Rio Grande do Sul

ENTREVISTA

“Não estamos no ponto de diminuir o isolamento social”, afirma médico infectologista

Presidente da SRGI, Alexandre Vargas Schwarzbold teme que mortalidade no Brasil alcance níveis dos países mais atingidos

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Médico destaca tendência do aumento de casos no inverno e perigo do alastramento nas periferias - Divulgação

“A comunidade científica vem preconizando a manutenção do isolamento social horizontal associado a uma rápida e eficiente testagem diagnóstica dos casos suspeitos como estratégia de redução dos casos. Sem essas medidas tudo indica que nosso inverno pode reproduzir o que já vimos nos países do hemisfério norte, que desdenharam do controle rigoroso.” O preocupante prognóstico é do presidente da Sociedade Riograndense de Infectologia (SRGI), Alexandre Vargas Schwarzbold.

Em entrevista concedida ao Brasil de Fato, realizada por e-mail, devido as restrições impostas pela pandemia do novo coronavírus, o médico critica o relaxamento das medidas que os governos começaram a adotar nos estados e municípios, já que “tudo indica que estamos no início da curva no Brasil”. Um estudo feito pelo Observatório Covid-19 BR, que analisou os dados divulgados pelo Ministério da Saúde, mostrou que o número de mortes no Brasil pelo novo coronavírus está maior do que quando a Espanha passava na mesma fase da pandemia.

O Brasil é o país do hemisfério Sul do planeta mais atingido pela pandemia do novo coronavírus. Até a noite desta segunda-feira (27), o país registra 4.543 mortes e 66.501 casos confirmados da doença. Os três países mais afetados no mundo, até agora, são Estados Unidos (mais de 57 mil mortes e 1 milhão de infectados), Itália (mais de 27 mil mortes e 202 mil infectados) e Espanha (mais de 23 mil mortes e 211 mil infectados).

Alexandre, que atualmente é professor adjunto de medicina na disciplina de Doenças Infecciosas na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), médico infectologista da Comissão de Controle de Infecção Hospitalar e chefe da Unidade de Pesquisa Clínica do Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM), é enfático ao afirmar que “não estamos no ponto de diminuir o isolamento social”.

Entre outros temas tratados na entrevista, ele destaca a preocupação com o inverno, que é rigoroso no Rio Grande do Sul, período em que o isolamento se torna ainda mais necessário. Também chama atenção para o perigo da tendência da epidemia se alastrar nas periferias das grandes cidades e populações mais empobrecidas. “As condições sanitárias precárias, a restrição de saneamento básico e a dificuldade de acesso a insumos importantes como o álcool gel são elementos determinantes da vulnerabilidade dessas populações, associados à enorme prevalência de doenças crônicas nesses cenários. Nesse sentido, a explosão de casos na epidemia nessas comunidades seguramente encontrará um sistema de Saúde sem preparo e reserva suficiente para assistência”, destaca.


Alexandre participa de debate virtual na página da Pró-Reitoria de Extensão UFSM: https://www.facebook.com/preufsm/

Confira a entrevista completa:

Brasil de Fato RS - No Brasil, já são mais de 61 mil infectados e 4,2 mil mortos pela covid-19 (em 26/04). Em que fase da curva de crescimento da doença estamos e quais as medidas mais indicadas para evitar um crescimento ainda maior?

Alexandre V. Schwarzbold - Tudo indica que estamos no início da curva no Brasil. Pode ser uma curva achatada ou não, dependendo das medidas de contenção, dependendo da população e os gestores manterem o isolamento social de modo efetivo durante o inverno, em especial nos meses de maio e junho.

BdF RS - Fala-se que os números de infectados no Brasil estão abaixo do real, devido à falta de testes em massa. No RS, o estudo da UFPel aponta que seriam 5 mil infectados no momento em que haviam cerca de 700 casos confirmados. Ainda assim, o governo quer aplicar um modelo de distanciamento controlado. Na sua opinião, já estamos em condições de diminuir a quarentena?

