Votação remota

Sessão virtual no Congresso reduz transparência e atuação popular, alertam entidades

Com novo sistema de trabalho, cresce mobilização pela internet e avançam pautas impopulares

Brasil de Fato | Brasília (DF) |

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Senadores testam sala virtual utilizada para votações durante quarentena - Jane de Araújo/Agência Senado

A nova dinâmica de trabalho do Congresso Nacional, que, após a pandemia da covid-19, passou a fazer votações remotas, vem causando preocupação em entidades civis que acompanham a tramitação dos projetos de lei e os trabalhos parlamentares em geral. É o caso de interlocutores da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político.

Em conjunto com outras 83 organizações da sociedade civil, eles haviam apresentado, no final de março, um manifesto pedindo que, em meio à crise, o Legislativo se limitasse a votar medidas relacionadas ao coronavírus. O documento também teve o apoio da Frente Parlamentar em Defesa da Democracia e dos Direitos Humanos (FDDDH). As entidades haviam demandado ainda que fossem garantidas a transparência e a participação social nas deliberações tomadas pelo Legislativo neste período. Para o coordenador da plataforma, José Antônio Moroni, isso não estaria ocorrendo.

Ele destaca, por exemplo, a reivindicação que havia sido feita no manifesto de que o Legislativo fizesse ampla e prévia divulgação dos temas a serem pautados, assim como dos respectivos canais de participação da sociedade civil durante as votações.

A gente já vinha num processo muito difícil de conseguir acessar o parlamento, mas antes os parlamentares circulavam nos corredores e a gente conseguia, de certa forma, tentar um diálogo. Agora, com esse processo, não se consegue nada. Quando você tem a votação [presencial] em plenário, você tem vários mecanismos que a oposição tem pra atuar; mas, nesta conjuntura, nós não sabemos nem como está isso. E os próprios parlamentares — alguns deles têm falado isso — têm dificuldade [de lidar com o sistema virtual], que dirá nós de participar de um processo que é meio fechado”, afirma Moroni.

Atualmente, deputados e senadores têm atuado por meio de plataformas virtuais. Na Câmara, por exemplo, onde as dissidências são sempre mais candentes, o processo foi regulamentado por meio de um projeto de resolução e também de um ato da mesa diretora, ambos editados em março.

Nova dinâmica

A nova dinâmica de trabalho inclui, por exemplo, comunicações por videoconferências entre os parlamentares, que agora lançam mão de áudios e vídeos para interagir e tratar das votações. Por não estarem presentes no plenário, eles votam por meio de um aplicativo de celular, que exibe as opções “sim”, “não”, “abstenção” e “obstrução”.  

Segundo a regulamentação aprovada, a equipe de técnicos da Câmara faz um cadastramento prévio do aparelho telefônico dos deputados para acompanhar virtualmente o posicionamento de cada um. Além disso, na hora de se inscrever para participar das discussões e fazer encaminhamentos, os deputados utilizam o e-mail institucional.  

Na sede do Congresso, em geral, apenas o presidente da sessão e algumas lideranças partidárias comparecem para acompanhar o processo diretamente da base. A nova realidade fez também com que os tradicionais encontros de gabinete entre parlamentares e diferentes grupos de interesse fossem substituídos por reuniões virtuais.

“A situação em uma pandemia é sempre desvantajosa em todos os aspectos — político, econômico, social, familiar. Evidentemente, estamos numa situação completamente anômala, que tem um impacto muito grande na atividade política, que se lastreia fundamentalmente na relação com pessoas — olho no olho, abraços, opiniões — e sempre muito de perto”, ressalta a vice-líder da minoria Alice Portugal (PCdoB-BA), acrescentando que a situação atual dificulta também a percepção dos parlamentares sobre a temperatura política de cada pauta. “Esse é um dado complicador porque isso é algo importante pro jogo político”, afirma.

