Estados Unidos

Sanders representa uma alternativa à ditadura capitalista nos EUA, diz ativista

Apesar de não ter posicionamento anti-imperialista, o democrata é visto como a melhor opção para os trabalhadores

Tradução: Ítalo Piva

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Claudia De La Cruz é educadora, teóloga e ativista de Nova York - Reprodução Skype

À medida em que as prévias do Partido Democrata para as eleições estadunidenses de 2020 avançam, os olhos se voltam cada vez mais para Bernie Sanders, que toma a dianteira na disputa.

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O senador de origem judaica, de 78 anos, perdeu as internas do partido para Hillary Clinton em 2016, mas retorna como um dos nomes mais fortes entre os 14 postulantes às prévias democratas para concorrer à Presidência dos Estados Unidos. O desafio do vencedor será enfrentar o candidato republicano e atual presidente, Donald Trump, nas eleições de novembro.

Até agora foram realizadas prévias em três estados, e Sanders lidera a indicação com 35 delegados. No sábado (29), acontece a primária na Carolina do Sul, e, no dia 3 de março, a chamada Superterça, quando 14 estados fazem as suas prévias no mesmo dia e escolhem um total de 1.357 delegados.

Com uma plataforma centrada na defesa de saúde e educação gratuitas para todos os cidadãos estadunidenses, Sanders é atacado por seus adversários por se apresentar como um socialista democrata. Ainda que essa definição seja tênue, o democrata é a melhor opção para a classe trabalhadora do país, na opinião da educadora, teóloga e ativista estadunidense Claudia De La Cruz.

Claudia nasceu no South Bronx, em Nova York, com a família vinda da República Dominicana, e coordena o Popular Education Project (Projeto de Educação Popular, em português), um coletivo de educadores populares vindos de movimentos sociais nos Estados Unidos.

Para De La Cruz, Sanders se diferencia dos outros candidatos porque fala a partir de uma perspectiva dos pobres, da classe trabalhadora, e propõe mudanças estruturais. “É isso que ele representa, que existe a possibilidade de criar igualdade e abundância para a maioria da população, que tem vivido sob uma ditadura capitalista nos Estados Unidos por tempo demais”, diz.

Nesta entrevista ao Brasil de Fato, a ativista avalia as limitações da "democracia burguesa" dos EUA, as contradições do Partido Democrata, as políticas externa e migratória e sentencia: "Mais quatro anos de Trump pode gerar o caos". Leia a entrevista completa:

Brasil de Fato: Muita gente diz que Bernie Sanders é o único capaz de vencer Trump. Como você vê isso?

Claudia De La Cruz: Bernie se apresenta como um socialista, mas ele traz uma plataforma baseada na defesa do Medicare for All [programa que prevê atendimento de saúde para toda a população], de universidade gratuita, de criação de empregos e melhores salários, e está acumulando muito apoio de ativistas progressistas e de esquerda.

Existe uma crise de legitimidade em relação às estruturas capitalistas, o que contribuiu para aumentar o apoio a alguém que constante e consistentemente se expressa contra a elite e os ricos deste país. Logo, mais importante do que se o Sanders é socialista ou não, é o fato de que ele abriu muito a mente de pessoas da classe trabalhadora e, ouso dizer, da classe média, que entendem que precisamos de mudanças sistêmicas e estruturais no país. É isso que ele representa, que existe a possibilidade de criar igualdade e abundância para a maioria da população, que tem vivido sob uma ditadura capitalista nos Estados Unidos por tempo demais.

O que faz com que ele seja diferente de outros candidatos democratas?

Ele é, acima de tudo, o candidato que captou o imaginário de que se pode ter algo novo e fora do que tem sido o padrão nesse país. Ele foi o primeiro que falou abertamente sobre socialismo em âmbito nacional.

Se ele realmente é ou não um socialista, está aberto ao debate, mas ele com certeza abriu a porta para que, em primeiro lugar, as pessoas queiram saber o que é o socialismo e, em segundo, para ter discussões sobre a população pobre e sobre os níveis de desigualdade e injustiça. Foi criada uma plataforma que trata da brutalidade policial e de questões de raça e igualdade de gênero, que vêm sido atacadas durante o governo Trump e até um pouco antes disso.

