NEOLIBERALISMO

ARTIGO | As vacinas econômicas que não produzimos

Defendido por Guedes, o ilusório princípio da "mão invisível" do mercado nega importância do Estado em meio à pandemia

São Paulo (SP) |
A crise do coronavírus explicita a razão de existir do Estado. Quando tudo o mais falha, recorre-se a ele - Sergio Lima / AFP

Em meio às barbaridades que o governo vem tirando da cartola desde o início da epidemia do coronavírus, algumas medidas na economia mostram vacinas que poderíamos ter preparado antes. Pior: o atual governo sempre negou algumas das doenças a que assistimos em tempo real no noticiário, justamente porque faz parte do problema.

Vale começar pelos princípios de liberalismo obsoletos defendidos pela equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes. Aliás, cabe também lembrar que até mesmo os professores da Escola de Chicago, onde Guedes estudou, discordam das políticas e abordagens dele. Entram nisso o modo como realizou a reforma da Previdência, a falácia da meritocracia, o desmonte da universidade pública e os ataques à pesquisa, a abertura atabalhoada da economia e um imenso etc.

Em termos de memória, o ministro é como o chefe: defende um receituário em voga no início dos anos 1970, esquecendo de propósito o que aconteceu principalmente depois de 2008.

Foi a partir da crise do subprime ("bolha imobiliária americana") e a subsequente quebra de países periféricos europeus que o Fundo Monetário Internacional (FMI) finalmente se deu conta de que o Estado deve garantir um mínimo de renda e amparo social para todos os habitantes.

Guedes saltou essa lição e se aferrou aos princípios da mão invisível infalível e ilusória.

Quer dizer 1: de seu posto no mercado financeiro, Guedes acompanhou cada uma das crises econômicas dos últimos 30 anos e obteve na maioria delas uma mãozinha dos cofres públicos para seu dinheiro continuar crescendo.

Quer dizer 2: Guedes abraçou uma política econômica fajuta. É liberal com aposentados que devem buscar o mercado para garantir renda, mas protege empresários amigos com desonerações de centenas de bilhões de reais. O preço dos combustíveis é livre, mas os caminhoneiros têm uma tabela de pagamentos. Na prática, a teoria é outra.

Essa memória seletiva lembra o comportamento de seu chefe, que costuma agir de modo similar.

Trata-se de delírio, mas um delírio com propósito.

Apenas como breve exemplo antes de abordar as vacinas não produzidas: o pronunciamento nacional de 31 de março (data em que devíamos comemorar o dia da mentira no Brasil, dados os anos de 1964 e de 2020).

Na fatídica noite, foi possível observar mais uma vez a imensa dificuldade cognitiva de Jair Bolsonaro em lidar com a realidade. Trata-se do quarto pronunciamento desde o início da pandemia, exatamente uma semana depois que ele próprio foi à TV puxar briga com governadores sobre as medidas de isolamento.

O que mudou desde então? Quando mudou, exatamente? O que influenciou o chefe de Estado a gastar tanto tempo fazendo interpretação maliciosa de texto, sobre o discurso do diretor da OMS?

A partir de uma suspeita, vamos à hipótese: pela primeira vez, a imprensa deixou o presidente falando sozinho no Palácio da Alvorada, o que o deixou visivelmente perturbado. Quem andava até outro dia ao lado de um palhaço vestido de presidente deve ter choques internos ao perceber que a plateia não existe.

Dá-se como certas algumas conversas palacianas sobre o isolamento político do presidente, algo que sempre acontece e não influencia tanto assim o político sem partido que comanda o país.

O aumento no número de mortes, ainda que muito importante, não norteou o reposicionamento do presidente, pois nada do que ele disse em seu pronunciamento dá a entender que o governo mudou sua forma de atuar para reduzir os óbitos.

Nada em seu pronunciamento dá a entender que finalmente caiu a ficha de que aglomerações elevam o contágio.

