Violações

Inspeção revela que pelo menos mil brasileiros moram em hospitais psiquiátricos

Relatório reuniu dados de 33% das instituições do tipo no país e aponta para diversas violações de direitos

Brasil de Fato | Brasília (DF) |

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De 40 unidades pesquisadas, 82% têm internações de longa permanência, mostra relatório; conduta é ilegal
De 40 unidades pesquisadas, 82% têm internações de longa permanência, mostra relatório; conduta é ilegal - Relatório “Hospitais psiquiátricos no Brasil"/Divulgação

Uma inspeção realizada em 40 hospitais psiquiátricos de 17 estados do país identificou uma série de violações de direitos dos pacientes.

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Organizada pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) em parceria com o Mecanismo Nacional e Prevenção e de Combate à Tortura (MNPCT), o Ministério Público do Trabalho (MPT) e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), a ação observou, por exemplo, que 82% das unidades mantêm pacientes como moradores, em internações de longa permanência.

Ao todo, foram encontradas 1.185 pessoas nessa condição. De acordo com os especialistas, a prática fere a Lei Federal nº 10.216/2001, fixa direitos de pessoas com transtornos mentais.

"Não se mora em hospital"

A situação também contrasta com a política de desinstitucionalização do Ministério da Saúde, que garante a alta dos pacientes e prevê a sua reinclusão comunitária, com retorno à convivência familiar ou ida para residências terapêuticas.

“Não se mora em hospital. Hospital é uma estratégia do Sistema Único de Saúde [SUS] em que a pessoa, num momento muito particular da sua vida, acessa pra resolver pontualmente uma questão e, evidentemente, a vida dessas pessoas tem que ser na comunidade”, afirma o perito o Lúcio Costa, do MNPCT, ressaltando que a inspeção chegou a encontrar, em uma das instituições visitadas, um idoso que há 60 anos era mantido no local.

 

Inspeção identificou que 27% dos hospitais visitados não tinham cama para todas as pessoas atendidas; condições precárias marcam as unidades (Foto: Relatório “Hospitais psiquiátricos no Brasil"/Divulgação)

Violações

Além das internações de longa permanência, o relatório traz ainda um conjunto de outras violações, como a quantidade insuficiente ou mesmo a ausência de papel higiênico, observada em 35% das unidades.

Outro dado considerado alarmante pelas instituições organizadoras do relatório é o fato de 45% dos hospitais não conterem insumos básicos. Em 25% dos locais visitados, a responsabilidade por esses produtos estava a cargo das famílias dos pacientes ou de outras pessoas.

Questões relativas à infraestrutura também se somam ao contingente de problemas.

Foi observado pelas equipes, por exemplo, que 30% dos estabelecimentos não têm alvará ou licença sanitária. Em 42% deles, os banheiros não apresentavam portas, enquanto 22% não tinham água quente disponível para banho.  

Além disso, 27% das unidades não tinham cama para todas as pessoas atendidas e 62% apresentavam “alimentação insuficiente”, situação em que os especialistas verificam má qualidade da comida ou mesmo falta de alimento.

 

Hospitais psiquiátricos tiveram aumento de 26% no orçamento da saúde pública, mas defasagem estrutural ainda caracteriza unidades inspecionadas (Foto: Relatório “Hospitais psiquiátricos no Brasil"/Divulgação)

"O que nos impacta muito é saber, por exemplo, que o orçamento da saúde pública no Brasil cresce 5% e o financiamento de hospitais psiquiátricos nessas condições cresce 26%. A gente entende que esse é um desvio de recursos”, critica o  presidente do Conselho Federal de Psicologia (CFP), Rogério Giannini.   

Elementos que suscitam questões mais subjetivas também compõem o cenário de violações, como a proibição de vestimentas individualizadas, verificada em 65% dos locais.

“O uso de uniformes é um instrumento de anulação da subjetividade das pessoas. A gente escolhe o jeito como se veste porque isso demonstra a nossa personalidade ou face dela, e essas pessoas, em 65% dos hospitais inspecionados, são submetidas a usar uniformes. Isso é mais uma característica do modus operandi de anulação da subjetividade desses pacientes”, aponta Lúcio Costa.  

Abrangência

As 40 unidades analisadas estão nas cinco regiões do país e correspondem a 33% dos 121 hospitais psiquiátricos habilitados pelo Ministério da Saúde.

Os leitos visitados pelos especialistas também correspondem a 33% do total de leito do SUS em hospitais do tipo. Realizadas em dezembro de 2018, as visitas aos locais deram origem ao documento “Hospitais psiquiátricos no Brasil: relatório de inspeção nacional”, lançado nesta segunda-feira (2), em Brasília (DF).  

Atravessada por múltiplos olhares, a ação de inspeção envolveu um total de 500 pessoas, entre especialistas, autoridades do sistema de Justiça e outros profissionais, como assistentes sociais, psicólogos, médicos e enfermeiros.

Entre os critérios utilizados para selecionar as unidades a serem visitadas pelas equipes, os especialistas consideraram questões como taxa de ocupação acima de 100% e notícias de violações de direito.

Também foram levados em conta casos em que havia pedido anterior de descredenciamento da unidade em relação ao SUS e de hospitais que já foram alvo de inquéritos civis, Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), entre outras situações.

“Dados mínimos”

O perito Lúcio Costa destaca a carência de informações sistematizadas sobre a realidade dessas instituições no país.  Como há ainda outros 81 hospitais psiquiátricos que não foram inspecionados, ele sublinha que “os dados [listados no relatório] são mínimos”. “É disso sempre pra mais, nunca pra menos”.  

Com base no universo pesquisado e em debates anteriores sobre o tema, o Conselho Federal de Psicologia e o Mecanismo Nacional e Prevenção e de Combate à Tortura defendem o fechamento das instituições analisadas no relatório.  

“O Estado precisa se comprometer a pensar estratégias de cuidado fora dessas instituições. Pra isso, um dos diversos caminhos é o fechamento da porta de entrada dessas unidades, pra que as estratégias comecem a ser trabalhadas no sentido da reinserção social dessas pessoas, e não da continuidade da internação ou da privação de liberdade. Essa é a finalidade de qualquer tratamento de saúde mental”, argumenta Costa.

O pedido de fechamento será encaminhado aos órgãos competentes e compõe uma lista de encaminhamentos definida pelos signatários do relatório. O rol inclui ainda, por exemplo, pedidos de providências para a desinstitucionalização das pessoas internadas.

As entidades afirmam que as violações encontradas nos hospitais infringem diferentes legislações, como a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, a Lei da Reforma Psiquiátrica (10.215/2001), a Lei do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (12.847/2013) e ainda outras normativas nacionais e internacionais, como é o caso das Regras de Mandela, que tratam dos direitos de pessoas em privação de liberdade.

Edição: Rodrigo Chagas