Paraíba

FUTURO RETROCESSO

Artigo | O meu país é a minha distopia

Paralelos entre a ascensão política da extrema direita no Brasil contemporâneo e as sociedades distópicas da literatura

Brasil de Fato | João Pessoa (PB) |
Cena da premiada série norte-americana "The Handmaid's Tale", inspirada em "O Conto da Aia" .
Cena da premiada série norte-americana "The Handmaid's Tale", inspirada em "O Conto da Aia" . - Reprodução / Hulu

Aparentemente madrugadas de insônia e preocupações com a verborragia bolsonarista (que é palavra, mas é também ação!) às vezes podem ser propícias para o fervilhamento de reflexões e paralelos entre a ascensão política da extrema direita no Brasil contemporâneo e as sociedades distópicas da literatura mundial. Aliás, pelo que indica o aumento na procura de livros classificados como distopias e os debates ocorridos a respeito em clubes de leitura e afins que resistem nos mais diversos rincões do país, são muitas as pessoas a lerem obras do gênero atualmente encontrando similaridade significativa com a avalanche bolsonarista a atingir o Brasil, com destaque para as narrativas presentes em 1984, O Conto da Aia (e sua continuação em Os Testamentos) e Fahrenheit 451.

As analogias sugeridas pela leitura das referidas obras são muitas e fortes: os Ministérios de 1984, produzido por George Orwell, que atuam na direção contrária ao que seus nomes poderiam indicar a princípio, a exemplo do Ministério da Verdade (responsável pela falsificação de notícias, livros, etc), o Ministério da Paz (responsável pela promoção da guerra), o Ministério do Amor (que tortura e mata pessoas consideradas uma ameaça a lei e a ordem) e o Ministério da Pujança (que administra a escassez) nos remetem à direção tomada por Ministérios como o da Cultura, da Educação, do Meio Ambiente, dos Direitos Humanos e tantos outros no governo Bolsonaro nos quais parece que o critério é justamente a ausência de qualquer compromisso com a pauta central expressa na nomenclatura do órgão; a Liga Juvenil Antissexo evocada pela mesma obra nos remete à perigosa política pública recentemente anunciada pela Ministra Damares de abstinência sexual para os jovens como forma de prevenção à gravidez, ao tempo que nos instiga questionamentos acerca de até que ponto caminhamos no sentido da culpabilização das mulheres e aprofundando o movimento de transformação das diferenças entre os sexos em desigualdades, similar à narrativa de Margaret Atwood em O Conto da Aia e Os Testamentos.

Ademais, a coerção ao exercício do livre pensamento e à pluralidade de ideias e concepções nos remete a projetos como o Escola Sem Partido e seu estímulo para que pais e estudantes ajam como polícia política de professores supostamente doutrinadores; e a noção de que leituras provocam questionamos e estes, por sua vez, causam infelicidades e melancolias numa sociedade em que intelectual virou palavrão remete ao pronunciamento do presidente de que livros são “um montão de amontoado de muita coisa escrita” e precisam ser “suavizados”, assim como sua defesa, na mesma ocasião, de uma educação de tipo utilitarista, tal como a realizada pelo chefe dos bombeiros incendiários de livros em Fahrenheit 451.

Além da capacidade do poder dominante em alterar o passado afirmando (e convencendo as pessoas) que esse ou aquele fato histórico jamais ocorrera, aspecto que perpassa em alguma medida as quatro obras literárias mencionadas e que nos remete ao empenho do bolsonarismo em negar a ditadura no Brasil.

E a lista poderia certamente se estender muito mais em referência à política deliberada de manutenção da escassez crônica, ao avanço na extinção da ciência, da Universidade e de todo pensamento independente e por isso mesmo considerado capaz de levar as pessoas à devassidão, ao entusiasmo bélico paralelo à noção de que os livros é que são armas a serem descarregadas, ao fundamentalismo religioso e suas perigosas ortodoxias disfarçadas sob verniz de virtude e pureza, ao patriotismo primitivo que se invoca a fim de aceitarmos maiores e piores condições de vida e trabalho, ao conformismo de quem segue acreditando no governo a todo custo, aos censores produzidos com base no ressentimento e os mecanismos de censura como sendo a única expressão de eficiência que há no governo, e tantos outros elementos presentes nas ficções e no real da vida que escorre em nosso cotidiano.    

Obviamente o tempo presente não é uma encenação literária e ainda que possamos fazer referência a conceitos, mecanismos e personagens forjados nestas obras para atentarmos para processos em curso na atualidade, nunca será uma reprodução exata, tanto pelos muitos recursos imaginativos mobilizados nas literaturas de ficção quanto pela dinâmica das condições históricas que possibilitam e/ou sustentam determinadas condições societárias, em permanente alteração e sujeitas à correlação de forças possível em cada contexto.

De qualquer forma, se por um lado, seria no mínimo ingênuo – quando não equivocado – querermos transferir de modo mecânico e/ou imediato a narrativa presente nas obras mencionadas para a realidade brasileira contemporânea, por outro lado, é possível apontarmos a presença de componentes importantes no governo Bolsonaro na direção de um recrudescimento democrático em nada desprezíveis e que demandam a nossa atenção e preocupação para além das analogias e inclusive sabendo que uma interpretação coerente do Brasil atual demanda cuidados e investimentos teórico-analíticos mais largos.

Mas, concordando com Ray Bradbury (autor de Fahrenheit 451), a chamada ficção científica muitas vezes é uma maneira de fingir que você está falando do futuro quando, na realidade, está atacando o passado recente e o presente. Talvez em razão disso possamos extrair da literatura algumas lições e desafios para estes tempos de Brasil distópico: i) Há sempre resistência, esteja ela mais localizada em alguns indivíduos ou organizada coletivamente como no caso da Confraria e do Mayday, mas são os espaços coletivos que fortalecem a perspectiva de avançarmos ao invés de apenas acumularmos derrotas; ii) Não podemos nos deixar pautar pela política do ódio e o sentimento de vingança que nos provoca e nos leva a metermos os pés pelas mãos diante do cenário desalentador vislumbrado; iii) qualquer discurso capaz de materializar política concreta com impactos reais na vida das pessoas precisa ser lido como de intencionalidade muito mais arguta do que a de simplesmente desviar a nossa atenção. Significa que comungar com a compreensão de que as denominadas pautas identitárias, por exemplo, não passam de cortina de fumaça para camuflar as ações centrais do governo, desconsidera, primeiro, que sempre houve imbricamento entre as agendas moral, política e econômica; e segundo, que longe de representar qualquer desgaste à imagem do governo, a mobilização e guerra ideológica é parte da política bolsonarista tanto quanto as suas medidas econômicas, de caráter ultraneoliberal e iv) Precisamos nos agarrarmos à história e nossa capacidade de construí-la, ecoando constantemente: Não! O passado não é tudo aquilo que o poder dominante decide que seja, tampouco assim o será nosso presente e futuro!

Ao contrário. Em nosso horizonte vindouro precisa estar um mundo no qual opressões e Bolsonaros figurem apenas como enredos e personagens fictícios das distopias literárias que, de tão distantes do nosso tempo histórico, tornem-se incapazes de nos tirar o direito ao sono tal como ocorre no momento em que escrevo estas linhas e quiçá seja o que explica também que você as esteja lendo neste momento. E que além de dormir possamos também sonhar e voltar a reivindicar a utopia outrora musicalizada de ver “os meninos e o povo no poder” nesse “sonho teimoso de amor Brasil”...

*Professora do Curso de Serviço Social da UFCG e militante da Frente Brasil Popular, em Sousa/PB.

Edição: Heloisa de Sousa