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Augusto Aras, o novo Brindeiro, faz da PGR esteio do governo

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A postura do dirigente máximo do Ministério Público Federal tem sido no sentido de negar o impacto das ações do presidente da República, que chamam a atenção do mundo inteiro - José Cruz/Agência Brasil
O Procurador Geral da República refuta qualquer ação para coibir atos abusivos de Bolsonaro

Geraldo Brindeiro foi Procurador-Geral da República durante todos os oito anos de governo de Fernando Henrique Cardoso, de 1995 a 2003, quando encerrou o mandato já no governo Lula.

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Sua atuação foi marcada pelo completo alinhamento aos interesses do governo e blindagem de qualquer escândalo.
Sua análise era tão escancaradamente parcial e protecionista, que Brindeiro ficou conhecido como “engavetador-geral da República”, pela obviedade de não dar encaminhamento a nenhuma denúncia envolvendo os membros do governo e aliados, nem mesmo a da “pasta cor-de-rosa” e da compra de votos da emenda da reeleição, escândalos com todos os elementos passíveis de investigação e provas abundantes de crimes.

Para entender o tamanho da responsabilidade no arquivamento, a “pasta rosa” foi apreendida pelo Banco Central na sede do Banco Econômico, em Salvador, com a lista de candidatos que haviam recebido dinheiro na campanha, e registros de doações às campanhas eleitorais feitas pelo Banco Econômico. Planilhas com nomes completos de candidatos, valores de doações, cargos em disputa e meses em que foram feitos pagamentos de despesas de campanha. Os gastos estavam devidamente registrados em notas fiscais, duplicatas e faturas, além de ordens de pagamento emitidas pelo Econômico em favor das empresas que prestaram serviços aos candidatos. Havia, ainda, cópias de cheques administrativos do banco, com o nome do candidato beneficiado escrito à mão. Era uma denúncia pronta, com todas as provas.

Quando o Diretor-Geral da Polícia Federal, Paulo Lacerda, apresentou a notícia crime ao STF a partir de suas investigações, Brindeiro encaminhou parecer pedindo arquivamento, chamando de “meras conjecturas”.
No dia 28 de janeiro de 1997, foi aprovada a emenda constitucional que permitia a reeleição para o cargo de Presidente da República. Quatro meses depois, dois deputados federais foram gravados confessando ter votado a favor da emenda, em troca de R$ 200 mil, recebidos em dinheiro. Outros três deputados eram citados de maneira explícita, e dezenas de congressistas teriam participado do esquema. Os dois deputados gravados, Ronivon Santiago e João Maia, do PFL do Acre, renunciaram aos seus mandatos.

Apesar da fartura de provas documentais, Geraldo Brindeiro não acolheu nenhuma representação que pedia a ele o envio de uma denúncia ao Supremo Tribunal Federal.

Augusto Aras, nomeado por Jair Bolsonaro (sem partido) em setembro de 2019, não concorreu à lista tríplice do Ministério Público Federal (MPF), uma tradição republicana iniciada com o governo Lula. Foi indicado pelo deputado federal Alberto Fraga (DEM-DF), ex-coronel, da bancada da bala e envolvido em denúncias de corrupção. A demora na nomeação, que ocorreu após o fim do mandato de Raquel Dodge, foi permeada de discursos e comentários feitos pela família do presidente da República e por ele próprio, de que gostaria de um Ministério Público que “não atrapalhe” o seu governo.

Em comum com Brindeiro, Aras não parece ter somente a forma da nomeação, sem participação da categoria. Até aqui tem se mostrado também um Procurador-Geral alinhado e leal ao governo que o colocou no cargo.
Aras rejeitou, recentemente, pedido de subprocuradores para obrigar Bolsonaro a seguir recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) no combate à pandemia de covid-19. E ainda deu “pito” nos colegas: "O Estado brasileiro está funcionando normalmente”. Os colegas de Aras entenderam que o pronunciamento de Jair Bolsonaro, no dia 24 de março, desautorizou as medidas de combate ao coronavírus, trouxe riscos de desarticular os esforços das autoridades sanitárias, e advertiram que ele pode ter incorrido em desvio de finalidade.

