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Após privatização da companhia de energia, setor produtivo vive pesadelo em Goiás

Comerciantes, ruralistas e industriais engrossam coro de reclamações contra Enel, italiana dona da companhia

Brasil de Fato | Brasília (DF) |

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Em Goiás, Enel tem média anual de 23,2 horas sem fornecimento elétrico, com 11,3 interrupções
Em Goiás, Enel tem média anual de 23,2 horas sem fornecimento elétrico, com 11,3 interrupções - Foto: Divulgação/Enel

 

Depois de causar aborrecimento e prejuízos a consumidores residenciais, a crise no fornecimento de energia elétrica em Goiás passou a afetar também o setor produtivo. De pequenos produtores de leite a industriais, o problema ganha amplitude nas diferentes regiões do estado e deflagrou uma tensão que atinge setores clássicos da economia goiana, pautada especialmente pela produção agrícola e pecuária.

A situação é caracterizada por quedas constantes de energia e demora na resolução das ocorrências. Os problemas começaram após a venda da Companhia Energética de Goiás (Celg) para a italiana Enel, em 2017, no governo Michel Temer (2016-2018).

No mês passado, a Agência Goiana de Regulação, Controle e Fiscalização de Serviços Públicos (AGR) impôs uma multa à empresa no valor de R$ 62 milhões por inadequação na prestação do serviço. Outras duas sanções que totalizavam R$ 13,4 milhões foram aplicadas este ano.  

Dados sobre a prestação do serviço mostram que, no início da atuação da italiana no estado, os consumidores ficavam cerca de 29,45 horas por ano sem abastecimento elétrico, com 19,32 suspensões. Apesar da redução, o índice ainda é considerado elevado, com 23,2 horas e 11,3 interrupções, considerando os números até setembro deste ano.

“Nós não confiamos nos dados da Enel. Temos regiões e cidades que ficaram 72 horas no puro escuro e temos regiões na zona rural que ficaram mais de semanas sem energia elétrica”, aponta João Maria de Oliveira, do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Urbanas de Goiás (Stiueg), que acompanha de perto a crise no setor. “Nunca na história de Goiás nós passamos uma situação tão complicada como agora”.

O discurso é endossado também pelo encarregado de transporte Rafael Elias, da Cooperativa Mista dos Produtores de Leite (Complem). Com 14 anos de atuação no campo, o funcionário se diz impressionado com o alcance e a frequência do problema.

“Problema sempre teve [antes da privatização], mas solucionavam mais rápido. O que se gastava duas, três horas de tempo para solucionar virou três dias, quatro dias. Teve região próxima ao município de Goiatuba que ficou 16 dias com algumas propriedades sem energia. O pessoal dessa empresa nova parece que não tem tanto conhecimento sobre as regiões e os sistemas, e a logística deles está muito bagunçada ainda”, critica.

O engenheiro eletricista Roberto D’Araújo, do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Elétrico (Ilumina), que reúne especialistas do ramo, sublinha que o cenário se agrava também por conta da falta de fiscalização.  

“Nós não temos nem uma regulação eficiente. No caso da Enel [em Goiás], o índice de terceirização lá é de mais de 80%, Quando uma agência reguladora fiscaliza uma distribuidora, ela sabe quais são as empresas que prestam serviços terceirizados, por exemplo? Que empresas são essas? Como ela fiscaliza isso?”, questiona. “Na verdade, não fiscaliza direito, e isso não é um problema só de Goiás. Tudo isso ajuda a piorar a situação que se cria para o consumidor”.  

O encarregado Rafael Elias, que lida cotidianamente com produtores de leite de diferentes regiões de Goiás, afirma que a situação tem provocado múltiplas reclamações. Entre as diferentes manifestações observadas ao longo de 2019, foram registrados protestos de produtores que, em meio aos prejuízos, derramaram leite estragado na calçada da Enel para expressar seu repúdio.

