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Experiências nordestinas preservam o cuscuz crioulo

Movimentos buscam a superação de desafios políticos e comerciais diante do milho

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Copirecê e MCP são exemplos de experiências que preservam o cuscuz crioulo - Foto: Léo Drummond/ASA e Maurício Pokemon/ASA
Movimentos buscam a superação de desafios políticos e comerciais diante do milho

O cuscuz é um dos temas presentes na obra clássica Geografia da Fome. O livro foi escrito na década de 1940, época em que o geógrafo Josué de Castro identificou que sertanejos e sertanejas preferiam bater o milho do cuscuz em suas próprias residências. Sebastião Ferreira Sobrinho, por exemplo, nasceu em Ibimirim (PE), no sertão pernambucano, e guarda uma memória afetiva do típico prato, que era feito no Sítio Mulungu naquela época.

“Meu pai plantava o milho e deixava secar na espiga. Ao colher o milho, deixava ele de molho, depois ele era moído numa máquina, peneirado, e aquela massa peneirada fazia o cuscuz do milho puro. Um cuscuz realmente gostoso, diferente desses que a gente vê hoje. Nunca vamos esquecer essa vivência no sítio, de comer as comidas puras, o sabor puro, sem mistura nenhuma", lembra.    

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E a memória afetiva de Sebastião Sobrinho vai ao encontro dos registros científicos de Josué de Castro. O geógrafo relata, por exemplo, que, na década de 1940, até mesmo uma indústria de refinaria de milho foi fechada em Salgueiro (PE). O motivo é que as pessoas preferiam fazer o cuscuz com milho preparado em suas próprias residências. De acordo com Josué de Castro, o segredo nutritivo do cuscuz estava justamente na opção de preparo domiciliar do milho.  

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Mas as décadas se passaram, e a influência da indústria alimentar reduziu bastante a antiga tradição sertaneja com o cuscuz. Por um lado, o preparo continua sendo um dos pratos mais populares na região Nordeste. Por outro, a produção industrializada ocupou as residências e intensificou até mesmo a transgenia na cultura alimentar do cuscuz. 

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Dentro deste cenário, cabe uma pergunta: o que estaria acontecendo o milho crioulo? Ou seja, o que estaria acontecendo com o milho exemplificado pelo relato de Sebastião Sobrinho?

O assessor técnico de sementes Emanoel Dias, da organização AS-PTA, aponta que há desafios de ordem técnica e política para que as pessoas do campo mantenham a produção de um milho sem alteração de sua composição genética. Um exemplo técnico é a facilidade de polinização do cereal. O especialista explica que a simples proximidade física entre lavouras é capaz de contaminar o milho crioulo. Outro exemplo citado é a ausência de políticas públicas que defendam as sementes crioulas.

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Ataque à autonomia 

Os impactos da modificação genética dos alimentos é outro ponto trazido por Emanoel Dias. Ele menciona que o tema é alvo de divergência. Diante da defesa dos transgênicos por determinados setores, pesquisas científicas associam os alimentos geneticamente modificados a danos à saúde.

“Além dessa divergência, o milho contaminado tem efeito na autonomia das pessoas. Uma vez contaminado [o milho], as pessoas vão perder aquela mística da troca, da doação, e vão sempre ter que comprar o milho", acrescenta.

Ou seja, a autonomia no preparo do cuscuz, exemplificada por Sebastião Sobrinho, durante a infância no Sítio Mulungu, passa para outro cenário. Entra em jogo a dependência de empresas e do governo. A modificação genética das sementes de milho na agricultura familiar significa interferir na cultura de produção e de comercialização das sementes que servem para o cuscuz. 

É contra este cenário de dependência que alguns movimentos sociais camponeses estão resgatando a cultura de um cuscuz com milho crioulo. Esses movimentos buscam a superação dos desafios políticos e comerciais para preservar as origens de uma genética que, ao invés dos laboratórios, vem da sabedoria de quem vive no campo. 

Aline Rios, por exemplo, é militante do Movimento Camponês Popular (MCP). Ela tem a tarefa de colaborar com a comercialização do cuscuz crioulo do MCP na região Nordeste. Dentro das atividades, Aline cita três vantagens na escolha de um cuscuz crioulo. A primeira é de ordem afetiva; a segunda é na questão da saúde - considerando que a produção com milho crioulo não utiliza os venenos dos agrotóxicos; a terceira é de ordem financeira - evitando a concentração de renda entre as empresas do setor alimentício. 

“A gente [MCP] tem essa questão do tripé da sustentabilidade. Quando a gente consegue atender o social, o econômico e o ambiental, a gente consegue se fortalecer na produção sustentável de alimentos”.   

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Há outras experiências de produção sustentável de flocos para cuscuz na região Nordeste. Um exemplo é a Cooperativa Agropecuária Mista Regional do Irecê, no estado da Bahia, que produz, em média, 80 toneladas de flocão de milho crioulo por mês, distribuído para todo o país. Para se ter uma ideia, o flocão da Copirecê é o produto mais procurado na unidade do Armazém do Campo no Recife, localizado na Avenida Martins de Barros, no bairro de Santo Antônio. 

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Edição: Geisa Marques