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Não vale a pena respeitar a realidade

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Os rostos jovens têm os queixos erguidos, os punhos no ar; eles não têm medo.
Os rostos jovens têm os queixos erguidos, os punhos no ar; eles não têm medo. - V. Arun Kumar/ Peoples Dispatch
Os líderes do establishment e sua insensibilidade devem ser desconsiderados

Em outubro do ano passado, o Fundo Monetário Internacional (FMI) divulgou seu World Economic Outlook [Panorama Econômico Mundial]. Nesse relatório, o FMI afirma que a taxa de crescimento global tropeçaria em 3% em 2019. Há um mês, os principais economistas do Fundo voltaram a esse tema; “O crescimento global registrou seu ritmo mais fraco desde a crise financeira global de uma década atrás”, escreveram. A análise de por que houve uma taxa de crescimento tão baixa pousou na guerra comercial entre os Estados Unidos e a China e nas “fraquezas associadas”. (O FMI promete uma discussão mais aprofundada sobre a crise quando publicará uma atualização do relatório, dia 20 de janeiro).

Surpreendentemente, os economistas do FMI observam que, como resultado da turbulência global, “as empresas se tornaram cautelosas com os gastos a longo prazo e as compras globais de máquinas e equipamentos caíram”. Isso significa que as empresas não estão investindo em sua expansão ou em novas tecnologias. Em vez disso, estão se apoiando cada vez mais na terceirização da produção, na precarização laboral e em um modelo permanente de trabalho com baixos salários. Em outras palavras, as empresas estão canibalizando a sociedade – colocando uma imensa pressão em frágeis redes familiares e comunitárias, aprofundando os impulsos conservadores da sociedade e diminuindo a saúde e o bem-estar da sociedade.

 

Denis Mubiru, Tukoola Bagaya?! (My Work Goes Unnoticed) [meu trabalho segue desconhecido], 2015.

Para evitar um grande colapso, os bancos centrais de todo o mundo reduziram permanentemente as taxas de juros, provendo dinheiro barato ao mundo dos negócios. Essas empresas – que não investiram no setor produtivo – estão emprestando trilhões de dólares ao mundo que Karl Marx chamou de “capital fictício”.

O valor dos mercados de ações globais agora é de quase 90 trilhões de dólares (de acordo com o Deutsche Bank), mais do que o valor do PIB global (se adicionado o valor total do estoque financeiro global – incluindo depósitos bancários, títulos de dívida pública e privada e ações – chega a mais de 200% do PIB global. Este número em 2004 era de 118 trilhões de dólares e superou os 200 trilhões em 2010).

Essa expansão do capital fictício tem crescido cada vez mais dentro das fronteiras, e não através dos fluxos globais de capital transfronteiriço. Estes fluxos – que incluem investimento direto estrangeiro – diminuíram 65% desde 2007, passando de 12,4 trilhões de dólares para 4,3 trilhões.

Por quase cinco décadas, esses dois processos se colocaram na sociedade humana: uma desaceleração do investimento produtivo das empresas capitalistas e um aumento no volume e na importância do capital financeiro. As taxas de lucro caíram em geral e as dívidas aumentaram. Nenhuma tentativa real foi feita para resolver esse problema, em grande parte porque não há uma solução fácil dentro dos limites do sistema capitalista. Três avenidas principais se abriram para diminuir a gravidade da crise capitalista com efeito cascata, mas não para resolvê-la:

1) A política de Estado do neoliberalismo não apenas libertou a elite capitalista das cadeias tributárias; desregulamentou também as finanças e o investimento direto estrangeiro, privatizou serviços estatais e mercantilizou a riqueza social. Todo o impulso neoliberal enfraqueceu a capacidade dos Estados de formular políticas econômicas nacionais; como a formulação da política econômica não fortaleceu uma ordem democrática, os Estados ofereceram vantagem às empresas multinacionais (incluindo bancos internacionais).

2) O colapso do Projeto Terceiro Mundo e o enfraquecimento do bloco socialista entregaram centenas de milhões de trabalhadores à classe trabalhadora global e, assim, permitiram que as empresas reduzissem os salários por meio de terceirização, ao mesmo tempo em que as regulamentações do Estado entraram em colapso por meio de “reformas do mercado de trabalho”, recomendadas pelo FMI.