Alexandre - Não. Não estamos no ponto de diminuir o isolamento social. Não vivemos um regime de quarentena, de lockdown. Esse se aplica com mais rigor, com fiscalização severa da não saída das pessoas do domicílio. Vivemos o isolamento social, que por si só, mesmo com a escassez de testes diagnósticos que temos desde o início do primeiro caso no Brasil, tem se revelado suficiente para impedir o crescimento da curva epidêmica a níveis de descontrole do sistema de Saúde.

BdF RS - Há um temor em relação a chegada do vírus nas comunidades periféricas do Brasil, onde vivem as famílias que mais dependem do Estado. Comente a importância do isolamento em relação à capacidade do SUS de atender os infectados.

Alexandre - Sim. O grande temor é a tendência da epidemia migrar para a periferia das grandes cidades e para as populações mais empobrecidas. As condições sanitárias precárias, a restrição de saneamento básico e a dificuldade de acesso a insumos importantes como o álcool gel são elementos determinantes da vulnerabilidade dessas populações, associados à enorme prevalência de doenças crônicas nesses cenários. Nesse sentido, a explosão de casos na epidemia nessas comunidades seguramente encontrará um sistema de Saúde sem preparo e reserva suficiente para assistência. Com isso as taxas de mortalidade atribuída ao coronavírus pode tomar números semelhantes ao que se viu na Itália, Espanha e nas periferias de Nova Iorque.

BdF RS - Em Porto Alegre, o ensolarado feriado de Tiradentes levou pessoas a parques e praças para fazer exercícios e caminhadas, e aos poucos o movimento segue aumentando nas ruas, mesmo com isolamento recomendado. Estudos mostram que o isolamento tem diminuído entre a população no RS. Que riscos existem nesse tipo de comportamento?

Alexandre - O risco é exatamente do aumento da transmissão viral entre as pessoas e muitas sendo portadoras - mesmo sem apresentar muitos sintomas - levarem aos seus familiares, em especial os idosos. A falsa percepção de inexistência de risco advinda do número restrito de casos graves e as condições climáticas favoráveis gera o perigoso relaxamento do distanciamento social e as suas consequências podem exigir um rigor de isolamento ainda maior nas semanas que seguem. O inquérito populacional que está realizado no RS com a coordenação da UFPel e o apoio de diversas universidades gaúchas como a UFRGS, UFCSPA, UFSM, UNISC, UCS mostra que o número de susceptíveis que não tiveram contato com o vírus é ainda muito expressivo. Ademais, com a circulação concomitante de outros vírus e patógenos respiratórios durante o inverno, um pico epidêmico do coronavírus seria desastroso.

BdF RS - Muitos acreditam que a Cloroquina vai resolver o problema da pandemia. Qual a posição médica a respeito desse tema?

Alexandre - Fui um dos coautores de um importante trabalho realizado com a Cloroquina e publicado no (periódico científico internacional) JAMA recentemente, sendo objeto inclusive de um editorial pelos editores, dada a importância que revelamos nesse que foi o primeiro trabalho bem controlado no país que tentou demonstrar o que os chineses suscitaram em suas publicações. Primeiro que devemos ter cuidado com sua administração dado os riscos cardíacos em muitas pessoas, segundo porque não temos evidência que ela protege ou é eficaz nos pacientes gravemente acometidos. Resta saber se ainda terá um espaço quando seu uso é muito precoce numa pessoa infectada, muitos estudos com esse foco estão vigentes, mas tudo leva a crer que não.

BdF RS - Um estudo realizado na Universidade de Harvard (EUA) aponta que o distanciamento social pode ser necessário em todo o mundo até 2022. Quais os principais pontos que traz o estudo?

Alexandre - Sim. Esse interessante estudo de um grupo coordenado pelo epidemiologista Marc Lipsitch e publicado na Science usou estimativas de sazonalidade e imunidade dos coronavírus circulantes no passado nos Estados Unidos para estimar um modelo de transmissão do SARS-CoV-2. Previu que surtos sazonais de inverno continuarão a ocorrer após essa onda epidêmica mais severa, o que parece bastante plausível. Sugere que estratégias intermitentes de distanciamento social talvez precisem ser empregadas até 2022 para evitar que o novo coronavírus continue a colocar em risco os sistemas de saúde.

