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O chocolate, os desejos e as guerras

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Propaganda soldado americano durante a II Guerra com a ração de chocolate - Reprodução
Do México para o mundo, o chocolate carrega uma história que mexe com os sentimentos das pessoas

Mais de 160 mil soldados aliados desembarcaram nas praias da Normandia nas primeiras horas da manhã do dia 6 de junho de 1944. Estavam determinados a expulsar os nazistas alemães da França e participar da derrocada do Terceiro Reich, tarefa que, no front oriental, já vinha sendo cumprida pela forças soviéticas. Foi uma das maiores operações de guerra do Ocidente.

Nas mochilas dos soldados uma variedade de itens de guerra e de sobrevivência, incluindo uma barra de chocolate bastante calórica. Os relatos são de que o gosto do chocolate não era muito bom, mas, ainda assim, era chocolate. Estava lá, como um último refúgio para onde os soldados se voltariam em momentos de perigo ou necessidade.

O comando do exército sabia que hordas de soldados morreriam nas primeiras horas do assalto às praias francesas. Aos soldados foi servido um lauto café da manhã pouco antes da batalha, o que chegou a deixar alguns soldados enjoados. Mas não importava. A comida, como sabemos, muitas e muitas vezes serve como consolo, aliviando tensões. 

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O chocolate traz consigo algumas ideias que nasceram com sua história na Europa. A primeira é a associação com o sexo. Consumido no México na forma líquida desde os tempos imemoriais, o chocolate foi levado à Europa pelos espanhóis como um dos produtos dos Novo Mundo. As sementes forneciam uma espécie de manteiga. A ela eram acrescidos temperos, como pimenta, pimentão, urucum, cogumelos alucinógenos – o próprio chocolate também era considerado um medicamento quase mágico.


Barra de chocolate confeccionada para soldados americanos na Segunda Guerra e comida no Dia D / Reprodução

O rei da Espanha, Carlos V, recebeu chocolate do conquistador Hernán Cortez e ofereceu à sua corte para que provasse. A princípio, os chegados ao rei não gostaram. Mas, com o tempo, a corte espanhola caiu de amores por aquela bebida estranha e abundante – e a importação das sementes de cacau, matéria-prima do chocolate, torna-se regular a partir de 1585. Com o desenrolar da colonização, algumas freiras de Oaxaca, responsáveis por adaptarem plantações de cana-de-açúcar, tiveram a ideia de juntar o açúcar à bebida. Com isso, o gosto pelo chocolate tomou de vez a Espanha.

O chocolate era bebido pelas damas da corte de manhã, ainda no quarto. Com isso, começou um intenso debate sobre se chocolate era ou não um alimento que quebrava o jejum antes da missa ou nos dias santos. Teólogos e estudiosos chegaram à conclusão de que tomar chocolate pela manhã não quebrava o jejum e, portanto, podia ser consumido sem problemas. A associação do chocolate com esse momento íntimo das damas espanholas se consolidou e tornou-se uma imagem corrente. Assim, quando a princesa Maria Teresa casou-se com Luís XIV, o rei da França, em 1660, o gosto pelo chocolate saiu da Espanha e tomou a corte francesa, rapidamente tornando-se uma moda.

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O chocolate era caro, duas ou três vezes o preço do café ou do chá. Associado às ricas cortes espanhola e francesa, o produto adquiriu uma aura de sofisticação e riqueza. Logo, as árvores de cacau passaram a ser cultivadas em países como a Venezuela e a Jamaica. Desde que passou a ser comercializado em formato de barra, no século 19, essa associação ficou evidente nas embalagens. Muitas imitavam o ouro ou a prata.

Outra ideia associada ao chocolate se desenvolveu justamente com a fabricação dos chocolates em barra em meados do século 19. Lentamente, o chocolate virou um doce para crianças. Uma grande indústria se desenvolveu a partir da fabricação do produto em barra, por companhias que se tornaram gigantes do setor da alimentação, como a Hershey’s nos Estados Unidos e as suíças Nestlé e Lindt.

O chocolate carrega consigo uma história que mexe com os sentimentos das pessoas. Quando um soldado, no meio da batalha do desembarque da Normandia, abria sua barra de chocolate, ele inconscientemente abria também um pacote de emoções e muitas histórias envolvidas no processo: a luxuosidade sexual do chocolate quente espanhol, o sabor da infância no consumo do doce favorito, a ideia de um último desejo especial.

Da mesma forma que o soldado na guerra, em grandes tragédias como a que estamos vivendo, nesta guerra contra a pandemia do novo coronavírus, a busca por chocolate traduz a depressão, a tristeza, essa ideia de último desejo antes do mundo acabar.

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Edição: Rodrigo Chagas