Música

Cena musical do Pará se consolida com mistura de gêneros e público próprio

A reinvenção de artistas consagrados como Mestre Vieira alcança cada vez mais público no Pará e no Brasil

Belém (PA) | Brasil de Fato |

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Felix Robatto comanda a lambateria, casa de lambada onde se toca música paraense, latina e amazônica.
Felix Robatto comanda a lambateria, casa de lambada onde se toca música paraense, latina e amazônica. - Bruno Carachesti

O Pará é amplamente conhecido por sua culinária, mas o Estado também tem outra peculiaridade: a sonoridade da música produzida pelos artistas locais. O brega e o tecnobrega nasceram com a mistura da música local com o eletrônico, em meio a letras que narram desencontros amorosos, o empoderamento feminino e situações vividas no cotidiano do povo paraense.

A visibilidade nos últimos anos foi dada por meio do trabalho de artistas que ganharam o Brasil, como a cantora Gaby Amarantos, Felipe Cordeiro e a Gang do Eletro. Mas quem visita a capital paraense atualmente conta com uma série de opções para conhecer esse ritmo amazônico.

A jornalista e produtora cultural Sônia Ferro, junto com o músico Felix Robatto, são responsáveis por uma das festas mais conhecidas da cidade quando o assunto é música: a Lambateria. Existente há quatro anos, a festa nasceu da necessidade de um espaço para compartilhar com o público a música paraense e outros ritmos latinos.

Há cerca de dez anos as festas dedicadas à música local eram menos evidentes. Antes da carreira solo, Felix era guitarrista da banda La Pupuña, formada por estudantes do curso de Licenciatura em Música da Universidade do Estado do Pará (Uepa). Os músicos misturavam rock, merengue, surf music, brega e a guitarrada paraense. O resultado foi uma aceitação tão grande do público que fez com que eles fizessem uma série de turnês fora do país.

Depois de seis anos em turnê com a cantora paraense Gaby Amarantos, Felix voltou ao Pará e percebeu que a vida noturna da cidade não tinha um espaço que abraçasse a cultura do brega, da guitarrada e de ritmos locais. Foi aí que nasceu a Quintarrada -  festa realizada às quintas-feiras - e, por iniciativa de Sônia Ferro, a Lambateria, hoje uma das melhores casas de lambada do Brasil.

"Quando ele retornou [da viagem com a Gaby] e voltou a tocar ou era pop rock ou era sertanejo, você não tinha mais espaço e foi assim que surgiu a Quintarrada. A cidade tinha um monopólio absurdo e a gente sempre discute, que esse é o problema da música hoje: ou é sertanejo ou é funk, você não tem outros recortes", conta Ferro. 

Hoje, a Lambateria conta com um público próprio e fiel, desde os mais jovens até as pessoas com mais idade, como é o caso do Seu Godofredo, que tem 66 anos,  participou de todas as festas e tem até uma música feita por Felix Robatto em sua homenagem.

Para Sônia, a visibilidade que a música paraense tem e a valorização local se deve ao fato de que os próprios artistas percebem que a sonoridade, somada às particularidades da cidade, tornam único o som que se produz localmente. 

"Talvez o que esteja dando mais essa visibilidade é as pessoas entenderem que não é você e sim o local de onde você vem que tem mais peso. Eu acredito também que a gente tem um som muito específico, uma sonoridade que nem sempre é possível de ser entendida por outras localidades. O tecnobrega é uma música de periferia e, para quem não está acostumado, eu o comparo a rave. Tu tens que estar na vibe para entender a história. E eu acho que uma coisa que tem ajudado muito é que a gente está vendendo o estado como um todo, porque uma coisa é você ouvir tecnobrega na beira da praia, no Rio de Janeiro, e outra é ouvir tecnobrega aqui, no calor da cidade tomando tacacá", diz. 

Devido a parceria com a lambada, Sônia anuncia que ainda esse ano será lançado um documentário sobre a história do ritmo. 

"A lambada ganhou o mundo e muita gente acha que é baiana. Sendo que a lambada surgiu aqui. Inclusive, o Felix está fazendo um documentário que será lançado esse ano, que conta um pouco dessa história, com depoimentos, por exemplo, do Luiz Caldas, que foi uma das referências e fala que a primeira vez que ouviu lambada foi com o Pinduca. Então, a gente sempre ficou muito com aquela coisa de ver as coisas escoando e fazendo sucesso fora e aí esse é um momento de reparo histórico do que é daqui, das nossas origens", afirma. 
 

Ananindeusa diz que a discotecagem é também parte da sua formação como mulher negra, afro-ameríndia. Foto: Marcelo Lelis.

