Dedicado a todas as outras”.

O desafio estava justamente na adaptação do conteúdo do quadrinho, tão denso e alarmante, para o teatro. Ele e mais 13 artistas criaram a peça, sem incentivo algum da prefeitura, organizaram o Coletivo Rubra e, em outubro deste ano, trouxeram Una para o Brasil, para assistir ao espetáculo, como explica Felipe.

“O principal desafio que temos passado é como se estruturar de maneira independente, como saímos das oficinas culturais, pensar projetos numa cidade que tem tantas dificuldades, como Mauá, com tantas questões de ausência completa de políticas públicas de cultura e isso tudo somado ao fato de que todos trabalham com mil coisas, a maior parte das pessoas ainda estuda, estão fazendo curso técnico ou já faculdade”, comenta.

Além da dificuldade orçamentária, o coletivo ainda não tem um espaço físico para se reunir, ensaiar e apresentar a peça. Quando Una esteve no Brasil, a apresentação do espetáculo ocorreu em Rio Grande da Serra, cidade vizinha.

Além de Felipe, o grupo é composto por nove atrizes, dois atores, uma sonoplasta e uma técnica de projeção. Para Ana Bernacci, uma das atrizes, a peça de teatro veio, antes de abrir um debate sobre a violência sexual contra as mulheres, para fortalecer as artistas.

“E a gente sempre teve muito apoio umas das outras. Todas nós tivemos certas experiências difíceis, em relação ao que a gente aborda, mas o Una serviu muito mais para a gente conseguir deixar de se culpar por essas experiências, pra gente conseguir colocar nossa voz para fora, tendo passado por essas experiências, do que para nos enfraquecer. Eu me sinto muito mais forte do que eu me sentia antes”, conta.

Em inúmeras passagens do quadrinho de Una, ela destaca o peso da palavra “vadia” na vida de uma mulher. Para a adaptação da peça, há uma cena em que Ana divide o palco com Guilherme Maniezo, também ator, na qual mostra um espelho com a palavra “puta” escrita com batom vermelho. Em seguida, cada um dos atores vai para um lado do palco. Guilherme pega uma rosa e a destrói, ao passo que Ana senta no chão de pernas abertas e, entre elas, coloca uma árvore sem folhas.

“Aquela imagem, para mim, para todo o pessoal, remetia uma ideia de que de um lado do palco, enquanto ele (que estava representando a figura do estripador) tava amassando, esmagando uma flor, do outro lado nascia uma floresta. Então, não importa que os homens esmaguem as pequenas coisas, do outro lado a gente nasce muito mais forte”, explica Ana.

Para Mylene Vitória, também atriz, a montagem foi fundamental para seu reconhecimento enquanto mulher negra na sociedade. Em determinado momento da peça, ela apresenta dados sobre o feminicídio no Brasil.

“Percebi que as estatísticas são diferentes para mulheres brancas e para mulheres negras, porque o feminicídio negro no Brasil, por exemplo, tem uma porcentagem maior que o branco, que caiu nos últimos anos". Eu aprendi muitas coisas sobre o contexto que fala da minha vida e da vida das pessoas que estão ao redor de mim, mas aprendi muito a analisar a minha questão enquanto mulher, num contexto social e com recortes", afirma.

Mylene acredita que o cenário atual contribuiu para mudanças nos objetivos do coletivo. “Se você tivesse me feito essa mesma pergunta em 2017, eu acho que responderia ‘acho que vamos nos apresentar no Teatro Municipal de Mauá ano que vem’. Só que esse ano as coisas tomaram uma dimensão que acaba fugindo um pouco da nossa linha de raciocínio comum”, explica.

Com a vinda de Una para o Brasil, a proposta de discutir a violência sexual contra as mulheres aumentou ainda mais, conta Mylene. “Eu acredito que o futuro da peça está direcionado a continuar levantando esse tema, porque estamos passando por um período no nosso país, onde não temos uma perspectiva de investimento em cultura, uma perspectiva de investimento em mulheres, porque o nosso presidente não nos dá essa perspectiva. Então, eu acredito que a gente continua numa linha de luta mesmo. Muitas portas se abriram pra gente depois da vinda da Una aqui pro Brasil, isso é inegável”, afirma Mylene.

E foi assim que um coletivo independente de teatro, localizado em uma cidade 32 quilômetros distante da capital, conseguiu trazer uma autora internacional pela primeira vez ao Brasil, e fez 200 pessoas falarem sobre a violência de gênero. 

Edição: Michele Carvalho