Paraná

Crônica

Minha primeira viagem na Europa, entre céus e infernos

"Como podem conviver o mais alto trabalho cultural e a opressão invisibilizada, tão latente agora?"

Brasil de Fato I Barcelona - Espanha |
Metrô de Barcelona
Metrô de Barcelona - Pedro Carrano

Pisar pela primeira vez no velho continente, com quase quarenta anos de idade, empreendendo um mochilão por França, Catalunha e Portugal me traz, sem dúvida, uma mistura de sentimentos contraditórios, que vão da beleza até um certo susto.
Significa estar em contato com o que há de alto nível na cultura, na arquitetura, no urbanismo, na tecnologia, nos meios de transporte, na conservação da memória, mas consciente também de que a opulência foi erguida às custas dos recursos naturais e dos braços dos países da África, Ásia e América Latina.
Por contradição e ironia da História, hoje milhares de pessoas vindas dos continentes que deram base para esta civilização agora são migrantes, rostos africanos, latinos e árabes buscando espaço no mundo do preconceito, dos subempregos, dos guichês, da entrada dos banheiros, da entrega de panfletos, dos balcões de atendimento. Vi, nesses dias, um dado de que 39 mil pessoas em 2019 atravessaram o Mediterrâneo.
Cada rua, cada pedra, cada monumento e memória, cada local de desfrute, que todos merecemos ter, martelam na cabeça: como podem conviver o mais alto trabalho cultural e a opressão invisibilizada, tão latente agora?
A Europa foi devastada em 1918 por uma guerra geral. Hoje, não tem como encobrir as intervenções cirúrgicas que ocorrem na Síria, na Líbia, Afeganistão, Iraque, Venezuela, Honduras, Equador. Suas marcas são pessoas que caminham e sobrevivem por essas ruas. E o mais importante de uma viagem é o conhecimento das pessoas.
Aqui estamos na terra de referências fortíssimas. Na cultura, como não amar a experiência universal e mágica de Dalí, Picasso, dos textos de Balzac, Baudelaire, Margarite Duras, Margarite Yourcenar, Rimbaud, Le Clezio, Durrell, tantas e tantos.
Estamos em países que consolidaram alguns direitos democráticos e nacionais - sempre, é certo, como um patamar por um fio com o avanço da extrema direita e diante das políticas neoliberais. Pensamos em tudo isso flanando pelas ruas ou vagando por trens enquanto a malha ferroviária brasileira - fundamental para o meio ambiente! - foi totalmente privatizada.
Nada vem do nada, já dizia o dramaturgo Brecht. Exige-se resistência. Por aqui, conhecemos uma livraria, perto da Sorbonne, especializada em autores negras e negros. Vimos os funcionários públicos da cultura paralisar o principal museu do mundo, o Louvre, contra a reforma da previdência de Macron. Na França, apesar da baixa sindicalização, trabalhadores ultrapassam os cinquenta dias de forte paralisação.
Estamos em lugares que nos recordam que, sob o domínio do Capital, o velho mundo viveu a expansão, o auge e o declínio em forma de guerras e lutas de classe.
Assim foram as jornadas de luta por democracia, com impacto mundial e no continente, em 1848; depois a resistência e o esmagamento da Comuna de Paris, em 1870, e olha que Marx já visualizava a crise econômica em 1866. Depois a destruição, a expansão colonial da primeira guerra; depois a luta de classes refletida na segunda guerra mundial, na tentativa de esmagar a URSS. É como se a velha frase de Rosa Luxemburgo ecoasse em cada cartaz desse continente com a advertência: Socialismo ou barbárie.
Estamos em lugares em que comunistas tiveram presença fundamental no combate contra o nazismo e fascismo. Seus nomes ecoam em esquinas e tumbas. Estão vivos!
Não podemos ter o complexo de vira-latas da classe média e elite brasileiras, achando que estamos em um território superior. Pelo contrário. Temos nossa cultura brasileira, sabemos absorver e deglutir o melhor da cultura dos países centrais, como fez Oswald de Andrade quando voltou de Paris.
O ex-ministro da cultura, em referência ao nazismo, falou de uma arte nacional, mas se referia a algo moralista, longe da realidade do trabalhador e do povo latino-americano. Ignora que a arte é uma síntese das influências universais com a vida pulsante local. Bolsonaro não reflete nem a necessidade concreta das trabalhadoras e trabalhadores, e ainda despreza a pluralidade de outros povos, capacho dos EUA.
Repudiar a experiência da extrema direita é, no mínimo, um aprendizado nosso com o chamado velho mundo.
Na estação Stalingrado, de Paris, lembramos que a extrema direita foi e deve ser sempre derrotada.
A próxima estação que se anuncia no Brasil e no mundo é um tanto incerta.

Edição: Lucas Botelho