Ponderam os autores que distanciamento social radical, se realizado uma única vez e por um período relativamente curto, talvez traga resultados piores, porque ele acaba "reservando" uma grande população de pessoas suscetíveis, sem que haja chance de algumas delas desenvolverem defesas.

Assim, quando o contato com o vírus retorna, o pico de casos pode ser mais abrupto.

Nas simulações, fases de distanciamento social longas (20 semanas de duração) e com efetividade moderada são as que mais conseguem reduzir o tamanho total e os picos da doença, reforçando a estratégia que vem sendo empregada. Com isso, até 2022, podem ser necessários períodos intermitentes de recolhimento das pessoas, a não ser que surja uma vacina ou que a capacidade de atendimento de pacientes graves seja aumentada substancialmente. Os autores não tomam posição sobre a conveniência dos cenários que aparecem nas simulações, mas observam o potencial catastrófico para o sistema de Saúde se o distanciamento for pouco eficaz e/ou não for sustentado por tempo suficiente.

BdF RS - Explique o que significa “imunidade de rebanho” e o que isso tem a ver com as projeções de fim da quarentena.

Alexandre - O conceito de “imunidade de rebanho” ou “imunidade de grupo” ou ainda “efeito rebanho” são expressões usadas na infectologia que fazem referência aos benefícios da aplicação de vacinas recebidas por pessoas que não as tomaram. O efeito acontece de modo indireto. Na ausência de vacinas, essa imunidade se daria pelo contato com o agente infeccioso, o vírus, assim quanto maior o número de infectados pelo SARS-CoV-2, mais pessoas se tornariam resistente ao vírus, devido à memória imunológica adquirida. Assim, chegaria um momento em que o patógeno pararia de se disseminar pela ausência de hospedeiros suscetíveis.

Estimar a taxa de imunidade de rebanho é importante para determinar o estágio em que a epidemia se encontra. Caso a imunidade de rebanho esteja alta, significa que o pico da epidemia já passou naquele local e boa parte da população está imune ao vírus.

Essa condição, então, ajudaria a evitar novas ondas de infecção, bem como um temido colapso nos sistemas de saúde. Dessa maneira seria possível também relaxar as medidas de isolamento social ou restringi-las a locais específicos.

Estima-se que, para atingir a imunidade de rebanho, de 60% a 80% de uma população precisa estar imune a um vírus.

No Brasil, esse número é menor: de cerca de 200 milhões de brasileiros, ainda que a estimativa correta de que tenhamos 10 vezes mais casos que os já confirmados, não chegaríamos ainda em 1 milhão de pessoas, ou seja, abaixo de 1%. Evidentemente, trata-se de uma taxa muito menor que os 60% a 80% considerados necessários para a imunidade de grupo.

Mais intrigante ainda é o alerta da OMS nessa semana informando que neste ponto da pandemia não há evidências suficientes sobre a eficácia da imunidade mediada por anticorpos para garantir a precisão de um "passaporte de imunidade". As pessoas ainda não podem assumir que estão imunes a uma segunda infecção.

BdF RS - Com a chegada do inverno no RS, qual a perspectiva da comunidade científica em relação ao comportamento do novo coronavírus?

Alexandre - Como descrito, tudo indica que estamos no início da curva epidêmica. Pode ser uma curva achatada ou não dependendo das medidas de contenção, dependendo da adesão da população e dos gestores na manutenção do isolamento social de modo efetivo durante o inverno. Um relaxamento numa região do estado reflete duas a três semanas após na transmissão viral em outra região ainda não afetada ou pouco afetada dado a mobilidade humana e urbana intensa. A comunidade científica vem preconizando a manutenção do isolamento social horizontal associado a uma rápida e eficiente testagem diagnóstica dos casos suspeitos como estratégia de redução dos casos. Sem essas medidas tudo indica que nosso inverno pode reproduzir o que já vimos nos países do hemisfério Norte, que desdenharam do controle rigoroso.

 

Edição: Katia Marko