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Cospe-fogo: poema escrito por filha a partir de relato da mãe na Comissão da Verdade

As luzes brancas permanecem acesas, arbitrárias por todas as vinte quatro horas, dentro da prisão

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A escritora, Joana Côrtes, conheceu a história que sua mãe, Ana Maria Côrtes, viveu durante a ditadura durante o depoimento à Comissão da Verdade - Foto: Kelly Santos
As luzes brancas permanecem acesas, arbitrárias por todas as vinte quatro horas, dentro da prisão

Era 19 de maio de 2016 quando Ana Maria Rolemberg Côrtes ficou frente a frente com a Comissão Estadual da Verdade de Sergipe.  Durante sua colaboração, cada frase de seu relato fazia com que mergulhasse mais em suas memórias, revivendo todas as mudanças no período da juventude, entre Sergipe, São Paulo e Pernambuco. Andanças essas, acompanhadas de pouca mala e muitas dores e cicatrizes causadas pela ditadura que assombrou o Brasil entre 1964 e 1985.

Ana Côrtes teve que relatar torturas sofridas nos anos 1970 e que são difíceis de compartilhar até mesmo com a própria filha. Joana Côrtes, conheceu algumas das histórias da mãe apenas durante essa sessão de 2016. Foi assim que decidiu trilhar os caminhos poéticos para fazer com que a história da mãe dela e do país ganhasse novas luzes para interpretação. 

“A poesia é uma arma quente, uma arma super poderosa porque ela lida com as liberdades do pensar, do imaginar, do que você queira falar. Em todo período ditatorial o que se quer é controlar da maneira que elas querem, censurar, não deixar que você se expresse. Então a poesia é essa cortina que faz com a madrugada saiba que vai amanhecer”, reflete. 

Joana Côrtes diz que é filha da liberdade. Isso porque ela nasceu em 1980, ano em que Ana Côrtes, enfim, pode reencontrar o companheiro dela. Com a Lei da Anistia, Bosco Rolemberg, pai de Joana e companheiro de Ana, conseguiu, enfim, voltar para casa. Joana, a filha do casal de ex-presos políticos, é poeta, jornalista e mestra em história social. Ela juntou relato e escuta das memórias de família e do país, para criar o poema Cospe-fogo.


Relembrar as violências feitas pela ditadura militar é acender cicatrizes. / Foto: Kelly Santos

O texto de Cospe-fogo foi lançado em 2019 como livrofotopoema, em Barcelona e São Paulo, respectivamente. Além da interação entre mãe e filha no poema, a publicação da obra conta ainda com arte de Mayra Suzuki, Kelly Santos, Lucas Bandeira, Rayssa Oliveira e Dario Marroche, na tradução. 

Cospe-fogo adentrou recentemente em mais uma linguagem. A simbólica data do 31 de março - dia do golpe militar em 1964 - abriu espaço para o lançamento do vídeopoema neste ano. A peça audiovisual conta com direção de Priscila Magalhães e está disponível no Youtube. A iniciativa é uma forma de fazer Cospe-fogo navegar ainda mais fluído na dinâmica dos tempos, de acordo com Joana


O poema Cospe-fogo ganhou uma versão audiovisual com direção de Priscila Magalhães / Foto: Kelly Santos

“Passar essas vivências que estão nas falas cotidianas das nossas gerações mais antigas para os mais novos, para as crianças e jovens que virão terem noção do que acontece, do que aconteceu. Então a minha poesia traz esse lugar o cotidiano, da fala comum e desse lugar de lavrar o testamento, de passar adiante essa herança de memória, de resistência, de luta, de denúncia”, salienta.

Cospe-fogo veio a partir de diferentes momentos da vida de Ana Côrtes. O poema é inspirado nos relatos da militante nos anos 1970, de um período da década de 1990 quando foi diagnosticada com depressão. E por fim das eleições de 2018

Leia o poema Cospe-fogo:

“Os filhos passavam ali a largo
Mesmo ela fazendo vitamina de banana 
e cuscuz todos os dias 
Todos os dias 
Todos os dias 
Até que cada um deles terminasse o colegial 
o segundo grau 
o ensino médio 

Conta isso tomando sorvete de coco 
Naturalmente 
Que os filhos passavam ali 
como se não fossem nada  

Cada pedaço na boca 
Ela diz que não desejaria ao pior inimigo 
Aos crápulas 
Ao Drácula 
Ao Temer 
Ao Trump 
Aos déspotas 
Às formigas trinca-cunhão

A tortura 
A insônia 
A vontade de sair porta afora e nunca mais voltar 
A dificuldade de escolher uma peça de roupa 
O modelo o tecido a cor o tipo de botão 

Até derreter 
Até não sobrar mais nada 
As mãos penduradas 
Os pés fora do chão

Esses são ainda os nossos tempos: 
As luzes brancas permanecem acesas 
arbitrárias por todas as vinte quatro horas 
dentro da prisão

Nascer boêmia 
Viver de bar em bar 
numa zona bem longe das ditaduras 
Ou fugir com o circo 
Ser nômade Confessa: 
É o desejo dela 
Para próxima encarnação 

Mamãe toma gelado 
e fala da danada, 
(o apelido que encontrou para não dizer a palavra exata) 
[trapacear um nome para doer um pouco menos, depressão] 
Como quem cospe 
Querosene 
Álcool
Gasolina

ou 

como quem percorre o aceiro 
o atalho de um terreno entre o mato e a cerca 
Para impedir incêndios 
Para evitar que a própria língua queime.

Edição: Lucas Weber