Entrevista

Lula exalta "verdadeiros heróis" do país: "Precisamos recontar a história do Brasil"

Ex-presidente concedeu entrevista pela primeira vez desde que deixou a prisão, em 8 de novembro

Brasil de Fato | Brasília (DF) |

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Lula foi solto após decisão do STF contrária a prisão automática de condenados em 2ª instância
Lula foi solto após decisão do STF contrária a prisão automática de condenados em 2ª instância - Ricardo Stuckert

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva evocou nesta quarta-feira (20) a história dos "verdadeiros heróis brasileiros", que, segundo ele, "não estão nas fotos".

Ele concedeu entrevista exclusiva – pela primeira vez desde que deixou a prisão, em 8 de novembro - aos jornalistas Fernando Morais, Aline Piva e Ana Roxo, do blog Nocaute.

"Depois de ler muito sobre a escravidão, tenho a tese de que precisamos recontar a história do Brasil. Os verdadeiros heróis brasileiros não estão nas fotos. São anônimos. Porque foram decapitados, foram enforcados e não apareceram nas fotos", assinalou o petista.

Citando revoltas como a cabanagem e a resistência do quilombo dos Palmares liderada por Zumbi e Dandara, Lula ressaltou que a riqueza da história tem que ser contada aos jovens: "Essa molecada conhece mais história da revolução russa do que das lutas que foram feitas aqui no Brasil".

"Por isso se criou a máxima de que o Brasil não gosta de briga, gosta de um 'jeitinho'. Gosta de 'jeitinho' porque mataram os que gostavam de briga antes", asseverou. 

O ex-presidente reafirmou aos jornalistas seu espírito de rebeldia e disse que vai viajar o país para lutar pelo fortalecimento do Partido dos Trabalhadores (PT), das lutas sociais e da esquerda latino-americana.

Lula falou também sobre as manobras do Congresso contra a soltura após condenação em segunda instância, os próximos passos do PT, alianças com outros partidos progressistas, a crise política na América do Sul e as estratégias do governo Bolsonaro.

Veja os principais trechos da entrevista:

Às ruas

O petista afirmou que deve ir às ruas para reunir a esquerda, que, segundo ele, está com a moral baixa. “Não sei por quanto tempo vou poder viajar esse país, mas eu vou andar. É o que eu sei fazer: discutir política com esse povo e levantar a moral da tropa. A tropa está com a moral muito baixa”, disse.

O ex-presidente garantiu que vai enfrentar o governo Bolsonaro com diálogo junto ao povo. “O  Bolsonaro fica querendo governar com fake news, mentir para tudo que lado; o Guedes aproveita e vai vendendo o Brasil, aquilo que foi construído como patrimônio do povo; e o país está sendo quebrado. O meu papel é falar com o povo. E não me peçam paciência nem com Bolsonaro, nem com Moro e nem com Dallagnol.”

Segunda instância e STF

Lula disse esperar que o Congresso Nacional tenha juízo ao analisar as manobras propostas por meio de Propostas de Emenda à Constituição (PEC) e projetos de lei (PL) que discutem a prisão após condenação em segunda instância.

“Uma Constituição não é um boletim, um manuscrito, uma coisa que você pode rasgar e jogar fora toda hora. Lamentavelmente, você tem um empobrecimento da elite brasileira que agora diz que a Constituição é um atraso para o país. Espero que o Congresso tenha a grandeza de não derrubar a questão do trânsito em julgado”, comentou.

Também afirmou que espera que o Supremo Tribunal Federal reconheça sua inocência.

“Espero que a Suprema Corte tenha sabedoria de reconhecer o papel de garantir o cumprimento da Constituição e possa julgar o mérito de um processo como o meu. Não estou pedindo favor a ninguém. O que eu quero é que esse país volte à normalidade. E, para voltar à normalidade, esse meu processo tem que ser anulado, e os responsáveis têm que ser punidos.”

Polarização e alianças

O ex-presidente disse que é preciso, sim, polarizar as discussões políticas para que as ideias progressistas sejam propagadas e efetivas. De acordo com Lula, o PT vai polarizar as próximas eleições para fazer valer suas ideias.