Sanders criou um espaço ao redor do qual muito progressistas e pessoas de esquerda estão gravitando, e isso o torna muito diferente dos outros candidatos, que não falam pelos pobres, não falam pelos 99%. Eles falam da classe média, de pequenos empresários, falam de certas reformas que são mais do mesmo.

O Partido Democrata parece não apoiar tanto sua candidatura. Por que isso acontece?

O problema é que ele faz parte de uma ala do Partido Democrata, que é um partido muito institucional, muito capitalista e pró-guerra. Bernie Sanders representa aquilo que eles dizem apoiar, mas que na prática são contra há muitos e muitos anos.

Ele representa uma população que eles não querem escutar nem empoderar. Então, para eles é uma ameaça a possibilidade de que o Sanders se radicalize mais pelo contato com movimentos sociais e setores da classe trabalhadora e de suas demandas. Eles se sentem ameaçados por isso.

Em Iowa não queriam dar a vitória a ele, mesmo tendo ganhado o voto popular, e fizeram uma recontagem dos votos que claramente eram dele. Eles estão com medo e tentando produzir um candidato que achem que vale a pena apoiar. No debate em Nevada, pareceu que a [pré-candidata democrata Elizabeth] Warren é a candidata que o mecanismo vai apoiar. Ela tem apoio em alguns setores da classe trabalhadora, em grande parte porque, durante a crise imobiliária, depois da crise financeira de 2008, ela era uma das pessoas nos Estados Unidos falando sobre moradia e sobre o fato de que milhares de pessoas estavam perdendo suas casas. Tem um setor de trabalhadores que está apostando nela para ser essa pessoa. Mesmo assim, ela não é uma forte candidata, porque tem muitos problemas para um processo eleitoral.

Existem pesquisas que indicam que mais da metade da população não votaria em um candidato socialista. O fato de ele se dizer socialista não torna mais difícil a sua eleição?

Estudos também apontam que metade da população é contra a estrutura capitalista. Temos que lembrar também que nem todo mundo vota, nem em pesquisas nem no processo eleitoral. Além disso, o processo eleitoral aqui não é igual ao de outros países no mundo, voto por voto, em que as pessoas votam diretamente no seu presidente.

Nos Estados Unidos, a democracia é interpretada de uma forma muito burguesa e muito limitada. Nós temos o Colégio Eleitoral, e é ele que vota para presidente. Após o voto popular, são eles que dão a última palavra.

Quando se observa o Trump e as políticas que ele está implementado, como a guerra contra a Venezuela, o aumento de restrições contra Cuba, a possibilidade de guerra contra o Irã, tudo isso é parte da campanha para ganhar estados que apoiam essas bandeiras, como a Flórida, onde existe uma concentração grande de sentimento anticubano e antivenezuelano.

Dentro desse sistema, mesmo que as pessoas tenham afinidade com ideias socialistas, estruturalmente são criados obstáculos no processo eleitoral que tornam mais difícil -- não impossibilitam, porque não é impossível – para as pessoas votarem em um socialista para presidente. A estrutura existente é parte da máquina capitalista e burguesa e feita para que continue sendo assim.

Você é de uma família que veio da República Dominicana, certo? Qual é a importância dessas eleições para a comunidade latina nos Estados Unidos?

Se a gente analisar bem o que está acontecendo na fronteira, temos que lembrar que não começou com Trump, começou bem antes e foi ampliado durante a presidência de um democrata, do [Barack] Obama. É importante para a nossa gente, para imigrantes, estarem sintonizados não apenas com as políticas eleitorais daqui, porque a política eleitoral não é onde devemos colocar nossas esperanças.

O fazer política no dia a dia envolve organização, envolve educar, mobilizar comunidades a não só revindicar, mas também transformar sistemas. Nesse contexto, é muito importante a comunidade imigrante se envolver com a política, porque a maioria de nós é pobre ou da classe trabalhadora, então somos afetados por muitas questões. Estamos vendo o aumento da perseguição a imigrantes sem documentos e um ataque a imigrantes como um todo. Tem um sentimento enorme de xenofobia, de racismo, que afeta a comunidade imigrante.