Precisamente no dia 7 de abril, a PGR arquivou seis representações que pediam a abertura de investigação criminal contra o presidente da República, justamente em decorrência dos atos praticados por ele durante a crise envolvendo a pandemia. Atos que foram, inclusive, objeto de denúncias em cortes internacionais. As decisões foram comunicadas por Augusto Aras ao ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, que havia enviado os casos para análise pelo órgão.

Dias antes, Aras já havia deixado de encaminhar uma representação assinada por 18 subprocuradores-gerais, para que movesse uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) contra os atos de Bolsonaro estimulando a volta às atividades e o fim do isolamento. Sustentou, para tanto, que a ADPF não é o meio cabível para ingressar no STF, mas instrumento constitucional de natureza marcadamente objetiva, que tutela o direito objetivo de maneira ampla, geral e abstrata e, por isso, "não é permitida utilização para a tutela jurisdicional de situações individuais - assim como na ação direta de inconstitucionalidade ou na ação declaratória de constitucionalidade".

Uma após a outra, Augusto Aras refuta qualquer ação que possa servir para coibir atos abusivos do presidente da República, mesmo em juízo prévio de averiguação. Com isso, sela a postura que assume diante do governante. Escolhe, em princípio, um dos caminhos na encruzilhada de estar à frente de uma instituição a quem foi dado o papel de uma das defensoras da democracia, em um governo que não tem por ela nenhum apreço. Aliás, a cooptação da maior autoridade do Ministério Público para defender atos de governo simboliza um deslocamento para o espaço de debate moral sobre o exercício do cargo que ocupa.

Esse modelo de relacionamento, estranho à Constituição brasileira e às normas que regem a conduta do Ministério Público Federal, coloca ainda mais em perigo a frágil estabilidade institucional.

O autoritarismo autista de Jair Bolsonaro, diante de uma grave crise de saúde mundial, possui neste momento uma funcionalidade que ameaça as vidas de milhares de pessoas, e requer instituições com dirigentes fortes e dispostos a fazer cumprir as normas nacionais e internacionais. A irracionalidade do chefe do Poder Executivo é de tal magnitude que coloca toda a sociedade brasileira em risco, inclusive projetando discursos higienistas, que beiram o grotesco, minimizando o impacto da morte de pessoas de grupos sensíveis à doença provocada pelo vírus.

Nesse contexto, as funções atribuídas ao Ministério Público na Constituição brasileira, que o colocam em uma interessante posição de defensor da sociedade contra possíveis abusos do Estado, facultando-lhe tanto agir por sua própria iniciativa, sempre que considerar que os interesses da sociedade estejam ameaçados, quanto ser acionado por qualquer cidadão que considere que algum direito ou princípio jurídico esteja sob ameaça, adquirem exponencial relevância.

A postura do dirigente máximo do Ministério Público Federal tem sido no sentido de negar o impacto das ações do presidente da República, que chamam a atenção do mundo inteiro, ao minimizar os efeitos da doença, como ao sugerir que as medidas de controle se restrinjam apenas aos mais velhos, e contrariam órgãos de saúde, distorcendo o cenário da pandemia.

É a exata antítese do que afirmou recentemente o decano do STF, ministro Celso de Mello, que "o Ministério Público não serve a governos, não serve a pessoas, não serve a grupos ideológicos, não se subordina a partidos políticos, não se curva à onipotência do poder ou aos desejos daqueles que o exercem, não importando a elevadíssima posição que tais autoridades podem ostentar na hierarquia da República".

Provavelmente, o Supremo Tribunal Federal precisa lembrar isso ao atual Procurador-Geral da República.

Edição: Rodrigo Chagas