ANÁLISE

Yves do Amaral: a falta de uma análise histórica levou a uma dignificação da ditadura

Sociólogo e ex-frade explica sobre a descrença das pessoas aos direitos humanos e o reflexo disso sobre a ditadura

Brasil de Fato | Natal (RN) |
Yves do Amaral Lesbaupin é sociólogo
Yves do Amaral Lesbaupin é sociólogo - Concita Alves

Yves do Amaral Lesbaupin é mestre e doutor em sociologia, com um grande renome acadêmico na área de movimentos sociais, sociologia da religião, neoliberalismo e democracia. Entretanto, muitos lembram dele por outro nome: Frei Ivo. Agora ex-frade dominicano, Yves do Amaral teve uma participação na luta pela democracia durante a ditadura militar. Essa fase de sua vida é registrada no livro Batismo de Sangue, escrito pelo jornalista e escritor Frei Betto, e no filme de mesmo nome, dirigido por Helvécio Ratton, em 2007.
Durante passagem por Natal (RN), durante o 11° Encontro Nacional de Fé e Política que ocorreu em julho, Lesbaupin concedeu uma entrevista ao Brasil de Fato falando sobre intolerância, direitos humanos e ditadura militar nos dias atuais. Para ele, há uma necessidade de se falar sobre esses temas, pois a falta de uma análise histórica pode levar a “uma certa dignificação da ditadura”.
Confira abaixo a entrevista completa:
Brasil de Fato: Como que você observa a religiosidade e a política em tempos de exploração e perdas de direitos?
Yves do Amaral:
Nos últimos anos tem havido um crescimento da intolerância, e não apenas em religiões, como as de matrizes africanas, mas, principalmente, entre diferentes grupos, ideias e posições da sociedade. Parte dos grupos religiosos tem entrado nessa polarização. Por exemplo, tem setores da igreja católica que há anos, desde os tempos da ditadura, tem lutado pelos direitos humanos, maior justiça social e crescimento da participação popular, mas tem setores da igreja católica que estão mais comprometidos por uma agenda de costumes e moral conservadora, crítica aos direitos sexuais reprodutivos ou extremamente condenável a questão do aborto.
E isso é agravado pelo momento politico que essa polarização aumentou. Os grupos que, antes, defendiam os direitos humanos, agora estão tendo que fazer um esforço monumental para continuar defender a tolerância religiosa, quer dizer, a aceitação que tem outros grupos com fé diferente.
Poderia dizer que isso é uma descrença, atual, das pessoas aos direitos humanos?
Eu não diria desse jeito, mas está vindo junto. Vivemos um clima, a nível mundial, de um desprestígio aos direitos humanos. Com a ascensão do neoliberalismo se passou a valorizar mais o indivíduo e a busca da meritocracia, ou seja, quem conseguiu alguma coisa é que tem direito e não todas as pessoas têm direito, e isso leva a desvalorização dos que não tiveram a oportunidade de estudar, como se fosse falta deles e não consequências sociais.
Mas a questão dos direitos humanos eu acho que vem no final dos anos 70 e início dos 80. Em nível mundial tem a eleição de Margaret Thatcher, na Inglaterra, e de Ronald Reagan, nos EUA, em que foi crescendo essa onda neoliberal de valorização do indivíduo e desvalorização da solidariedade social que vai terminar nisso que vivemos agora: a derrubada de uma previdência pública que era baseada na solidariedade entre todos para valorizar a capitalização individual.
É curioso que os direitos nascem dos ideais liberais no final do século XVIII, quando se faz as primeiras grandes declarações dos direitos humanos. Em 1789, na Revolução Francesa, e em 1776, na Revolução da Independência Americana, saem as primeiras grandes declarações: “todos os homens nascem livres e iguais em direitos”. Mas estão contestando isso agora. O direito a integridade física nasce nas lutas liberais capitalistas, mas agora está sendo condenado por aqueles que querem tortura, que querem ditadura, e assim por diante.
Então, houve essa contestação que defender direitos humanos é defender um criminoso e um marginal, e isso é uma total desvirtuação do que significa. Claro que é também defender uma pessoa marginalizada como uma pessoa humana, e não alguém que possa ser descartável. Você criminalizar o indivíduo é tirar as causa que o levou a isso. Porque que tem 65 mil mortos no Brasil, em 2018, por homicídio? Nós não estamos em guerra. Tem uma desvalorização da pessoa humana e, agora, para resolver a questão da violência querem dar mais armas. Para matar quem?
