Entrevista

Divaneide: A gente não quer mais estar nas senzalas, nem reproduzir senzalas modernas

Vereadora de Natal (RN) pelo PT, Divaneide Basílio, fala sobre direito à cidade, Plano Diretor e consciência negra

Brasil de Fato | Natal (RN) |
Divaneide é a primeira mulher negra a ocupar a Câmara Municipal de Natal
Divaneide é a primeira mulher negra a ocupar a Câmara Municipal de Natal - Vladimir Alexandre

Nascida em Pedro Avelino, no interior do RN, Divaneide Basílio veio para Natal aos quatro anos, junto aos seus pais, trabalhadores rurais. Ainda criança começou a atuar nos movimentos culturais e comunitários do conjunto Santa Catarina, na Zona Norte de Natal, onde sua família se instalou. Na capital se tornou Doutora em Ciências Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
No pleito municipal de 2016, ficou na suplência, assumindo mandato de vereadora de Natal em janeiro de 2019. Atualmente preside a comissão de Direitos Humanos, Proteção das Mulheres, Idosos, Trabalho e Minorias e é Vice-presidente da Comissão de Pessoas com deficiência e mobilidade reduzida. Divaneide é a primeira mulher negra a ocupar a Câmara Municipal de Natal e falou sobre o acompanhamento que seu mandato vem realizando no processo de revisão do Plano Diretor da cidade.
Brasil de Fato: A Prefeitura de Natal tem afirmado que esse processo de revisão do Plano Diretor é o mais participativo da história. Qual a sua avaliação sobre isso?
Divaneide Basílio:
Nós temos questionado esse processo de participação. Não subjugando as pessoas que estão participando, acho que as pessoas que estão participando têm muita qualidade, mas, são praticamente as mesmas pessoas em todas as oficinas. Então, você não tem o maior processo de participação. Você tem um processo, inclusive, que foi um pouco restrito. Tem oficinas que acontecem sexta e sábado pela manhã. Horários que dificultam a participação mais geral da população. Tem horários que equilibram. No nosso mandato, temos feito o “Pé na Comunidade”, que são rodas de conversa. Temos tentado fazer em horários alternados. Para nós, é muito importante que o processo realmente tenha participação. Quando a Prefeitura afirma que fez 14 oficinas, sabendo que as duas primeiras oficinas da Zona Norte quase não tiveram participação e que tiveram que repetir mais duas justamente por isso, então ela tem que entender que o ato de ter mais duas oficinas foi reparador, não propagar isso como se fosse um processo participativo. Isso é ruim porque não reconhece os limites. Temos alertado, o tempo todo sobre isso, porque é possível aperfeiçoar, ampliar... Além disso, o calendário também ficou muito apertado. Tem um processo de leitura da cidade, que poderia ter sido mais espaçado, mas acabou que foi muito apertado. Mas, estamos resistindo, fazendo com que a comunidade saiba que está acontecendo. Não é tarefa fácil debater o Plano Diretor. É preciso explicar, mostrar os impactos na vida, no cotidiano da população e da cidade.
Na sua opinião, o tema da verticalização da orla é a questão central do problema da moradia na capital potiguar?
Olha só que absurdo. Transformar a questão do direito à cidade, do viver na cidade, como se a verticalização fosse a única saída, ou como se o problema fosse a verticalização da orla. Na verdade, nós temos uma cidade que não tem infraestrutura adequada. Se você for à praia, vai ver que não tem banheiro, não tem acessibilidade, as linhas de transporte deixam a desejar... Na Zona Norte, não tem regularização fundiária em sua grande essência, que é um grande problema na cidade como um todo, assim como o saneamento. Então, não dá para a gente imaginar que vai construir prédios altos e em um passe de mágica resolver os problemas da cidade. A cidade tem capacidade para adensar dessa forma? Como fica a ventilação? A Zona Norte tem possibilidade de construção, mas não construíram até agora porque não tem infraestrutura adequada. Então, acho que a gente precisa dizer a verdade para as pessoas. Elas precisam saber o que está em jogo. Obviamente, a especulação imobiliária tem o seu desejo sobre isso e, infelizmente, a fala da Prefeitura aponta para esse caminho, quando o próprio prefeito Álvaro Dias veio aqui à casa dizer que uma pequena minoria deveria acatar o desejo de uma maioria. Mas que maioria é essa? É a maioria dos vereadores? Os vereadores já disseram que vão votar em um projeto de verticalização da orla? As pessoas nas oficinas não estão propondo isso, quem está propondo isso é um grupo de empresários. Na última oficina da Zona Norte eles propuseram mudança de gabarito. Isso é um símbolo de como agressivamente esse segmento tem expressado seu desejo de ampliar a verticalização. Construindo 20 andares em vez de 14 tem mais vantagem para o setor imobiliário, mas mais desvantagens para a cidade, que não tem infraestrutura para isso. E, não é isso o que está afastando as pessoas de Natal. Se verticalizar, vai ficar caro para as pessoas que moram na cidade, vai aumentar o custo de vida, as pessoas não vão ter condições de continuar na região, serão afastadas comunidades que tradicionalmente já vivem na orla da praia.
