MARANHÃO

Omissão do Estado e impunidade: o que está por trás do massacre dos guajajara

Zezico Guajajara foi o quinto indígena assassinado em cinco meses no Maranhão. Funai reconhece que sabia das ameaças

Repórter Brasil |
Zezico Guajajara já havia falado, em entrevista no ano passado, sobre seu temor de a impunidade fortalecer os invasores das terras indígenas - Arquivo Pessoal

“Onde o Estado se omite, o genocídio indígena avança”. A frase é do jurista e ex-presidente da Funai Carlos Frederico Marés, que assim retratou à Repórter Brasil o que acontece em dezenas de terras indígenas ameaçadas Brasil afora. Caso das aldeias do povo guajajara no Maranhão, onde essa ausência, segundo ele, abriu caminho para “um conflito gravíssimo, com o envolvimento de interesses econômicos fortes e poucos éticos.” 

O mais recente capítulo desse histórico de violência aconteceu na última terça-feira (31), quando o líder Zezico Rodrigues Guajajara, da Terra Indígena Arariboia, foi morto a tiros próximo ao município de Arame – a 500 km da capital São Luís. Ele é o quinto guajajara assassinado em apenas cinco meses, de acordo com  o Conselho Indigenista Missionário (Cimi). E, desde 2000, o massacre dessa etnia já deixou 49 mortos. Até hoje, nenhum crime foi solucionado.

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A história de Zezico exemplifica bem a omissão do Estado citada por Marés. Ciente do risco de morte que corria, o líder indígena enviou em janeiro uma carta para a Funai alertando sobre ameaças que ele e outras lideranças vinham sofrendo de integrantes da própria aldeia. Mas nenhuma providência concreta foi tomada.

A Funai classificou o caso como uma disputa entre indígenas e apenas orientou Zezico “a comparecer a uma delegacia da polícia civil para prestação de queixa, tendo em vista não se tratar de demanda no âmbito da competência federal”, conforme informou à reportagem.

Assim, a Funai sugeriu ao indígena que fizesse um boletim de ocorrência policial, o que o próprio Zezico já pedia em sua carta à Coordenadoria Regional da Funai no Maranhão. No documento ao qual a Repórter Brasil teve acesso, ele solicitava “autorização para conseguir o transporte para a cidade de Imperatriz a fim de irem até a Polícia Federal para registrar um BO [boletim de ocorrência]”.

A informação de que não era competência da Funai dar um encaminhamento ao caso é contestada por especialistas ligados à questão indígena, que afirmam que o órgão deveria ter garantido que os indígenas ameaçados conseguissem chegar em segurança à Imperatriz, que fica a mais de quatro horas de carro da terra indígena Arariboia.

“Foi uma resposta burocrática. Mandar fazer uma BO não é suficiente. A Funai poderia ter feito muito mais”, afirma Marés. “Mandar falar com o outro. Que outro? Quem mais defende os indígenas além da Funai? Mesmo se fosse um conflito interno, compete a eles, sim, tentar solucionar o problema para não escalar e haver mortes.”

Apesar de ter informado a setores internos (Segat e Sedisc) sobre as ameaças contra Zezico, a Funai não explicou por que não o apoiou para informar a polícia ou o Ministério Público Federal. Também poderia ter levado o caso adiante acionando a chamada Força Tarefa Proteção à Vida Indígena (FT-Vida), formada pelo governo do Maranhão em 2019, diante do aumento de casos de assassinatos entre os guajajara. A força é formada pelas polícias militar e civil para “colaborar com órgãos federais no sentido de enfrentar violações dos direitos indígenas” e “contribuir para a prevenção dos conflitos destes povos”. Segundo o governo maranhense, a Funai nunca informou à FT-Vida a respeito das ameaças.

Moro ignora violência na Arariboia

Sem apoio da Funai para encaminhar a denúncia e sem a proteção e mediação das forças de segurança estaduais, Zezico Guajajara também não pôde contar com a proteção da Força Nacional de Segurança Pública, submetida ao Ministério da Justiça. Após os assassinatos em novembro e dezembro do ano passado, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, autorizou o envio de tropas da Força Nacional ao Maranhão, porém apenas para a TI Cana Brava, deixando Arariboia de fora – o que vem gerando críticas. Os agentes devem ficar na região até junho. 