Mobilização

Na ausência do corpo a corpo direto com os parlamentares, centrais sindicais, movimentos populares e outras entidades civis tiveram que inovar ou variar os métodos tradicionais de articulação política, geralmente regados a muitos encontros presenciais com parlamentares e assessores nas dependências do Congresso.

Nesse novo curso, ganharam saliência os diversos panelaços promovidos nas últimas semanas e também a maior mobilização desses grupos por meio da internet. É o que vem ocorrendo, por exemplo, com o movimento pela renovação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), que inclui estudantes, professores e diferentes especialistas. Caso a revalidação do fundo não seja votada até 31 de dezembro deste ano, o segmento tende a sofrer uma drástica redução de verbas a partir de 2021.

Por conta disso, a medida, que tramita atualmente na Câmara dos Deputados e teve a primeira votação adiada em meio à crise do coronavírus, continua sendo alvo de uma intensa articulação política por parte de lideranças populares, que agora suam para não deixar a peteca cair e manter o tema no radar dos parlamentares, de forma que a pauta não seja invisibilizada. O monitoramento da atuação dos deputados nos atuais projetos em pauta também é ponto de realce na mobilização civil.  

“Nós, por exemplo, já tínhamos um cadastro de todos os parlamentares, com e-mail, WhatsApp, e agora estamos incentivando nossas entidades filiadas a não só manterem a comunicação com eles, mas também intensificarem a pressão virtual. É uma forma de dizer a eles que estamos longe, cada um na sua casa, de quarentena, mas estamos acompanhando a sua participação, o seu voto em cada etapa deste momento do Congresso”, conta o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Heleno Araújo. A entidade é uma das mais envolvidas no tema.

Prioridades

Se, por um lado, o Congresso tem deixado de lado temas de interesse popular que estavam em alta antes da pandemia, por outro, medidas de caráter controverso que não têm ligação direta com o tema do coronavírus também vêm se sobressaindo na pauta por serem de interesse de grupos politicamente majoritários do Legislativo e de setores econômicos com grande força junto aos parlamentares.   

É o que ocorre com a Medida Provisória (MP) 905, conhecida como “MP do Contrato Verde e Amarelo”. Rejeitada pela oposição e por setores populares por aprofundar a reforma trabalhista, a pauta teve a primeira votação registrada em março, sob intensos protestos e em meio ao impedimento de participação da imprensa e da sociedade civil para acompanhamento presencial da votação.  

Apesar das objeções, a medida avançou e pode ser votada nesta semana no plenário da Câmara dos Deputados. Para a secretária-geral da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Carmen Foro, há uma inversão de prioridades no Congresso e o cenário criado pelos grupos que defendem a MP gerou dificuldades adicionais para o movimento popular.  

“O tempo [que eles impõem pra votação] não é o mesmo tempo da sociedade. É um novo momento, um novo processo, mas o que mais nos preocupa é o conteúdo. Essa forma de votar de forma remota é a pressão do momento que define, mas nós defendemos que, neste momento, só seja votado o que for pra favorecer os trabalhadores que estão em situação difícil, e a MP 905 é um tema pra ferrar com os trabalhadores. Nós achamos um absurdo essa ameaça de votação agora”, critica Foro.

Sem uma participação presencial e mais ostensiva de lideranças dos segmentos sociais junto aos parlamentares, a CUT entende que o cenário legislativo pode ter ficado um pouco mais mais favorável para pautas rejeitadas pelos trabalhadores.   

Nós estamos muito assustados com tudo isso. E o Congresso, votando tudo de forma remota, não tem o mesmo grau de transparência pra sociedade. Nós consideramos que estamos em guerra e, nela, existe uma aliança entre setores do Congresso e os grandes capitalistas do momento. A atuação deles não morreu, está ali, latente, e agora temos o desafio de tentar acompanhar e articular tudo a distância”, finaliza.

Outro lado

O Brasil de Fato tentou ouvir as presidências da Câmara e do Senado a respeito das críticas feitas pelas fontes ouvidas nesta matéria, mas não houve retorno das assessorias de imprensa.

 

Edição: Camila Maciel