3) Uma expansão maciça da dívida por meio de taxas de juros reduzidas e fácil acesso ao crédito. O Instituto de Finanças Internacionais mostra que a dívida global está agora em 250 trilhões de dólares e segue crescendo; agora é 230% do PIB global. A dívida de governos é responsável por quase 70 trilhões de dólares; metade da dívida global está nas mãos do setor privado não financeiro. Um novo relatório do Banco Mundial chamado Global Waves of Debt [Ondas Globais da Dívida] mostra que a dívida apenas nos países emergentes e em desenvolvimento continua a quebrar seus próprios recordes, subindo para mais de 55 trilhões de dólares em 2018, “marcando um aumento de oito anos que foi o maior e mais rápido e mais abrangente em quase cinco décadas”. Essa dívida nos países emergentes e em desenvolvimento é agora 170% do PIB global. Mas é essa dívida que alimentou o crescimento que pode ser medido, e é essa montanha de dívidas que se situa perigosamente sobre o destino do mundo.

Nós, do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, temos seguido de perto esses acontecimentos e oferecido nossa análise do que parece ser uma crise estrutural de longo prazo. Em nosso dossiê n. 24 (janeiro de 2020) O mundo oscila entre crises e protestos, oferecemos uma avaliação detalhada desta crise e da contínua política de austeridade, e também a emergência da rivalidade entre Estados Unidos e China. Entendemos que a “guerra comercial” entre os Estados Unidos e a China não é um fenômeno irracional, mas que é precisamente o resultado da crise econômica de longo prazo e das políticas de austeridade. Essa avaliação nos permite fornecer uma breve análise da abordagem desses assuntos que está sendo desenvolvida pelo Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Tsinghua (Pequim).

As descobertas principais é que estamos entrando em uma “ordem mundial bipolar” na qual haverá, talvez, dois poderes hegemônicos no mundo: EUA e China. Ou dois poderes chegarão a algum entendimento sobre as organizações internacionais – como o FMI e o Banco Mundial – ou mais organizações regionais aparecerão com padrões diferentes e uma compreensão mais heterogênea do comércio e do desenvolvimento.

Se essas tendências fragmentárias terão impacto no sistema financeiro mundial não parece estar presente em nenhuma dessas discussões, o que parece indicar que permanecerá intacto. Para os países do Sul Global, a implicação de continuidade do poder financeiro significa que nenhuma mudança importante em nível global será possível nessa configuração bipolar. As alternativas aos regimes de austeridade não estão claras.

Estudantes contra o fascismo, Calcutá, Índia, 7 de janeiro de 2020.

O lento atrito de poder entre os EUA e o surgimento da ordem bipolar pode ser vislumbrado nas crises em curso no oeste asiático. O assassinato do general iraniano – que estava com passaporte diplomático e em uma missão diplomática no Iraque – e o alargamento dos portões do inferno enquanto mísseis voam através da fronteira com o Irã e o Iraque; crescente pressão da China e da Rússia em relação a essa parte crucial da Eurásia e a tentativa dos EUA de cercá-la – tudo isso sugere exatamente essas mudanças.

Protestos anti-austeridade se cruzam com protestos contra a toxicidade social. Uma greve geral na Índia, em 8 de janeiro, combinou as demandas da classe trabalhadora e do campesinato por um pacto social que não prejudique as minorias. O mesmo tipo de dinâmica é visível na América Latina, onde surgiram frentes populares contra regimes de austeridade autoritária. Sob a tempestade e o estresse das mudanças no equilíbrio de poder, há inúmeras lutas; é por isso que nosso dossiê se chama O mundo oscila entre crises e protestos.

A tônica geral nesses protestos é que não vale a pena respeitar a realidade; os líderes do establishment e sua insensibilidade devem ser desconsiderados. O presidente dos EUA, Donald Trump, ameaça destruir os bens culturais do Irã, uma ameaça que é da natureza de um crime de guerra. O primeiro-ministro australiano, Scott Morrison, observa seu país queimar e reage com grunhidos abafados e não científicos; o primeiro-ministro indiano Narendra Modi não diz nada quando a polícia e os hooligans de sua orientação política entram em universidades e espancam e prendem estudantes. A mídia social explode de raiva contra esses homens e sua desumanidade. Os rostos jovens têm os queixos erguidos, os punhos no ar; eles não têm medo.

 

Hannah Malallah, Peace Trade [Acordo de paz], 2014.

É verdade que estes são protestos da juventude, mas seria impreciso acreditar que a juventude pode se reduz à idade. Há muitos jovens que se renderam à realidade, que não podem ver além do horizonte do presente; há muitas pessoas mais velhas que desejam ter uma transformação em grande escala.

O ponto não é a idade, mas a atitude, a sensibilidade de que o mundo que temos não precisa ser o mundo por toda a eternidade. “Felicidade era estar vivo naquele amanhecer”, Wordsworth escreveu sobre a época da Revolução Francesa. “Mas ser jovem era muito um paraíso”. Ser jovem significa imaginar o “paraíso”, outra configuração – o lugar, Wordsworth cantou, “onde, no final, encontramos a felicidade, ou nada em absoluto”.

Edição: Instituto Tricontinental