Nada em seu pronunciamento indica que ele leu o noticiário sobre crianças morrendo pelo coronavírus, o caso de Milão, a explosão de casos após um culto na Coreia do Sul, os relatórios de economistas que reforçam a necessidade de isolamento.

Nada.

Além da tentativa malsucedida de interpretação de texto, viu-se um aluno que se arruma todo para a aula, decora o discurso de que fez todo o dever de casa e, justamente quando saía para a escola, o cachorro comeu o seu caderno.

Se tivesse consciência, Jair Bolsonaro teria admitido que o único tapa que a realidade conseguiu lhe dar até agora foi na outra face, a cara de pau de político que sempre carregou consigo. O isolamento que ele teme é político, da opinião pública. Frise-se: opinião, e não saúde pública. Foi esse o grande motivador dos minutos que ele ocupou em cadeia de rádio e TV culpando o vírus por suas próprias falhas.

É problema do presidente

Nisso chegamos às vacinas abandonadas.

Por algum tempo, acreditei que Guedes e Bolsonaro tinham dificuldades de ver, embriagados pela alta dose de ideologia rasteira em suas veias, que a crise do coronavírus explicita a razão de existir do Estado e do governo. Quando tudo o mais falha, recorre-se a ele.

No caso do chefe do Executivo, dá-se um desconto: enquanto vivíamos os turbulentos anos econômicos de 1980 e 1990 e a crise de 2008, o sujeito gastava horas exaltando a ditadura no plenário do Congresso.

Economia nova?

Minha visão mudou. Guedes e Bolsonaro sabem o que precisa ser feito, mas não aceitam.  O isolamento obriga a sociedade a funcionar de outra maneira, a roda da economia gira em falso e resta ao governo organizar a bagunça. Como foi na crise da dívida externa, quando o governo foi ao FMI. Ou nas crises dos anos 1990, quando o governo salvou bancos. Ou na crise de 2008, quando o governo colocou muito dinheiro em empreiteiras, bancos, montadoras e outras indústrias. A diferença agora, meus caros, é o alvo da ajuda estatal. Aí é que a porca torce o rabo.

Em vez de cortar IPI de montadora estrangeira que envia renúncia fiscal para outro país na forma de lucro, é hora de injetar dinheiro público no bolso de trabalhadores informais, moradores de locais periféricos, pequenos comerciantes, agricultores familiares e todo o imenso público que este governo finge ignorar. Essa é a equação econômica atual. Uma equação também política.

É importante que o Banco Central libere R$ 600 bilhões para os bancos terem fôlego, como fez de pronto, mas isso apenas não adianta sem repassar uma boa parte disso para a população, na forma de transferência direta ou renúncia de impostos.

É importante que as empresas tenham fôlego para pagar os funcionários, mas vivemos num mundo de poucos funcionários e muitos PJ. Aliás, uma mudança defendida pela equipe econômica atual.

Ao discutir um orçamento separado para os gastos com epidemia, esquece-se que a Constituição já destina um valor específico para a saúde, um investimento que todos os economistas liberais dizem "travar" o Orçamento. Destinar outro valor específico do Orçamento para a educação também serve de vacina para os trabalhadores neste momento. Ou investir em saneamento básico, melhor distribuição fundiária, maior competição entre os bancos. O Brasil estaria mais preparado para a epidemia sem as comunidades carentes nas grandes cidades, que nunca figuraram em primeiro lugar nas políticas econômicas por aqui e hoje nem entram na discussão da equipe de Guedes.

O coronavírus explicita todas as nossas outras doenças como país. O desvario do presidente da República aparece neste contexto como um dos sintomas que mais incomodam. Sendo o Brasil a invenção que é, não é de se surpreender que o primeiro ex-militar na presidência da República desde a redemocratização tenha perdido a guerra contra um vírus.  

* Iuri Dantas é jornalista da área econômica desde 2005 e mestrando em Literatura.

 

Edição: Vivian Fernandes