Então, é uma ascensão do neoliberalismo na concepção ideológica que centra tudo no indivíduo, que põe a culpa nele. Você é pobre porque a culpa é sua. Você está desempregado? Você não estudou o suficiente. Eu me lembro do Fernando Henrique Cardoso dizendo, quando presidente, já com o nível de desemprego bastante alto, justificando na época que “não existe desemprego no Brasil, existe inempregáveis”. O que ele estava querendo dizer era: “eu governo, mas não tenho nada a ver com isso; os responsáveis são as pessoas que não têm capacidade de qualificação suficiente para ter emprego”. Mentira, porque a política econômica adotada pelo governo dele gerava desemprego.
Como é que você analisa o fato de muitas pessoas defenderem regimes totalitários, como a ditadura de 64?
Primeiro que não houve no Brasil, como houve no Chile e na Argentina, que tiveram ditaduras no mesmo período, um processo de crítica e levantamento do que aconteceu com relação a restrição dos direitos humanos, torturas e mortes. Você tem na Argentina inúmeros processos que levaram à prisão não só de torturadores, mas também dos mandantes. Rafael Videla, presidente durante a ditadura, morreu na prisão. No Brasil nunca houve um levantamento concreto do que foram as violações de direitos humanos. Temos 21 anos de ditadura que passaram em branco.
O primeiro governo pós-ditadura não queria saber disso, que foi o de Sarney; o segundo, de Collor, estava minimamente interessado; e os outros governos democráticos, que poderiam ter trabalhado, fazer um histórico do que aconteceu, não perceberam que era absolutamente necessário fazer uma avaliação desse período. Resultado: boa parte das pessoas que você conhece abaixo dos 40 anos acha que o período da ditadura foi bom, tranquilo e não tinha crimes. Mas, foi um período onde o crime organizado se desenvolveu.
A falta de uma análise histórica e de uma auditoria do que aconteceu naquele período levou a uma certa dignificação da ditadura. No governo Lula não houve Comissão da Verdade, entre 2002 e 2010. Dilma disse que ia fazer. Em 2011 instalou e funcionou entre 2012 e 2014, mas foi um período curtíssimo, pois poderiam ter dito que iria fazer a Comissão da Verdade até descobrir tudo o que aconteceu, mas estabeleceram um prazo de dois anos.
Em 2009, já tinha havido o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) que tinham histórias da Comissão da Verdade, mas os militares reagiram contra esse Programa, e o governo Lula recuou. No que eles voltaram atrás, dois anos seguintes começaram a sair, na primeira vez depois de 1988 até 2010, artigos de militares defendendo a ditadura. Militares eram vistos como os que tinham matado e torturado, mas de repente se sentiram fortes o suficiente para falar bem da ditadura. Só pararam quando teve a Comissão da Verdade, porque destampou uma série de casos gravíssimos.
Lembro no Rio de Janeiro, de um ex-torturador que se converteu e se tornou um pastor evangélico, e publicou suas memórias. Ele revelou que tinha ajudado, entre outros, a matar e sumir com corpos dentro de uma usina no interior do estado, dentro de um alto forno. Virava cinzas, você não sabia quem era. E ele dava o nome de dez pessoas que foram mortas lá.
Quando esses casos começaram a aparecer os militares ficaram, novamente, vergonhosos de defender isso. Mas, após os dois anos, terminaram o relatório da Comissão da Verdade, entregaram ao governo Dilma, mas foi para gaveta, porque foi logo depois do final das eleições e depois teve uma campanha nacional para derrubá-la.
Então as pessoas defendem, em primeiro lugar, pelo não conhecimento sobre o que foi a ditadura militar e pelo relato idealizado com grande apoio da mídia. É impossível de se imaginar na Argentina as pessoas irem para a rua defender “queremos de volta os militares”, porque eles sabem o que aconteceu, mas aqui não.
Apesar disso, eu participei de inúmeros debates no filme Batismo de Sangue, e há um interesse enorme, particularmente dos jovens, em saber sobre isso. Então, que saiam mais filmes, como o de Marighela, inclusive com outros olhares, sob o ponto de vista dos diretores, é extremamente importante.
Em 2014, eu participei de inúmeros debates em escolas, com adolescentes, e em períodos noturnos, com perfis mais adultos. Poucos sabiam sobre a ditadura, muitos começaram a preparação do debate com o filme. O diretor que fez Batismo de Sangue, Helvécio Ratton, ele nos dizia que a preocupação era querer mostrar como foi a tortura, porque a maioria dos jovens não sabem como foi. Nós temos que fazer debates, mas também tem muita gente querendo que se esconda, sabem que, com isso, vai se avançar muita coisa.
 

Edição: Isadora Morena