Coluna

Nós que não éramos nada e nos tornamos tudo construiremos um mundo novo

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Clara Zetkin e suas companheiras na II Congresso Internacional das Mulheres Comunistas, Moscou, 1921 - Reprodução
O Dia da Mulher foi um desagravo contra a brutalidade da guerra e a indignidade do patriarcado

Queridos amigos e amigas,

Para Ernesto Cardenal (1925-2020), que foi distribuir panfletos clandestinos no céu.
abraços

Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

Em 8 de março de 1917 (23 de fevereiro pelo antigo calendário juliano), cerca de 100 mulheres das fábricas têxteis de Petrogrado decidiram entrar em greve; elas foram a outras fábricas e chamaram suas colegas de trabalho para as ruas. Em pouco tempo, cerca de 200 mil trabalhadoras – lideradas pelas mulheres – marcharam pelas ruas. “Abaixo a guerra”, elas exigiam. Essa greve desencadeou uma cascata de protestos que finalmente quebraram o Estado czarista e inauguraram a Revolução Russa.

Sete anos antes do início da Revolução Russa, a marxista alemã Clara Zetkin propôs na II Conferência Internacional das Mulheres Socialistas em Copenhague (Dinamarca), a realização de um Dia Internacional da Mulher a cada ano. As delegadas escolheram 8 de março para comemorar a “Revolução de março” de 1848 na Europa, quando as monarquias foram forçadas a aceitar nominalmente o sufrágio universal. A partir de 1911, pela primeira vez as mulheres socialistas realizaram comícios e manifestações no 8 de março. Depois de 1914, o foco era para terminar a guerra. Elas enfrentaram uma repressão terrível, a mais dura, talvez, no império czarista. Mas não puderam detê-las.

Quando todo o conselho editorial do jornal Rabotnitsa [A mulher trabalhadora] foi preso antes do protesto de 8 de março de 1914, Anna Elizarova – irmã de Lênin – se reuniu apressadamente com alguns companheiros, produziu um jornal e distribuiu 12 mil cópias naquele dia. Para essas mulheres socialistas, o Dia Internacional da Mulher foi um desagravo poderoso contra a brutalidade da guerra e a indignidade do patriarcado. Em meio aos eventos de 1917, Ekaterina Pavlovna Tarasova, organizadora bolchevique, lembra que uma trabalhadora disse a ela: “Nós que não éramos nada e nos tornamos tudo, construiremos um mundo novo e melhor”.

Em 1920, a líder bolchevique Alexandra Kollontai escreveu que as mulheres na República Soviética tinham direitos e voto, mas que “a vida mesmo não havia mudado absolutamente. Estamos apenas no processo de luta pelo comunismo e estamos cercadas pelo mundo que herdamos do passado sombrio e repressivo”. O que estava à frente era a luta. No ano seguinte, o II Congresso Internacional de Mulheres Comunistas marcou 8 de março como a data do Dia Internacional da Mulher. Acabaria depois por ser adotado – devido ao trabalho da Federação Democrática Internacional das Mulheres – pelas Nações Unidas, em 1977.

As origens do dia estão em pessoas como Nina Agadzhanova, integrante bolchevique do conselho editorial de Rabotnitsa, que mais tarde escreveu o esplêndido filme O Encouraçado Potemkin; ela se colocou diante de um ônibus em 8 de março de 1917, pegou as chaves do motorista e declarou que a cidade de Petrogrado estava em greve.


O Instituto Tricontinental de Pesquisa Social lançará uma série de estudos sobre a história das mulheres em nossas lutas / Reprodução

Para desenvolver a costura do pensamento feminista socialista, nossa equipe do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social lançará uma série de estudos sobre a história das mulheres em nossas lutas. O livreto de abertura, publicado esta semana para comemorar o 8 de março, estabelece as bases para essa série de textos e oferece uma análise das condições das mulheres em nossos dias, bem como das lutas lideradas por elas contra os regimes de austeridade e guerra. Há análises detalhadas da América Latina, Índia e África do Sul, não apenas em relação aos problemas que elas enfrentam, mas também às formas organizacionais de luta que se desenvolveram em resposta a essas condições adversas. Como escreve nossa equipe, “estamos particularmente interessados ​​em destacar os processos progressistas, feministas e de resistência no Sul Global e em identificar as principais características das lutas de nosso tempo, inspiradas no legado de mulheres em luta ao longo do século XX”. Leia este texto com atenção e compartilhe-o em seus movimentos e em suas redes. Outros textos desta série aparecerão nos próximos meses.

Há quatro anos, em 2 de março de 2016, assassinos contratados executaram Berta Cáceres, uma das líderes do Conselho Cívico das Organizações Populares e Indígenas de Honduras (Copinh). Cáceres e a Copinh lutaram contra a construção de uma barragem no rio Gualcarque, oeste de Honduras. A empresa que estava construindo a barragem – Desarrollos Energéticos Sociedade Anônima (Desa) – lutou contra ela usando todo o poder do Estado hondurenho. A polícia e militares hondurenhos vigiavam o local e foram ex-membros das forças armadas hondurenhas que assassinaram Cáceres. As evidências no julgamento desses homens mostraram a profunda cumplicidade do Estado hondurenho, inclusive do atual governo liderado por Juan Orlando Hernández. Em 2009, o governo dos EUA – junto com a oligarquia hondurenha – derrubou o governo de esquerda de Manuel Zelaya; em seu lugar, eles colocaram os instrumentos preferidos da oligarquia e dos Estados Unidos, ou seja, o Partido Nacional de extrema direita de pessoas como Hernández. Berta Cáceres foi morta não apenas por esses assassinos, mas pelos detritos de um golpe de Estado que estabeleceu um governo de impunidade.

