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A peste e o futuro: o que nos espera?

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Médicos do hospital trabalham para testar pacientes para o coronavírus em Newton, Massachusetts (EUA) - Joseph Prezioso / AFP
Há um jogo geopolítico em torno da principal commodity que sustenta o dólar como moeda mundial

Estarrecidos com um mundo paralisando suas atividades, como em filmes de ficção cientifica, cada novo dia vai acentuando a mesma sensação dos personagens de Albert Camus em seu clássico A Peste. Nos sentimos “impacientes com o presente, inimigos do passado e privados do futuro”.

A obra, um clássico com leitura obrigatória nos dias atuais, transcorre em “Oran”, uma imaginária cidade argelina, subitamente acometida pela peste. Em cada página reconhecemos o atual pesadelo que estamos enfrentando.

Atônitos, dedicados à sobrevivência, seus personagens se questionam: “Como poderiam ter pensado na peste que suprime o futuro, os deslocamentos, as discussões? Julgavam-se livres e nunca alguém será livre enquanto houver flagelos”.

Ao descrever o comportamento diante da peste, o autor ilumina uma questão essencial: “todas as ideias gerais soam falsas e o mundo agredido e agressor não lhe parecia nem explicado ou explicável”.

O que nos espera? Que esforços são possíveis para entender e explicar o que se mostra tão imprevisível.

Aparentemente, já estamos diante de uma crise financeira que alguns consideram que pode ser maior que a de 2008, e vai se formando uma opinião majoritária de que ela apenas está iniciando.

Na verdade, duas grandes crises se intercalam, gerando um abalo na economia mundial e potencializando o caos. De um lado o conflito que pode derreter o Petrodólar, de outro a velocidade da pandemia em escala mundial.

Há um grande jogo geopolítico em torno da principal commodity que sustenta o dólar como moeda mundial. A firme postura da Rússia enfrenta a ofensiva dos EUA em vender petróleo abaixo do preço que vinha sendo acordado e cria um novo componente para a crise.

Fiel serviçal da estratégia estadunidense o governo da Arábia Saudita, maior produtor da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), decidiu diminuir os preços da matéria-prima e ampliar a produção em abril.

Os sauditas agem numa clara intenção geopolítica em prejudicar a Rússia e, consequentemente, sua aliança estratégica com a China, além de atingir o Irã e a Venezuela.

A Rússia, que não faz parte da Opep, se recusou a apoiar os cortes, e a organização respondeu removendo seus próprios limites de produção. A queda de braço está lançada.

Assustada com a rápida e firme posição russa, a Arábia Saudita está sendo obrigada a recorrer às suas reservas de petróleo e acelerar ao máximo sua produção. Na medida em que a Rússia conseguir sustentar o embate, o resultado abalará o principal sustentáculo da moeda dólar: o controle do comércio mundial de petróleo.

Salta aos olhos que os EUA estão falidos, não há recursos produtivos para estimular a economia, e tudo o que podem fazer é imprimir mais dinheiro. Porém, diante de uma crise como a atual, essa saída é muito limitada. O próprio Trump já avista um cenário recessivo que pode abalar sua reeleição.

Por outro lado, enquanto o Ministério da Saúde da Espanha divulga que vai estatizar hospitais privados, os governos da França e da Itália consideram a estatização de algumas empresas estratégicas para o combate à pandemia.

Tais notícias, associadas ao uso crescente de reservas dos respectivos tesouros nacionais, despertam a sensação de que poderíamos estar diante de uma nova saída keynesiana para a economia mundial.

Em tempos de neoliberalismo, uma ressalva é necessária, as ideias de John Maynard Keynes de apostar no Estado como agente indispensável de controle da economia, embora guardem total contradição com o pressuposto neoliberal, não correspondem necessariamente a uma solução progressista.

O elemento definidor é a quem serve e quem controla o Estado. A adoção do keynesianismo com a política do New Deal, pelos EUA, durante a grande depressão a partir de 1932, foi acompanhada com um claro discurso de contenção do avanço de ideias socialistas.

Não esqueçamos que o fantasma de uma crise que não para de crescer, ocorre simultaneamente a um gigantesco salto nas forças produtivas que já se convencionou chamar de quarta revolução industrial, que vem alterando velozmente as formas de produção.

A consequência imediata é que as formas de organização e luta dos trabalhadores enfrentam desafios e dificuldades que exigem um tempo para a reorganização da vocação de luta da maioria das classes trabalhadoras.

Frente a este quadro, ainda tão incerto, vale estudar o brilhante trabalho de Naomi Klein, A Doutrina do Choque. Ela nos mostra como as crises e toda a perplexidade que acarretam podem ser usados como terapia de choque.

Usadas para reforçar ideologicamente o sistema. Uma oportunidade para construírem alternativas ainda mais reacionárias e conservadoras, disputando e se apropriando da insatisfação popular.

O paradoxo interessante é que, as situações revolucionárias se abrem, em geral, também, como uma resposta da sociedade diante de uma crise social ou de um impasse histórico sem solução visível por outros meios, a não ser, a entrada em cena das mobilizações de massas.

O que define essa disjuntiva? Sabemos que o mundo não será o mesmo após o enfrentamento da atual crise. Sabemos que as oportunidades serão aproveitadas e respondidas no conflito de classes.

Que ensinamentos o processo histórico nos fornece para avaliar as possibilidades de que a atual crise, cuja profundidade se acentua para além de qualquer prognóstico, possa ser definida pelo avanço ou pela reação? Acarretará uma oportunidade transformadora ou será apropriada como reforço do sistema?

Para Maquiavel de nada nos vale a fortuna, que pode ser comparada a oportunidade, quando não há a virtude (virtú), que não é outra coisa senão a deliberação madura e atenta de como agir.

As experiencias históricas nos comprovam que as explosões sociais, por mais intensas e radicais que se apresentem, não se convertem espontaneamente em revoluções sociais. A iniciativa criativa das massas nunca foi suficiente para alcançar a vitória sobre um regime dominante. Os acontecimentos de maio de 1968 na França estão entre os inúmeros exemplos que corroboram essa afirmação.

O elemento definidor de nosso futuro diante da imensa crise que se desenha é a existência ou a possibilidade de se construir a tempo uma vanguarda.

Sem uma vanguarda organizada, dotada de uma estratégia capaz de concentrar forças no elo decisivo, ou seja, no elo mais fraco do inimigo, nenhuma fortuna, por maior que se apresente, será aproveitada pelos povos, mas inevitavelmente será apropriada pelo capitalismo.

Edição: Leandro Melito