“Eles estão muito revoltados e se queixam do valor porque acham a conta de energia alta para não se ter o respaldo suficiente quando dá esse problema”, relata Elias, destacando reclamações por perda de alimentos, ausência de banhos quentes em dias frios e impossibilidade de uso de maquinários elétricos na zona rural.

Empresariado

Além de suscitar críticas da Federação da Agricultura e Pecuária de Goiás (Faeg), o cenário mobiliza atores da Federação do Comércio do Estado (Fecomercio-GO) e industriais. Juntos, esses setores exercem pressão sobre o governador, Ronaldo Caiado (DEM), desde o início do ano.

Em seu primeiro mandato no Poder Executivo e ligado ao agronegócio, o ex-senador, que é defensor da política de privatizações, viu-se diante de uma situação inusitada. O cenário de pressões levou o democrata a defender o fim da concessão da Enel, e a demanda se materializou em um projeto de lei (PL) de autoria da liderança do governo, que pediu a rescisão do contrato da empresa italiana. Aprovada em uma comissão da Assembleia Legislativa de Goiás no último dia 28, a medida ainda precisa ser avaliada pelo plenário, mas já produz faíscas em diferentes níveis.

Ao subir o tom contra a companhia, Caiado antecipou que, caso seja definitivamente aprovado, o texto será sancionado na porta da sede da Enel, como forma de protesto. Para incrementar o arsenal contra a empresa, governador buscou ajuda inclusive do procurador-geral da República, Augusto Aras, que prepara uma ação civil pública contra a companhia.

De outro lado, a empresa alega que a proposta seria inconstitucional. Especialistas de mercado engrossam o coro. Eles afirmam que, em caso de sanção, o PL não poderia ser aplicado porque, antes de ser privatizada, a Celg, que inicialmente era estadual, foi federalizada, o que tiraria a responsabilidade dos Poderes Executivo e Legislativo estaduais sobre o caso.

O conflito foi parar na Justiça, onde a Enel questiona a proposta do governo. O problema atinge também a gestão Bolsonaro, que tenta implantar um amplo programa de privatizações. Com novos leilões previstos para a venda de estatais, a gestão se vê em meio a um agravamento da insegurança jurídica em torno do tema, o que tende a afastar investidores possivelmente interessados na compra de companhias brasileiras.

“Isso tudo mostra que nunca deveria ter ocorrido privatização num setor estratégico como esse. Não demorou muito para que se percebesse isso. Estamos com três anos de venda da Celg e a situação já está insustentável”, defende João Maria de Oliveira, do Stiueg. “O capital privado só quer lucrar com os serviços, sem investimento. Acho que isso fica provado com o cenário de hoje em Goiás. Acredito que somente uma empresa estatal forte e com controle social possa devolver a tranquilidade ao povo do estado nessa questão da energia”.

Enel

O Brasil de Fato ouviu a versão da Enel sobre as reclamações dos consumidores. Em resposta, a companhia afirmou que investiu cerca de R$ 2 bilhões na empresa de Goiás e que teria havido "redução da duração média das interrupções por cliente (DEC) de 45% entre dezembro de 2015 e setembro de 2019, enquanto o número médio de interrupções por cliente (FEC) melhorou 52%". 

A companhia considera que houve "melhora na qualidade do fornecimento de energia no estado" e critica o projeto de lei em questão, afirmando que a proposta não estaria considerando o "investimento contínuo que vem sendo realizado". Por fim, afirma que estaria "trabalhando fortemente" em um plano de ações e investimentos acordado em agosto com o Ministério das Minas e Energia, a Aneel e o governo estadual.

A empresa ressalta que inaugurou, nesta semana, a ampliação de uma subestação com o dobro da potência anterior. Outras duas novas subestações devem ser inauguradas nos próximos dias, segundo a empresa, que aponta ainda o período chuvoso e os ventos de novembro como responsáveis por problemas de fornecimento em diferentes pontos do estado. 

A respeito das ocorrências que deixaram produtores rurais de Goiatuba durante dias sem energia, a Enel afirma que houve uma falha na subestação da região e que fez os reparos necessários no local.

Edição: Daniel Giovanaz