Recentemente, conversei com a filha de Berta Cáceres, Bertha Zúniga Cáceres, que me disse que os últimos quatro anos foram difíceis para ela e para a Copinh, que hoje é coordenado por Bertha. Os assassinos foram condenados à prisão, mas os autores do assassinato – os donos da Desa e funcionários do Estado – não foram investigados ou acusados. Mas não é aí onde ela está colocando sua atenção. Com o peso da tradição feminista socialista em seus ombros, Zúniga Cáceres está focada no tapete vermelho que o governo de extrema direita colocou para as empresas transnacionais extraírem recursos e minerarem os direitos do povo hondurenho. É preciso uma “refundação de Honduras”, disse.

O assassinato de Berta Cáceres ocorreu dois anos depois que homens armados invadiram a casa de Thuli Ndlovu, líder do Abahlali base Mjondolo, na África do Sul. A liderança política local em KwaNdengezi tinha interesse no desenvolvimento de moradias; Ndlovu e Abahlali tiveram a audácia de organizar as mulheres trabalhadoras para confrontar o poder econômico e político local. Foi por isso que Ndlovu foi assassinada. No dia seguinte, Abahlali divulgou uma forte declaração sobre o assassinato. “Nosso movimento está chocado, mas não surpreso”, escreveram. “Aceitamos que alguns de nós morrerão nessa luta (…) Estamos enfrentando uma guerra. A luta por terra e dignidade continua”.

Há muitos outros nomes na lista que inclui Cáceres e Ndlovu.


Miguel Alandia Pantoja, La educación, 1960, o Monumento à Revolução Nacional, La Paz, Bolívia / Reprodução

O presidente hondurenho Hernández entrou em seu segundo mandato em 2018, após alegações de fraude eleitoral que provocaram protestos em massa em todo o país; Hernández respondeu com gás lacrimogêneo e tiros. Ninguém no escritório da Organização dos Estados Americanos (OEA) levantou uma sobrancelha. Hernández, apesar das investigações contra ele por narcotráfico, é favorecido pelo governo dos Estados Unidos. A questão da fraude eleitoral é agora profundamente política, com organizações como a OEA decididas a minar os governos de esquerda. Um novo estudo do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) mostra que não houve fraude nas eleições bolivianas de 2019; o relatório preliminar da OEA apontou uma suposta fraude eleitoral, o que foi usado pelo governo dos EUA e pela oligarquia boliviana para derrubar o governo de Evo Morales Ayma, hoje exilado na Argentina. A extrema direita está no poder na Bolívia e Washington enviou suas equipes da USAID para “monitorar” as eleições (para um resumo sobre o tema, leia nosso Alerta Vermelho nº 6). As condições para as eleições de 3 de maio são terríveis, com violência contra o partido de Morales, Movimento pelo Socialismo (MAS), por parte do aparato estatal. Um funcionário financiado pelo governo dos EUA que ajudou a santificar as eleições em Honduras – Salvador Romero – agora está encarregado das eleições na Bolívia.

Em 23 de fevereiro de 2020, as legiões de extrema direita, incentivadas por integrantes do Partido Bharatiya Janata (BJP) atacaram violentamente os moradores muçulmanos do nordeste de Déli. Até agora, quase 50 pessoas foram mortas e milhares foram feridas e deslocadas. Os homens marcharam pelas ruas cantando palavras de ordem violentas, com o objetivo de intimidar os muçulmanos, espancando, matando pessoas e queimando suas casas. A Polícia de Déli, controlada pelo governo do primeiro-ministro, Narendra Modi, foi cúmplice dessa terrível violência provocada pela lei discriminatória de cidadania do BJP.

Enquanto isso, em Kerala, onde a Frente Democrática de Esquerda está no poder, o governo – através da Missão LIFE – acaba de inaugurar 200 mil casas para os desabrigados. O ministro-chefe de Kerala e líder comunista, Pinarayi Vijayan, disse que seu governo entregou as casas às pessoas sem perguntar sua casta, religião ou cidadania. Só perguntaram “se eles tinham um lar para chamar de seu”.

Um lado da história queima casas; outro lado as constrói.

De 5 a 9 de março, 3 mil militantes participam do Primeiro Encontro Nacional de Mulheres Sem Terra, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em Brasília. Elas estão lá para mostrar que são mulheres em luta e que estão “plantando as sementes da resistência”. No último dia do encontro, as mulheres no México entrarão em greve. A hashtag delas é #UnDíaSinNosotras – um dia sem nós.

Há uma linha reta entre a bolchevique Nina Agadzhanova e as mulheres mexicanas que irão cruzar os braços e marchar nas ruas.

Cordialmente, Vijay.

Edição: Cris Rodrigues