Coluna

O capitão que salvou o Brasil

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Itamar Franco somente assinou o decreto que devolveu os direitos ao capitão no dia 11 de fevereiro de 1994 - Marcelo Camargo / Abr
Também pioramos - e gravemente - na qualidade dos nossos capitães 

Sem discursos, desfiles, placas ou outras pompas, esta quarta-feira, 5 de fevereiro, marca um dia especial. Deveria ser especial sobretudo para as Forças Armadas. Mas não é. Na verdade, é uma data que laboriosamente é esquecida pelo fato de lembrar uma vergonha brutal. Precisa ser enterrada bem fundo. Dela, hoje, nada se falará ou escreverá.  É o dia que evoca – ou deveria evocar -- a memória do capitão que salvou o Brasil.

Sua lenda já existia mas ganhou outra e maior dimensão no outono de 1968 numa sala do Ministério da Aeronáutica guardada por dez homens armados de metralhadoras. Era 14 de junho e ali um plano foi exposto aos oficiais paraquedistas do Para-Sar, o Esquadrão Aeroterrestre de Salvamento, da FAB.

A ditadura completara seu quarto ano sob protestos nas ruas. Nos quartéis, porém, o que crescia era a insatisfação dos ultra-duros. E o plano tratava justamente disso. Ali, conforme relatariam depois 37 das 41 testemunhas ouvidas, escutou-se um rascunho de genocídio. 

O projeto foi exposto pelo brigadeiro João Paulo Moreira Burnier, chefe de gabinete do ministro da Aeronáutica, Márcio de Sousa e Mello, e homem obcecado pelo combate ao comunismo. Resumia-se numa matança para a qual estava sendo convocado o Para-Sar. Prepararia-se o terreno com a detonação de bombas em sedes de multinacionais e na embaixada dos Estados Unidos.

A culpa seria atribuída à esquerda. Depois, num crescendo, novos atos até o climax: a explosão da represa de Ribeirão das Lajes e do Gasômetro de São Cristovão, ambos no Rio, às 18 horas, hora do pico, para produzir o maior número de mortes. Presume-se que morreriam talvez até 100 mil pessoas. Seria um dos maiores atos terroristas da historia da humanidade. 

Na sequência, aproveitando-se da comoção popular, 40 personalidades que discordavam do regime seriam sequestradas e atiradas de avião em alto mar. Entre as vítimas figuravam os ex-presidentes Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros, o arcebispo Dom Hélder Câmara e mesmo artífices do golpe de 1964, casos de Carlos Lacerda e do general Olympio Mourão Filho. Com sangue, abriria-se o caminho para um abismo de tirania -- na Argentina e no Chile, a ideia vingaria. 

Um dos fundadores do Para-Sar, o capitão Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, ouviu perplexo tudo aquilo. Com 900 saltos, seis mil horas de voo e quatro medalhas por bravura, Sérgio Macaco, seu apelido, era figura reverenciada dentro e fora do esquadrão. 

Indagado pelo seu superior sobre a proposta, Sérgio Macaco deu-lhe uma resposta que lhe custou a carreira e rendeu uma perseguição incansável. Chamou o plano de "imoral” e “inadmissível”, avisando que, enquanto estivesse vivo, aquilo não aconteceria.  Foi preso por 25 dias, processado quatro vezes, transferido e, finalmente, perdeu a patente. Mas, com sua reação, o conflito vazou, abortando a conspiração. Burnier, que sempre negou a denúncia, nunca foi punido. 

Sérgio Macaco sobreviveu com dificuldades. Exerceu profissões civis até conseguir uma vaga de suplente de deputado federal pelo PDT. Sempre buscou justiça, o que só aconteceu em 1992, quando o Supremo determinou que lhe fosse conferido o posto e o soldo de brigadeiro.

Mas o ministro da Aeronáutica, Lélio Lobo, negou-se a cumprir a ordem. Notificado pelo STF, empurrou a decisão para Itamar Franco. O presidente, porém, somente assinou o decreto que devolveu os direitos ao capitão no dia 11 de fevereiro de 1994. Sérgio Macaco não viveu para saber disso. Morreu seis dias antes da assinatura de Itamar, vítima de câncer.

Não é uma história nova mas sempre vale a pena recordá-la, principalmente neste 5 de fevereiro, aniversário de 26 anos da morte do capitão que salvou o Brasil. Não apenas para exaltar a coragem e o senso de dever de um militar. Também para lembrar que, assim como pioramos em tantas frentes -- menos empregos, justiça, inteligência, sensatez, decência, tolerância, soberania, compaixão... – não nos demos conta que também pioramos -- e gravemente -- na qualidade dos nossos capitães. 
 

Edição: Leandro Melito