Marajó

Artigo | Ensaio sobre a dignidade

Bancos privados e Banco Central têm relação promíscua que afeta decisivamente o dia a dia dos lares amazônicos

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
O Marajó detém 96% de suas florestas  e lida com a grande contradição entre ter riquezas florestais e ter as mesmas como geradoras de divisas para atender sua população - Foto: Leandro Melito

O Brasil por suas bases não seriamente pensadas para o coletivo, não reestruturadas e não transformadas, equivocadamente andante desde sua gênese, pisa no século XXI com hábitos de traficantes, de capitão do mato, opressores, latifundiários, racistas, machistas, num mapa mental de pirâmide financeira. Entender isto é hoje uma escolha, haja vista as inúmeras obras que tratam da formação política e socioeconômica do Brasil aqui recomendada a Elite do Atraso, de Jessé Souza (Souza, 2017).

Não obstante suas fortes pendências históricas, não se pode dizer que não houvera processos e pessoas que perseveraram (e/ou perseveram) por modelos de gestão do país voltados para a inclusão da população, de maneira indistinta, naquilo que chamamos de democracia.

Registradas minhas sinceridades com a estrutura brasileira, focarei na região em que muito trabalhei: o Marajó e seus 16 municípios. Nasci nesta mesorregião do Pará que possui cerca de 10,4 milhões de hectares e que chegou em 2019, de acordo com estimativas do IBGE, em 564 mil habitantes.

O Marajó detém 96% de suas florestas de acordo com o INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) e lida com a grande contradição entre ter riquezas florestais e ter as mesmas como geradoras de divisas que permitam dar respostas socioeconômicas à sua população e não a poucos, como no caso da exploração madeireira em Portel (Ramos, 2019), que não retira mas empobrece a floresta.


Gráfico de desflorestamento na mesorregião marajoara detectado pelo INPE / Carlos Augusto Ramos

Sobre a segurança da terra, 47% de suas áreas são habitáveis com destinação fundiária, segundo cruzamento de informações entre os registros de assentamentos agroextrativistas e Territórios Quilombolas de competência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Unidades de Conservação de competência do ICMBIO, Territórios Quilombolas Estaduais de Competência do Instituto de Terras do Pará (ITERPA) e Unidades de Conservação Estadual de competência do Instituto de Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade do Estado do Pará.(Ideflor-Bio), Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas), Sistema do Cadastro Ambiental Rural do Pará; e MapBiomas, inovadora plataforma de monitoramento da cobertura do solo no país.


Reforma Agrária promovida no Marajó sobretudo nos anos 2000 / Carlos Augusto Ramos

Em relação ao Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), 8 de seus 16 municípios estão entre os 50 piores índices avaliados no Censo do IBGE de 2010: Breves (5520 º), Curralinho (5524 º), Afuá (5543 º), Anajás (5550 º), Portel (5553 º), Bagre (5558 º), Chaves (5560 º) e Melgaço (5565 º).

Melgaço está em último lugar entre os 5.565 municípios. Para esta análise, é fundamental levar em conta que metade das localidades marajoaras estão em situação dramática quanto à promoção de dignidade e acesso às políticas públicas, cuja responsabilidade é do Estado Brasileiro, imperativo que é de sua Constituição de 1988 em seu Art. 3º:

... Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação...”.


Eu poderia continuar traçando mais descrições sobre o Marajó neste ensaio, porém, como muitos cientistas já o fazem do ponto de vista histórico, socioeconômico e ambiental e com muita competência - marajoaras como a historiadora Eliane Costa, de Breves e do agrônomo João Paulo Carvalho, de Curralinho são exemplos que conheço das dezenas de profissionais engajados em elevar a ciência na região - prefiro aqui deter-me neste documento à palavra DIGNIDADE.

É substantivo descrito entre suas demais explicações como a qualidade moral que infunde respeito ou a consciência do próprio valor. E diante disto, tenho me perguntado se a Federação tem promovido a Dignidade como preconiza a Carta Magna. Se a promove, como medir?

Ao percorrer a lembrança minha que trata de um lado os igarapés que, incontáveis, fazem da vida no estuário amazônico um imenso território e, do outro lado, a luta da Organização Não Governamental Auditoria Cidadã da Dívida Pública, coordenada por Maria Lucia Fattorelli - ex-auditora da Receita Federal e membro da Comissão de Auditoria Integral da Dívida Externa Equatoriana (CAIC) - percebi de maneira geral que bancos privados e Banco Central tem uma relação promíscua que afeta decisivamente o dia a dia dos municípios e dos inúmeros lares amazônicos como os do Marajó.