Acho que mais quatro anos de Trump pode gerar mais caos. Já vimos o caos de milhares de famílias sendo separadas na fronteira, o caos de milhares de pessoas sendo perseguidas, invasões domiciliares. No mês passado teve o caso de um garoto não documentado, que foi confundido pelo ICE [Departamento de Alfândega e Imigração, na sigla em inglês] e levou um tiro na cara no Brooklyn. Veremos mais disso com mais um mandato de Trump, e é muito provável que ele seja eleito mais uma vez.

E quanto às políticas imperialistas dos Estados Unidos? Você acha que Bernie Sanders representaria alguma diferença na política internacional?

Sanders fala muito bem de política doméstica. Na posição em que ele se encontra, de candidato a presidente, demostrar apoio a países que estão lutando por soberania ou se posicionar contra políticas imperialistas pode ser problemático politicamente. Honestamente, não creio que ele tenha ideais anti-imperialistas, ou pelo menos nunca vi. Quando ele fala de Porto Rico, não fala sobre independência. Ele já falou sobre sua posição em relação à Venezuela, então ele claramente não é anti-imperialista.

Eu acho que, para avançar em lutas dentro dos Estados Unidos e fazer a conexão com lutas internacionais, ele oferece uma possibilidade melhor do que qualquer outro candidato. Não é a melhor possibilidade, mas é melhor do que um Trump, uma Warren ou qualquer outra pessoa se candidatando. Ele é perfeito? Longe disso. E, de novo, se ele é ou não socialista pode ser debatido, mas com certeza não teve nenhum posicionamento anti-imperialista que possa ameaçar sua candidatura a presidente.

Estamos vendo também que vêm aumentando as notícias sobre o [ex-prefeito de Nova York e pré-candidato democrata] Michael Bloomberg. Como você vê sua candidatura?

O Bloomberg está basicamente fazendo piada do processo inteiro. Ele é visivelmente alguém que fez escolhas políticas muitos erradas em Nova York. É parte da elite e governou Nova York como uma empresa. Foi responsável por políticas que atacaram e marginalizaram especialmente a juventude negra e latina. Então, apesar de todo o barulho e da vontade por aí, ele não é um candidato muito forte à presidência.

O Bloomberg é quase um Trump, um bilionário conservador, e o oposto de Bernie Sanders. Isso não faz com que seja mais difícil para ele, já que entre um Trump e alguém parecido com o Trump, as pessoas ficariam com o primeiro?

O Trump veio do nada. Ele era um empresário e se inseriu com um tipo de populismo. Foi um resultado dessa crise de legitimidade, desse sentimento anti-establishment. Mas o Bloomberg já tem um histórico, as pessoas sabem quem ele é. Ele tem um histórico político que o vincula a políticas muito ruins e muito perigosas, em um dos estados mais fortes dos Estados Unidos. Ele não tem chance principalmente por causa desse histórico.

O Trump tinha um pouco mais de flexibilidade porque veio do nada, fez uma campanha populista e falou em uma linguagem com a qual as pessoas se identificavam, mas o Bloomberg é bem diferente. Quer dizer, eles são muito parecidos, ambos são ricos, são homens de negócios, mas em termos de sua carreira política e das decisões políticas que já tomaram, o Bloomberg tem um passado que não dialoga com a consciência americana hoje.

Para quem vê de fora, é muito estranho ver um partido que tem um Sanders e um Bloomberg ao mesmo tempo, porque eles parecem representantes de ideias bem opostas.

Isso mostra a polarização e quão dividido está o Partido Democrata. Existem pessoas no partido que, com certeza, se a Warren não for a nomeada, irão apoiar o Trump, porque o que está em jogo são as políticas imperialistas, capitalistas, supremacistas que eles querem que continuem existindo. E farão tudo que for possível para sustentar a estrutura do sistema, a máquina que são os Estados Unidos.

Edição: Rodrigo Chagas