Mais que música, o encontro com a ancestralidade 

Para a DJ Carol Pabiq, 33, mais conhecida pelo público como Ananindeusa, a música é muito mais do que um trabalho. É também parte da sua formação como mulher negra afro-ameríndia do interior da Amazônia, que tem uma vida predominantemente urbana e que cultua sua ancestralidade.

Ananindeusa aponta a tecnologia como um dos fatores que facilitam o acesso à música paraense. Culturalmente, os artistas de brega gravam CDs e os distribuem gratuitamente ao público, mas com o advento da internet, isso teve um alcance ainda maior. 

"A música paraense sempre chegou em outros estados e outros países, mas a música paraense feita por mulheres e pessoas negras ganharam mais notoriedade pelo mais fácil acesso à tecnologia para produção e divulgação de material. E mesmo assim ainda tem muita produção musical paraense que é pouco consumida. De qualquer maneira, as outras artes como o cinema e a telenovela, por exemplo, contribuíram bastante para aumento de público da cultura paraense. O único problema é chegar e ser consumido de modo um pouco distorcido ou estereotipado nesse atravessar de barreiras", diz. 

Como mulher que trabalha como DJ, Ananindeusa diz que o machismo é de longe a sua maior barreira. 

"O machismo e o racismo estão presente todos os dias nas nossas vidas, ele apenas se apresenta de forma diferente. Ora mais disfarçado, ora mais estampado. Esses são os maiores desafios, saber que essas problemáticas históricas e estruturais existem e não deixar com que isso me abale a tal ponto que me desequilibre. Saúde mental é fundamental e perspicácia também", diz. 

A DJ, que já discotecou em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, afirma que o esforço dos artistas locais é imenso, mas que, infelizmente, as políticas públicas de fomento, incentivo, experimentação e circulação artística musical são mínimas.


Zek Picoteiro começou a discotecar por necessidade. Há 10 anos eram poucos os DJs paraenses que discotecavam antes das bandas locais. Foto: Leonardo Calixto.

Ultrapassando a onda

O DJ e produtor cultural, Zek Picoteiro, que trabalha com discotecagem há sete anos, entrou no ramo por necessidade. Isso porque as festas que realizava, de artistas locais, não tinham DJs que tocassem música paraense.

"Comecei a discotecar por uma necessidade. As festas que eu realizava, que eu trabalhava junto, geralmente precisavam de um DJ ou alguém fazendo a transição ali das bandas, o intervalo do aquecimento das bandas, e não se tinha ainda um DJ especificamente de música paraense que tivesse essa pegada de latinidade, [músicas] caribenhas e música da Amazônia. A maioria dos DJs eram de pop rock, indie e eu acabei entrando nesse ramo da discotecagem por uma necessidade dos eventos que eu trabalhava, e desde então eu comecei a me apaixonar [pela produção musical paraense]", conta.

Zek convive com a música desde a infância. Ele chegou a tocar bateria na igreja na qual congregava, trabalhou com rádio na universidade e também na produção de eventos, shows e festas por quase 10 anos. Entre os ritmos da sua playlist estão o carimbó e a lambada.
 
"Ritmos como carimbó e lambada, por exemplo, há 10 anos não se tinha tanta gente escutando ou tantos artistas produzindo dentro desses gêneros. Hoje não, hoje a gente vê esses gêneros sendo levados para novos lugares de criação, de experimentação e de misturas com gêneros mais modernos de eletrônicos e tudo o mais. Há dez anos, de fato, a visibilidade que a música paraense tinha era bem menor do que é hoje", afirma. 

Para Zek o Pará é um lugar único no Brasil e permite uma série de novidades para os artistas que gostam de realizar experiências com os sons. 

"Em termos de Brasil, a gente está no lugar que ainda oferece novidades. A gente tem uma cena que está o tempo todo se reinventando, construindo novos gêneros e isso acaba chamando a atenção de pessoas influentes do Brasil inteiro e de público também", resume.
Segundo Zek, a música paraense ocupou um patamar hoje que ultrapassa a visibilidade que alcançou em outros momentos, quando foi tema de novela por exemplo.

"A música paraense ultrapassou o momento de hype.Teve um momento de boom com a Gaby Amarantos, com a Gang do Eletro, Felipe Cordeiro, um momento em que estava todo mundo escutando, música na novela e tudo o mais. Esse hype passou, mas ele serviu para amadurecer os artistas e formar uma plateia", avalia.

De fato, Zek Picoteiro tem razão quando diz que a cena musical paraense já conta com um público próprio e segue conquistando outros que ainda não se renderam aos ritmos amazônicos.

Edição: Leandro Melito