Relação esta que envolve recursos públicos onde são executados juros sobre juros da dívida que o Brasil tem junto a seus credores, chamado por Fattorelli pelo termo técnico de anatocismo, ilegal segundo os tratados internacionais.

Em 2019, O Orçamento Geral da União (OGU) destinou para pagamento 38,27% de seus recursos para seus credores (Auditoria da Dívida Pública, 2020). Ao mesmo tempo, o governo desgraçadamente destinou 0,02% para saneamento básico e culpou a Previdência Social por tentar “quebrar o Brasil” em seus 25% de uso do OGU.

Este discurso inclusive contou com a ajuda de apresentadores de programas da mídia televisiva com suspeita de serem patrocinados pelo próprio Governo Federal  que tem como ministro da Economia um ex-acionista de banco privado. Segundo a revista Época, o governo pagou R$ 268,5 mil para o apresentador de televisão Ratinho fazer propaganda da reforma previdenciária.

O irônico é que esta promiscuidade estatal se arrasta há décadas e não foi inventada pelo Governo Bolsonaro. Seu ministro da economia, porém, aparenta ser mais voraz que os outros.

Desta maneira, acompanhando a condução do OGU, pensei no Marajó. Pensei no repasse anual aos marajoaras deste orçamento. Resolvi somar o volume de recursos transferidos para a região, sistematizando dados dos anos de 2010 a 2019, captados no Portal da Transparência do Governo Federal.


Repasse total de recursos aos 16 municípios do Marajó / Carlos Augusto Ramos

Notem que o volume de recursos estava em uma crescente de 2010 a 2015, com queda em 2016, coincidentemente ano do Golpe de Estado Jurídico-Parlamentar-Midiático-Empresarial que retirou Dilma Rousseff da Presidência da República.

Em 2019, mostra-se uma melhoria do montante repassado, entretanto, há de considerar a Emenda Constitucional 95, a Lei do teto dos Gastos Públicos, aprovada ainda no governo de Michel Temer, como barreira para uma nova crescente.

Considerando que o IBGE realiza estimativa anual do número de habitantes no país, resolvi aprofundar a curiosidade em saber como estaria este recurso investido em cada marajoara. Assim, em 2019, na razão entre o valor de investimento federal total por município dividido pela população estimada anual do município, este valor ficou em R$ 1.537,04/habitante, o que seria equivalente a uma média mensal de R$128,07/habitante.


Desempenho dos recursos federais por habitante marajoara de 2010 a 2019 / Carlos Augusto Ramos

Os dois gráficos anteriores são resultado do entendimento que havia um investimento crescente no Marajó e que a partir de 2016 foi interrompido e que não logrou chegar a R$2.000,00/habitante. Também entendi que os recursos de R$128,07/habitante.mês em 2019, por exemplo, me dariam a oportunidade de debater com a população regional se tal valor era suficiente para afirmar que o Brasil lhe estaria promovendo a Dignidade. Em comparação ao Estado do Pará, por exemplo, o Marajó recebeu proporcionalmente bem menos em repasse federal, como apresento na tabela abaixo:

Valor de Investimento Federal em 2019 para o Estado do Pará e seus Municípios

R$ 19.734.112.253,24

População Estimada do Estado do Pará em 2019

 

8.602.865

Valor de Investimento Federal por Habitante do Estado do Pará em 2019

R$ 2.293,90

Valor de Investimento Federal por Habitante/mês em 2019

R$ 191,16

Valor de Investimento Federal por Habitante do Marajó para o ano de 2019

R$ 1.537,04

Valor de Investimento Federal por Habitante do Marajó/mês em 2019

R$ 128,09

Fonte: Portal da Transparência.

E tal valor comparativo, confesso que até forçado, pois seria de natureza econômica diferente, mas moralmente denunciante, surgiu do valor considerado pelo mercado e instituições como o limite para a extrema pobreza. Esse limite, de acordo com definição do Banco Mundial, organização poderosa que influencia políticas em todo mundo, atualmente envolve pessoas com renda inferior a US$ 1,90 por dia ou R$140,00 por mês.

