Se visualizarmos o percurso histórico da humanidade até aqui, é possível identificar períodos marcados por profundas crises, provocados por grandes epidemias que dizimaram populações. O alastramento das moléstias dentro das sociedades, em variados contextos sociais e históricos, gerou diferentes interpretações, impactos, causas e curas. O historiador Tucídides que viveu na Grécia Antiga, narrou os efeitos da Peste de Atenas, uma “terrível epidemia” que em 428 a.C, teria atingido a população ateniense durante o conflito. Em passagens bíblicas, a “peste”, um dos cavaleiros do apocalipse, aparece sempre ligada ao castigo divino, elemento ainda hoje presente no imaginário de alguns grupos religiosos. Durante o século XIV, boa parte do mundo conhecido foi devastada pela peste bubônica ou “Peste Negra”, um trauma histórico que se calcula ter dizimado um terço da população europeia na época.
A partir do século XVIII tornou-se relevante o debate em torno das doenças infecciosas e seus surtos. A peste sai do domínio religioso e se transforma em objeto da ciência. Foi nesse período que aconteceram as primeiras Convenções Sanitárias Internacionais, com objetivo de discutir formas de impulsionar a criação de organismos de saúde nos governos, a importância da transparência das informações nos casos de pandemias e da melhoria das condições sanitárias urbanas.
A temática da saúde pública e do papel do Estado em promovê-la foram assuntos ressaltados na opinião pública durante a pandemia da Gripe Espanhola de 1918 que, calcula-se, teria matado mais de 50 milhões de pessoas no mundo e cerca de 40 mil no Brasil. A epidemia chegou ao território brasileiro através do navio inglês Demerara que, em setembro daquele ano, havia aportado no Rio de Janeiro em péssimas condições sanitárias. As matérias dos jornais descreviam o cenário desolador de mortes e corpos acumulados. Também anunciavam a crescente preocupação com as condições sanitárias urbanas, a vulnerabilidade do trabalhador, a necessidade de informar a população a respeito dos hábitos de higiene para prevenção, assim como as ações que o governo vinha executando para combater a forte epidemia.
A interferência estatal era constantemente cobrada nos artigos de opinião dos jornais. Alguns, inclusive, criticavam a negligência do governo no início da pandemia. Apesar de variar no tempo e espaço, é possível notar alguns padrões históricos quanto ao combate a epidemias de grande disseminação. Exemplo disso é a tendência dos governos em postergar o anúncio de que o país está sendo atingido, devido as prováveis consequências políticas e econômicas ou até mesmo de negar a grave condição: “antes de virar pandemia, as mortes são distantes”, como destacou a historiadora Lilian Schwarcz. Apesar de saber dos efeitos da Gripe Espanhola na Europa, o governo brasileiro da época não tomou as precauções necessárias e a doença chegou através do transporte marítimo.
A pandemia do Covid-19 que hoje assombra o mundo, traz em seu rastro o padrão histórico do bode expiatório, quando a origem da doença é identificada com alguma origem étnica ou classe social já estigmatizada socialmente. Durante a destruição causada pela Peste Negra na Europa, massacres foram cometidos contra a população judia sendo cruelmente culpabilizada pela tragédia. No final do século XIX, na Cidade do México, – a epidemia de uma doença conhecida como Peste Cinza – a população pobre da cidade foi submetida a políticas segregacionistas sendo expulsas do centro urbano em um processo de gentrificação que gerou bairros encastelados de pessoas ricas como em Roma, nome e cenário do filme de 2018 de Alfonso Cuarón. Na pandemia atual, a expressão “vírus chinês” se popularizou através de opiniões xenofóbicas publicadas e compartilhadas, inclusive por pessoas que ocupam cargos governamentais importantes, como o ministro da educação Abraham Weintraub.
Sem deixar de considerar as repetições, a pandemia do Covid-19 se diferencia por expor as fragilidades de um mundo em estágio avançado de degradação ambiental e humana, permeado por tensões políticas, desigualdade econômica e segregação social. O que se tornou o modelo de civilização ocidental, baseado no imperativo de uma economia que subjuga valores como a solidariedade humana e a proteção do meio-ambiente foram bruscamente desnudadas por esse inimigo invisível e implacável. Podemos daí tirar duas conclusões. A primeira é que a história da humanidade está iniciando uma nova temporalidade, em que a pandemia do Covid-19 é o marcador.
A segunda diz respeito aos efeitos do modelo dominante neoliberal de capitalismo, reforçado historicamente a partir da década de 1980. O empobrecimento de enormes contingentes populacionais caminhou ao lado das políticas neoliberais, que tem precarizado áreas sociais como os sistemas de saúde, posicionando-os no alvo das privatizações, onde um direito básico é enquadrado em modelos mercadológicos e em que pacientes passam a ser vistos como “clientes”. Esse processo de deterioração de direitos sociais básicos é um dos sintomas do modelo econômico que ainda vigora. O Covid-19 está colocando à prova o papel do Estado enquanto provedor de direitos fundamentais de seu povo, ao mesmo tempo, em que a humanidade entra numa encruzilhada histórica, entre o caminho da vida humana mais solidária e a barbárie gananciosa de um sistema em constante crise.
Leonardo Cruz é historiador.