Entrevista

A presença do mal no Brasil de Bolsonaro é tema de livro do sociólogo Antonio Cattani

Leia entrevista com Antonio David Cattani, autor de A Síndrome do Mal, que explora a malignidade social presente no país

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"No mundo social, o mal tem concretude política, ele existe e se manifesta de maneira objetiva em relações sociais espúrias" - Fotos: Igor Sperotto

Como o conceito de mal, pode ser empregado no Brasil de hoje do ponto de vista das ciências sociais? Este é o desafio que enfrentou o sociólogo Antonio David Cattani, autor de A Síndrome do Mal (Cirkula, Porto Alegre, 2020), que explora a malignidade social presente no Brasil de Jair Bolsonaro (sem partido) mesmo antes de sua ascensão ao poder.

"No caso brasileiro, não podemos falar de contaminação, como se a causa fosse externa. Começo o livro dizendo que as pessoas malignas estão entre nós e sempre estiveram. Agora, estão se manifestando sem pudor e sem controle", explica o autor.

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Cattani não enfatiza o papel do “Mito” ou do “Fuhrer”, mas busca entender  as forças que os criam, projetam e mantém. "Eles são produtos de um contexto social e econômico. É fundamental entender quem está por trás desses autocratas, quem impulsionou as bases sociais intolerantes e desumanizadas", pontua.

Doutor pela Université Paris I – Pantheón Sorbonne, Cattani leciona no programa de pós-graduação em sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e é autor de diversos livros, entre eles Riqueza e desigualdade na América Latina (2010) e Ricos, podres de ricos (2017).

Isolado pela pandemia no interior da Serra Gaúcha, ele foi entrevistado pelo Brasil de Fato RS:

Brasil de Fato RS - O que é a síndrome do mal?

Antonio David Cattani - O termo “síndrome” foi um empréstimo tomado do vocabulário médico, e não se refere, em hipótese alguma, a doenças ou enfermidades físicas ou biológicas. É sinônimo de conjunto ou composição de vários fatores. A síndrome do mal, portanto, é um conjunto de percepções, valores e, sobretudo, comportamentos malignos. Trato da malignidade social, entendo-a não como um ato isolado e individual, mas como atitudes coletivas, como formas degradadas, degeneradas, desumanizadas de sociabilidade. Ela remete a ideologias postas em prática, objetivamente, como ações intolerantes, intencionais e violentas dirigidas contra pessoas e grupos.

O mal é um conceito mais afim da ética, da moral ou da visão religiosa do mundo. O que é o mal para um sociólogo e na sua obra?

A definição de mal no campo sociológico é distinta das reflexões de ordem religiosa, que são sempre relacionadas a crenças e abstrações teológicas. De mesma forma, não se trata de uma categoria moral. No mundo social, o mal tem concretude política, ele existe e se manifesta de maneira objetiva em relações sociais espúrias nas quais aflora a intencionalidade de rebaixamento e de aniquilamento de outras pessoas.

É importante notar que, na obra, a síndrome do Mal não se reporta a um indivíduo, mas a uma coletividade, digamos, contaminada… o que poderia dizer a respeito?

Existem distúrbios esquizoides e esquizofrênicos relacionados a causas físicas ou a profundos traumas psíquicos. Mas, nesse caso, trata-se de enfermidades individuais. A sociologia busca compreender comportamentos coletivos. No caso brasileiro, não podemos falar de contaminação, como se a causa fosse externa. Começo o livro dizendo que as pessoas malignas estão entre nós e sempre estiveram. Agora, estão se manifestando sem pudor e sem controle.

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Como o livro observa, o fascismo e o ultraliberalismo têm divergências mas também convergências, o que acontece na partilha das ideias e condutas antissociais, antidemocráticas e anti-solidárias. O que dizer do Brasil de Bolsonaro onde parece ter havido um casamento dos dois sistemas?

O conservadorismo reacionário e o ultraliberalismo entraram em sintonia em vários países. O Brasil é o exemplo mais avançado desse fenômeno. O elitismo, o espírito antidemocrático, que sempre estiveram presentes na história brasileira chegaram agora ao seu paroxismo.

 No Brasil, surgiu a figura do “homem de bem”, um personagem de talhe quase sempre fascista ou conservador. Seria possível dizer que o “homem de bem” estaria paradoxalmente tomado pela síndrome do mal?

A expressão “homem de bem” é imprecisa. Ela pode ser aplicada a pessoas corretas e dignas bem como a pessoas malignas que se escondem atrás de uma autoatribuída superioridade moral.

Seu texto cita as características básicas do fascismo, segundo foram delineadas por Umberto Eco, Theodor Adorno e outros estudiosos. Quais delas mais fortemente contribuem para a síndrome do mal?

Os autores citados no livro (Adorno, Eco e Jason Stanley) convergem em vários pontos. Penso ter feito uma junção original das suas principais contribuições avançando um pouco na análise. Diferentemente deles, não dou destaque às figuras do Duce, do Fuhrer ou do Mito. Eles são produtos de um contexto social e econômico. É fundamental entender quem está por trás desses autocratas, quem impulsionou as bases sociais intolerantes e desumanizadas.

O livro também critica a filósofa Hannah Arendt dizendo que – no julgamento do carrasco nazista Adolf Eichmann em Israel –  teria sido iludida quanto à personalidade do réu pelo seu advogado de defesa. Eichmann não era, como ela pensou, um simples burocrata cumpridor de ordens do regime hitlerista mas um entusiasta do nazismo e orgulhoso do assassinato em massa. Não haveria, portanto, nenhuma “banalidade do mal”. O que pode dizer?

Hannah Arendt é uma das mais importantes filósofas políticas do século XX. O livro Eichmann em Jerusalém é uma obra-prima de filosofia moral, porém consagrou de maneira equivocada a expressão “banalidade do mal”. Eichmann e tantos outros dirigentes e militantes nazistas eram fanáticos antissemitas. Não eram reles cumpridores de ordem. De maneira consciente e deliberada cometeram crimes contra a humanidade. Como está acontecendo atualmente no Brasil.

A Síndrome do Mal foi escrito antes da pandemia e, portanto, não captou as declarações clássicas de malignidade proferidas por milionários e empresários mais favoráveis aos seus lucros do que a vida das pessoas. O que diria, então, hoje de tais manifestações?

Eles apenas expressaram o que já eram concepções e comportamentos anteriores.

Em qual projeto está trabalhando agora?

As pesquisas atuais visam aprofundar o estudo sobre as classes abastadas e como elas estão operando no sentido de debilitar a democracia, manter e ampliar seus privilégios perpetuando as desigualdades.

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Leandro Melito e Marcelo Ferreira