O que está em jogo para as Áreas Especiais de Interesse Social (AEIS)?
As AEIS são áreas conquistadas com muita luta, resultado de uma trajetória de disputa do direito à cidade. Quando uma área é de interesse social, é porque você quer proteger as pessoas que estão ali. São famílias que possuem uma renda média de até três salários mínimos. Se forem construídos prédios, não serão essas pessoas que poderão morar nesses prédios. As pessoas irão para áreas mais periféricas, saindo de espaços de proteção para outra condição qualquer. A área de proteção implica no valor de impostos, no valor da terra. Não podemos, com uma canetada, abrir mão de uma conquista que protege essas pessoas.
Foi aprovado um projeto para construção de um hospital em uma zona de conservação. Quais podem ser os impactos socioambientais disso?
Acho que nós temos que insistir para que o rito seja cumprido. O projeto foi apresentado aqui na Casa, nossas emendas foram descartadas, uma delas era para encontrar outro espaço para construção do hospital. Somos todos a favor de um novo hospital, mas é um grade risco que ele seja construído numa área de aquífero, de preservação ambiental. São esses os alertas que estamos fazendo. A cidade tem outros terrenos disponíveis.
Ainda discutindo sobre a cidade, a Prefeitura pediu interdição da zona do Hotel Reis Magos alertando risco de desabamento. A senhora acompanhou isso?
Sim, estou esperando o laudo que diga isso. Que eu saiba, não tem esse perigo. A Prefeitura fez esse alarde. O Fórum de Direito à Cidade promoveu um concurso público com alternativas feitas por vários estudantes para aquele hotel. Acho que temos que nos debruçar sobre alternativas viáveis, como angariar recursos para que se efetivem. Mas, na verdade, quando se fala em derrubar o hotel, também é um caminho aberto para construções. Além disso, também estamos falando da memória da cidade, do próprio desenho arquitetônico do Reis Magos. Obviamente ninguém quer que o hotel continue como está, mas também não estamos falando de escombros.
Neste mês, é comemorado o Dia da Consciência Negra. Como o racismo se manifesta no âmbito da cidade?
A maioria das pessoas negras estão nessas Áreas de Interesse Social, vivendo em comunidades periféricas, mais pobres. São as pessoas que menos ocupam os espaços de decisão. É muito ruim ser a única mulher negra na Câmara dos Vereadores de Natal. Não é orgulho dizer que sou a primeira a ocupar esse espaço, ou que sou a única, ao menos a primeira que me declarei. Se alguma outra se declarar vai ser ótimo, porque iremos ampliar a história. Desejo que tenhamos uma maior representação e que as pessoas que afirmem sua identidade defendam essas pautas. O racismo estrutural mata, não é só uma questão de autoestima, mas de dados que apontam para o subemprego, que a maioria são empregadas doméstica sem a regulamentação necessária, que não ocupam espaço de maior representatividade na sociedade. Isso tem a ver com uma herança histórica dessa formação do próprio estado brasileiro. A gente não quer mais estar nas senzalas, nem reproduzir senzalas modernas, queremos ocupar os espaços e para isso são necessárias políticas públicas. Não é fácil, diariamente temos que falar mais alto. Não podemos abrir mão da nossa identidade étnica. Já fizemos sessão de homenagem às religiões de matriz africana, porque é forma de dar visibilidade a esse povo, a esse lugar, a essa luta.
A vereadora tem participado de comissões voltadas para os direitos humanos. Qual balanço a senhora faz desse primeiro ano de mandato?
Eu estou presidindo a Comissão de Direitos Humanos e a gente fez essa opção das áreas de risco, das pessoas que estão mais vulneráveis. Também debatemos violência, mas nossa comissão é bem ampla: mulheres, trabalho, idosos e minorias. Então, fizemos um esforço para discutir todos os temas. Fizemos exercício de escuta das comunidades e trouxemos para o parlamento pontos a serem discutidos. Trouxemos, também, pautas de mulheres que não costumam ser debatidas, como mulheres acometidas por lúpus. Estamos trazendo as invisibilidades para o centro da discussão. O Pé nas Comunidades, também é uma ação que fizemos em Mãe Luíza, Jardim Progresso, Jardim Primavera... Ouvindo as comunidades, surgem as leis e a fiscalização ao executivo e a proposição de novas iniciativas.
 

Edição: Isadora Morena