O Valor de 140 reais/mês estabelecido pelo Banco Mundial me fez pensar como estariam os municípios marajoaras a responder uma pergunta que repito, são de números de natureza distinta, porém, de valor que nos movem a refletir se um habitante recebe o investimento abaixo, acima ou igual àquilo considerado como limite de uma situação indigna.

Tal número me permitiu simular uma escala levando em conta o Repasse Federal ou Investimento Federal por Habitante/Mês (IFH), com R$140/Mês como ponto 0, que assim indico numericamente em uma escala de -10 a 10:

IFH (R$)

40

50

60

70

80

90

100

110

120

130

140

150

160

170

180

190

200

210

220

230

240

Pontos na Escala EPD

-10

-9

-8

-7

-6

-5

-4

-3

-2

-1

0

1

2

3

4

5

6

7

8

9

10

Seguindo o raciocínio, realizei um exercício matemático com a ajuda valiosa de minha filha Bianca Ramos, engenheira de telecomunicações, que me orientou de maneira a permitir que eu localizasse os municípios nesta escala, cujo singelo ensaio de equação apresento: y = (VIFH-VLEP)/10, onde:

VLEP = Valor Limite da Exrtema Pobreza Mensal indicado pelo Banco Mundial em 2018
VIFH = Valor de Investimento Federal por Habitante/mês para o ano de 2019.
10 = Valor do módulo para a escala para valores positivos e negativos.
y = EPD = Escala da Promoção da Dignidade

Com isso, foi possível para 2019 entender como estariam as localidades quanto à promoção da Dignidade pelo Governo Federal:

MUNICÍPIO

VIFH

EPD

MUNICÍPIO

VIFH

EPD

AFUÁ

R$ 148,55

0,9

MELGAÇO

R$ 152,12

1,2

ANAJÁS

R$ 149,57

1,0

MUANÁ

R$ 115,40

-2,5

BAGRE

R$ 103,77

-3,6

PONTA DE PEDRAS

R$ 103,67

-3,6

BREVES

R$ 138,57

-0,1

PORTEL

R$ 126,78

-1,3

CACHOEIRA DO ARARI

R$ 102,43

-3,8

SALVATERRA

R$ 126,01

-1,4

CHAVES

R$ 136,22

-0,4

SANTA CRUZ DO ARARI

R$ 107,89

-3,2

CURRALINHO

R$ 134,22

-0,6

SÃO SEBASTIÃO DA BOA VISTA

R$ 131,05

-0,9

GURUPÁ

R$ 155,99

1,6

SOURE

R$ 117,16

-2,3

MÉDIA DO MARAJÓ

R$ 128,09

-1,2

 

 

 

 

 

 

VLEP

R$ 140,00

 

 

 

 


Localidades quanto à promoção da Dignidade pelo Governo Federal / Carlos Augusto Ramos

E na média marajoara de -1,2 na EPD para o ano de 2019, não há como não desafiar o governo federal a melhorar essa marca e daí o propósito deste ensaio. Não há como fugir da praticidade da pergunta: o que é efetivamente o programa “Abrace o Marajó?" É um abraço sincero, com aumento dos investimentos por habitante marajoara para a Escala +10 de EPD, de 240 reais por habitante ao mês?

Com a pandemia da covid-19, O Congresso Nacional aprovou o auxílio emergencial para apoiar as famílias brasileiras durante a crise, o que deverá elevar o Investimento Federal por Habitante do Marajó em 2020 e daí só saberemos seu valor no início de 2021 a partir de um novo estudo realizado. Contudo, não é mais possível admitir que este mesmo IFH volte aos mesmos patamares que antes, de R$128,00/habitante-mês. Sabemos agora que podemos e merecemos estar na Escala de Promoção da Dignidade no máximo de sua possibilidade.

E a gente só quer viver sossegado, concepção marajoara para o Bem-Viver. Respeite. 

*Ensaio elaborado para a crítica do programa “Abrace o Marajó”, decretado pelo Governo Bolsonaro, em março de 2020. Carlos Augusto Ramos é engenheiro florestal, consultor EcoSocial da ONG FASE, Fetagri; atuou em projetos voltados para políticas públicas e manejo dos recursos naturais pelo PNUD no período de 2017 a 2019; Atuou em projetos de desenvolvimento da economia do açaí na Colômbia no ano de 2019 pelo Fondo Accion.

Edição: Leandro Melito