GRANDES FORTUNAS

Artigo | O neofascismo e o rentismo associados contra o povo

"A burguesia interna possui uma relação siamesa com a burguesia mundial nos negócios e na política"

São Paulo (SP) |
Sistema financeiro reúne 75% dos bilionários brasileiros; entre eles, Joseph Safra, o banqueiro mais rico do mundo - Daniel Slim/AFP

Segundo uma publicação de setembro de 2019 da revista Forbes, o Brasil possuía 200 bilionários. Somadas, as suas fortunas chegam a R$ 1.205.800.000.000,00 (mais de 1 trilhão e 200 bilhões de reais). Isso corresponde a 44,45% do orçamento da União executado em 2019, ou 16,5% do Produto Interno Bruto (PIB) de 2019, que somou R$ 7,3 trilhões. Entre os bilionários, 75% de suas fortunas e negócios estão relacionados diretamente com o capital financeiro — bancos, seguradoras, planos de saúde e serviços privados, operadoras de cartões e outros. Tal composição revela o caráter perverso do capitalismo de periferia e da burguesia interna brasileira.

Evidentemente que não são os únicos bilionários. Estes são associados subalternos com os donos do poder e das fortunas globais, que se encontram nos países centrais do capitalismo. Florestan Fernandes há tempos havia revelado que a burguesia interna possui uma relação siamesa com a burguesia mundial nos negócios e na política e que, historicamente, se viabiliza pela aliança entre capitalistas brasileiros, os militares, os burocratas do Estado, mais a burguesia internacional e os centros de poder mundial. Assim, controlam o Estado, as áreas estratégicas da economia, enquanto o governo, de plantão, garante autoprivilégios e proteção.

Conforme dados da Auditoria Cidadã da Dívida, no orçamento de 2019, a União gastou R$ 1,038 trilhão em juros e amortizações da dívida, correspondente a mais de 38% do orçamento ou 14,2% do Produto Interno Bruto (PIB). Enquanto os rentistas promovem a rapinagem da maior parcela do orçamento público em plena crise da pandemia, o governo Bolsonaro insiste que as massas trabalhadoras voltem a trabalhar. Por quê? Porque a burguesia associada sabe muito bem que, sem o trabalho dos trabalhadores, não há produção de valor e acumulação de riqueza. O enigma do capital é o lucro. Por isso, encastelados em suas mansões e em seus carros blindados, insistem na estratégia de colocar o lucro acima da vida e fazem carreatas em carros luxuosos para cobrar que os trabalhadores voltem aos postos de trabalho.

É evidente que o capital financeiro domina o orçamento público do Estado e também as fortunas, que estão guardadas nos bancos e em paraísos fiscais. Controlam a riqueza e o Estado. Ora, qualquer iniciativa séria para atenuar o sofrimento das massas trabalhadoras frente à crise de pandemia exigiria reorientar os gastos do dinheiro público do Estado e taxar os bilionários. Por isso eles — a burguesia e o governo — querem que o povo volte ao trabalho.

Alinhado aos banqueiros e empresários ricos, o governo Bolsonaro, ao não tomar iniciativas de Estado para proteger a vida do povo, aposta alto na fome e na miséria das massas trabalhadoras para obrigá-las a voltar ao trabalho e produzir lucro aos bilionários, mesmo que o pico de contaminação pelo coronavírus esteja longe de ter sido atingido. Assim, o governo de plantão leva à risca a estratégia de privilegiar os privilegiados.

Não nos iludamos. O neofascismo tem sido apenas um porta-voz do poder e da dominação burguesa moderna. Não devemos nos iludir com as contradições momentâneas nos espaços das representações políticas da burguesia porque, para estes, o inimigo central é o povo. O governo Bolsonaro não é uma fatalidade passageira, mas a expressão do caráter da burguesia brasileira, que historicamente se unificam e se associam para garantir o monopólio do controle do Estado aos de cima e a continuidade da extrema exploração e violência contra os de baixo.

Assim, tendo em Paulo Guedes e sua equipe como testas de ferro do capital financeiro, os rentistas não abrirão mão de seus privilégios e do controle financeiro do Estado. Eles são os que sequer admitem propostas para implantação de políticas de garantias mínimas ao povo brasileiro, já que, nos últimos dias, o setor financeiro restringiu crédito e aumentou os juros. O máximo que aceitaram foi R$ 200,00 para uma pequena parte de trabalhadores em estado de miséria e após muita pressão foi conquistado R$ 600,00.

Por outro lado, alguns setores da mídia empresarial burguesa e lideranças políticas de centro-direita não se tornaram progressistas e humanitários. Ademais do altruísmo que pode haver em alguns “bolsodórias”, o que está em jogo são as consequências e os cenários de aprofundamento da crise e do pós-pandemia. Isso porque, numa conjuntura em que a economia mundial e, em especial, a brasileira que vinha mal, não haverá clico prolongado de paz social. Pelo contrário, a própria Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) aponta possibilidade de um terço da força de trabalho mundial ser jogada na miséria em menos de três meses, caso não haja maiores políticas governamentais de ajuda aos trabalhadores.

Estes setores sabem muito bem que 52,5 milhões de trabalhadores brasileiros encontram-se no trabalho informal (sem carteira, conta própria, sem CNPJ, desocupados, etc), em situação precária de renda e grande risco de cair na profunda miséria em semanas. Com todos os problemas sociais que temos para além da covid-19, as reações tenderiam a surgir mais ou menos organizadas, e isso lhes assusta. Num contexto de piora das condições de vida do povo, seria difícil os setores da política tradicional, em especial de centro e centro-direita, que bancaram Bolsonaro e as reformas antipopulares, manterem qualquer nível de legitimidade popular.

Estes setores sabem que possíveis reações populares podem ganhar contornos de radicalidade. Entretanto, diferentemente dos setores bolsonaristas, não teriam capacidade de resistirem e se protegerem frente a um processo mais agudo, sem o uso da extrema violência aberta. Com algumas iniciativas, tentam ganhar legitimidade no meios dos trabalhadores. Para preservar a ordem, tentam ganhar tempo e legitimidade nas massas com algumas iniciativas de proteção. Mas não nos iludamos: na hora da verdade, estes não hesitarão em usar a “reserva de poder”, recorrendo à brutalidade e violência militar e miliciana contra os de baixo.

Evidentemente que o neofascismo tem suas contradições, mas em sua essência é uma expressão de determinada fase de desenvolvimento do capitalismo de periferia, que, ao não conseguir abafar as contradições deste sistema, recorre ao uso da extrema violência contra as massas de trabalhadores organizados e, por isso, é um perigo real à classe trabalhadora. Mas é preciso entender que suas atitudes encontram respaldo no padrão de dominação burguesa explicitado no início deste artigo.  

É por conta dessa realidade que a esquerda não pode abrir mão de construir seu caminho próprio, de caráter popular. O que está acontecendo em meio às consequências do coronavírus é apenas o aprofundamento da crise do modo de produção capitalista, que nos países de periferia se revela ainda mais cruel e perverso. Sem ser cauda da burguesia, a classe trabalhadora necessita de uma estratégia de organização independente. Que, frente às oportunidades históricas que se abrem, as massas trabalhadoras possam construir e lutar por um projeto autêntico capaz de colocar a vida acima do lucro.

*Robson Sebastian Formica é membro da Coordenação Nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).

Edição: Camila Maciel