“Se você não quiser polarizar, não tenha partido. O PT nasceu para polarizar. Vamos polarizar em 2022; polarizar e ganhar”, disse.

Ele reconheceu que o PT cometeu erros, embora tenha “mais acertado do que errado”, mas reforçou, outra vez, que não é papel do partido fazer autocrítica. “Por que você quer que o PT faça autocrítica? Se eu fizer autocritica, então não precisa oposição. Eles pedem autocrítica porque sabem que, por mais que o PT tenha errado, nenhum partido fez mais por esse país do que o PT, nenhum partido cuidou mais dos povos do que o PT”.

Lula disse que o partido deve priorizar candidatos próprios em todos os âmbitos das eleições, embora aceite fazer alianças com partidos progressistas em casos como segundo turno, por exemplo.

“Não sou contra o PT apoiar o Freixo, fazer alianças em São Paulo, mas um partido do tamanho do PT tem que ter candidato, até para defender as teses do partido. Se o PT não for para o segundo turno, apoia um candidato que seja progressista, que seja da esquerda”.

Em relação à ruptura anunciada por Ciro Gomes após a libertação, o ex-presidente disse apenas ser grato ao ex-ministro de seu governo. “Eu sou grato a ele por ter trabalhado comigo e ter sido leal. O Ciro não é um homem de debate político. É um homem de uma verdade só, que é a dele.”

Fake news e direita

Lula reconheceu que a esquerda precisa evoluir no uso político de redes sociais, como a direita tem feito massivamente.

“O PT tem que ter clareza de que a direita tem um papel, de que a direita aprendeu a utilizar as redes sociais mais do que nós, até porque uma mentira vai de avião, e uma verdade vai engatinhando.

Para ele, o combate a fake news passa por disseminar um discurso verdadeiro nas ruas, fora da internet. “Nós temos que preparar para combater as mentiras tentando falar as coisas mais sérias possíveis. É o discurso de rua que pode ajudar o nosso povo a ir para a internet. É preciso ter mensagem política.”

Ele garantiu que o PT vai priorizar o uso da internet nas próximas campanhas. “O PT está engatinhando ainda. Pelo tamanho que é, deveríamos ter uma rede quase imbatível. Mas vamos chegar lá. Posso te dizer que é uma preocupação do partido.”

América Latina

Lula afirmou que tem acompanhado atentamente a situação governamental dos países vizinhos. Ele disse que, embora esteja preocupado com a ameaça norte-americana, é bom que exista alternância de poder, citando a mudança de postura na Argentina com a eleição de Alberto Fernández.

“Não tem nenhum partido que governe para sempre. Eu acho bom para democracia que tenha essas alternâncias. É muito legal que um dia você ganhe e outro você perca. O que temos que provar é que a direita é incompetente para tratar dos problemas principais que o país vive, que é a qualidade de vida do seu povo.”

Ele disse que tinha dúvidas sobre o quarto mandato de Evo Morales na Bolívia. “Não entendi por que o Evo renunciou. Talvez ele tenha razão, que eu não saiba. Como eu não entendo muito dessas coisas, quero me certificar para fazer um comentário.”

Para Lula, há uma clara interferência dos Estados Unidos nas políticas dos países latino-americanas. “Estou convencido que os americanos resolveram voltar a transformar a América Latina no quintal deles. Eles não querem que exista nenhum país aqui com mania de protagonista”, disse. “O que é lamentável é que um pais do tamanho do Brasil se submeta a isso”, completou.

Histórico

Lula foi libertado em 8 de novembro, após 580 dias de detenção na Superintendência da Polícia Federal, em Curitiba.

A soltura foi viabilizada por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que derrubou, um dia antes, a possibilidade de prisão de condenados em segunda instância.

O ex-presidente é condenado por corrupção e lavagem de dinheiro no caso do tríplex no Guarajá, com pena fixada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em 8 anos e 10 meses e 20 dias de prisão. Ainda há possibilidade de recurso no STF.

Lula tem ainda outra condenação, em primeira instância, no caso do sítio de Atibaia – a pena, neste caso, é de 12 anos e 11 meses de prisão pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro.

Edição: Rodrigo Chagas