Severino Mota da Silva, um lavrador de 67 anos, tem a vida dividida em antes e depois do Pronaf, o Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar, do governo federal.
Do pouco que tinha antes de ingressar no programa – parcas galinhas, vacas e pés de maracujá –, nada sobrou no pequeno lote que conquistou via reforma agrária, no município de Cidade Ocidental, na divisa entre Goiás e o Distrito Federal.
Por meio do financiamento governamental para incentivo ao plantio familiar, ele teve acesso a uma linha de crédito de R$ 16,8 mil. Com o dinheiro em caixa, animou-se. Planejou-se. Plantou e esperou que a vida crescesse da terra.
Mas veio doença nos animais, veio falta d’água no poço artesiano, veio a devastação na roça. Desesperado, Severino clamou ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para que mandasse técnicos que o orientassem, que indicassem caminhos para evitar o prejuízo todo.
Ninguém apareceu – com exceção de um servidor que foi ao local, bateu fotos para provar que fez a visita, mas logo virou as costas sem mal olhar para o tanto de problemas ali acumulados, segundo o agricultor.
“Fui ao Incra, pedi um técnico. Eles disseram que não tinham como mandar. Porque as duas vezes que eram as visitas já tinham vencido [o Incra disse que era o máximo que os servidores poderiam ir ao ano].
O técnico vinha aqui, me fotografava na frente da casa e dizia que tinha assistido. E recebia o dinheiro lá. Isso é uma maneira de enganar a nós mesmos. É isso que eu me achei: enganado. Eu perdi aquilo que eu fiz com tanta esperança de colher, de levar o produto para a cidade”, lamenta.
Com a roça seca, sem ter de onde tirar dinheiro, Severino arcou com a dívida. Hoje é sobrevivente com um salário mínimo de aposentadoria, com um problema no braço que o impossibilita de bater enxada, e só com a água da chuva para usar. Está com o nome sujo por uma dívida de R$ 23 mil.
“Eu ganho um salário mínimo. Mal dá pra me alimentar. Agora eu, deficiente, sem poder trabalhar, vou tirar [dinheiro] como? Se tiver a máquina, o trator, pra que nos auxilie na aragem da terra na época certa, eu ainda vou tentar fazer alguma coisa. Não que eu não queira pagar. Eu quero pagar. Mas, nas condições financeiras em que eu me encontro, o salário praticamente dá pra comer e comprar o remédio”, relata.
O assentado diz não ter mais esperanças de sair do buraco da dívida. “Tudo isso faz, cada dia mais, esmorecer. ‘Ah, eu não vou viver mais na roça, eu não vou dar mais conta de trabalhar’. Mas, não, nós damos conta de trabalhar. O problema é que nós não temos auxílio governamental, conforme prometido na hora em que libera o Pronaf. A gente se endivida sem saber como fazer. Isso aconteceu comigo e eu estou muito triste por isso, porque eu não gosto de dever. Como todo homem de palavra, ele não deve.”
"Pequenos se lascam"
Ivo Barfknsht, outro agricultor assentado, afirma que não consegue acessar créditos de qualquer tipo desde 2002, quando ingressou no Pronaf pela última vez. Ele conta que, à época, o técnico responsável pelo projeto simplesmente despejou equipamentos e gado no assentamento e nunca mais voltou. Nem pasto existia no local, conta.
“Não tivemos acompanhamento técnico. O que aconteceu na nossa época: o técnico fez o projeto, liberou o projeto no banco para o pessoal, mas o técnico vinha e despejava as coisas aqui. Despejava trator, despejava gado, sem você ter noção de nada do que você ia fazer”, relembra o sem-terra.
Outra vez sem acompanhamento técnico, de novo o crédito se transformou em dívida impagável. Como o projeto era coletivo, todas as famílias ficaram inadimplentes. “Ficamos todos jogados, sem saber o que fazer”.
Ao lidar com as demandas do programa, é comum que servidores só atendam a produtores que retribuam com “agrados”, narra Ivo. “O Incra é um órgão que trabalha muito com propina. Só faz para quem é puxa-saco, para quem é mais ligado a eles. Os pequenos se lascam. Quem não se mostra simpático com eles fica isolado. O que o Incra quer é que você esteja lá todo dia para puxar o saco deles. ‘Olha, vai lá em casa, faz isso para mim, eu vou te arrumar uma galinha’. Só funciona assim”.