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“Não sei o que mais é preciso para se expandir essa atuação”, afirmou um indígena que não quis ser identificado. Marés segue na mesma linha: “Desde que as críticas à área de ação da Força Nacional surgiram, já foram dois assassinatos.”

Tanto o envio da Força Nacional como a criação da FT-Vida ocorreram após a morte de outra liderança guajajara: Paulo Paulino Guajajara foi morto em 1º de novembro do ano passado, também dentro da TI Arariboia. Ele era um Guardião da Floresta – uma força de proteção formada pelos próprios indígenas para evitar invasões de madeireiros e proteger suas terras na ausência do Estado, que deveria cumprir esse papel.

‘Atitude irresponsável’

Entidades indígenas criticaram a justificativa da Funai de não agir, analisando as intimidações sem levar em conta o histórico de luta de Zezico na proteção das terras guajajara e a suspeita de confronto inclusive com indígenas cooptados por madeireiros.
 


Cerimônia de enterro de um dos caciques assassinados em dezembro; Raimundo e Firmino Guajajara foram mortos em uma emboscada, que deixou outros indígenas feridos / Mídia Índia

“O Zezico era uma liderança aguerrida, que não concordava com as queimadas e a exploração madeireira e as combatia de forma intensa. Sabemos que ele era ameaçado por madeireiros”, afirma Gilderlan Rodrigues, coordenador regional do Cimi no Maranhão. Para ele, no entanto, a questão vai além de um conflito interno, já que madeireiros estão aliciando indígenas, tornando a situação mais arriscada. Dos 415 mil hectares da TI Arariboia, cerca de 35% já foram destruídos pelos madeireiros, de acordo com dados do conselho. 

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Na opinião do ex-presidente da Funai, Marés, mesmo se fosse uma disputa puramente interna, isso não tira a responsabilidade da Funai. “É preciso ver o contexto. Porque foi assassinada uma liderança. Veja, uma liderança não é morta por coisa pouca, por um pé de couve”, diz.

Dois dias antes de ser assassinado, Zezico, que era professor da rede pública estadual,  assumiu o cargo de coordenador local da Cocalitia, a associação de caciques e líderes da TI Arariboia. Entre suas funções, ele ficaria responsável por implementar ações de proteção do território.

A Apib  (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), cuja coordenadora-executiva é Sônia Guajajara, classificou a atitude da Funai como “irresponsável”. “É lamentável que a Funai publique informações que buscam relacionar o assassinato de Zezico com conflitos internos do povo guajajara. Repudiamos veementemente esta publicação, que desconsidera o histórico de ameaças e viola a memória de Zezico”, diz a nota. 

Em 2014 e em 2018, o Ministério Público Federal já havia exigido da União medidas de segurança para a TI. “As reiteradas violações da terra indígena Araribóia causam um estado permanente de insegurança pública, gerando, inclusive, episódios de conflitos armados, que precisa ser desfeito urgentemente”, diz trecho de uma das ações, que não foi atendida. Após a morte de Paulino, o MPF voltou a propor uma ação para obrigar a União a tomar providências urgentes e reforçar a segurança e o monitoramento do local, mas a Justiça Federal rejeitou o pedido. 

Rodrigues, do Cimi, espera que “haja apuração do crime, porque todos os outros assassinatos em Araribóia não foram elucidados”. A paralisia do poder poder público e a impunidade que alimentam o ciclo de mortes entre os guajajara eram, inclusive, uma preocupação do  próprio Zezico, que afirmou em 2019 à Amazônia Real: “Ao longo desse período perdemos os guerreiros sem punições dos matadores. A Funai sabe toda a história, mas também sempre acobertou os casos. Assim, os madeireiros foram pegando fôlego, devido a não existir punições aos crimes.”



Edição: Repórter Brasil

Edição: Mauro Ramos