O Incra é um órgão que trabalha muito com propina. Só faz para quem é puxa-saco, para quem é mais ligado a eles.
A agricultora Maria Fátima Ferreira Costa tem pouco a oferecer. Ela se mudou para o assentamento em 2013, após a morte do marido. Desde então, tenta acesso ao Pronaf, mas sem sucesso. Ela nunca conseguiu plantar.
“Eu já fiz toda a documentação, já me deram os papéis com autorização para pegar o dinheiro, mas, quando eu fui para pegar o dinheiro, disseram que eu tenho restrição. Eu não sei que restrição é essa.”
No assentamento, ao menos, parece que a resposta vai demorar a chegar. “[Os técnicos do Incra] nunca apareceram por aqui. Não conheço nenhum. Se tem alguém aqui que já viu, é esse pessoal que tem uma condição melhor, que trabalha, que planta, que tem a condição financeira melhor”, diz.
Para Maria Fátima, o Incra “não está nem aí” para o agricultor familiar. “Esse pessoal pensa muito só neles. É o salário deles que eles pensam. Se eles estão recebendo o salário deles, está bom. O resto que se dane. Eu gostaria que eles parassem pra pensar que eles entraram lá dentro para trabalhar, para fazer alguma coisa pelo povo, por nós, aqui na roça, no assentamento. Parassem de pensar só neles. Do jeito que tá, tá bagunçado”, explica.
O Incra afirmou, em nota, que não recebeu nenhuma denúncia sobre irregularidades na região do Distrito Federal, e que estas devem ser comunicadas à Agência Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Anater). O órgão disse ainda que prestação de assessoria técnica compete à empresa contratada pelo próprio beneficiário.
Queda nos contratos
A queda no número de contratos com o Pronaf se acentuou nos últimos anos, conforme dados do Banco Central do Brasil (BCB). De 2013 a 2015, a redução foi de 290.864 contratos – de 1.988.523 para 1.697.659. Já na comparação de 2019 com 2013, a baixa foi de 627.483 contratos (-32%).
O decréscimo sinaliza uma tendência: o crédito vai, cada vez mais, ficar nas mãos de agricultores consolidados em vez dos mais pobres, argumenta o coordenador-geral da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Contraf Brasil), Marcos Rochinski.
“Você tem uma alta concentração no número de contratos. Novamente, aquelas famílias mais consolidadas, mais estruturadas, pegam o crédito. E quem, efetivamente, precisa de crédito, que é o agricultor mais descapitalizado, não consegue pegar. Se pegar, vai se endividar, porque as políticas são inadequadas para o tipo de trabalho que ele desenvolve na propriedade dele”, explica.
Segundo o representante da federação, os agricultores com menos renda com acesso ao Pronaf tendem a se endividar ainda mais, já que o governo tem desmontado programas complementares essenciais para o escoamento da produção familiar.
Quem, efetivamente, precisa de crédito, que é o agricultor mais descapitalizado, não consegue pegar. Se pegar, vai se endividar.
“Além da política de assistência técnica, você precisa também assegurar uma política de comercialização. O que houve, por exemplo, com os principais programas de comercialização de agricultura familiar no último período? Os programas de aquisição de alimentos, de formação de estoque, que comprava dos agricultores familiares. Eles simplesmente foram exterminados. Acabaram”, ressalta Rochinski.
“Se você não tem assistência técnica, se você não tem política de comercialização assegurada, mesmo que você produza, você não vai ter a sua renda assegurada. O endividamento é apenas uma consequência de políticas que estão sendo desestruturadas”, justifica.
Incra em chamas
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) deu outro duro golpe na reforma agrária brasileira no último dia 20 de fevereiro, ao editar o decreto nº 10.252, que altera a estrutura regimental do Incra e enxuga significativamente políticas para o campo.
O ato extingue o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) – o principal programa nacional de educação no campo –, o programa Terra Sol e outros programas de incentivo a assentados, quilombolas e comunidades extrativistas.
Segundo fontes internas, diretores entendem que eles são formas de dar dinheiro ao Movimento Sem Terra (MST), em vez de repassar tecnologia e conhecimento para os assentados da reforma agrária e seus familiares.
“Infelizmente, a gente está vendo um desmonte [no Incra]. A tônica desse governo é dificultar para os pobres e facilitar para os ricos”, diz Marcos Rochinski.
Edição: Rodrigo Chagas