Paraná

Memória

20 anos do assassinato de Antônio Tavares: retrato de modelo de violência do Estado

Com participação da Justiça, padrão de violações de direitos humanos presente na morte do trabalhador sem-terra continua

Via Terra de Direitos |
Monumento em homenagem a Antônio Tavares e às vítimas do latifúndio - Wellington Lenon

O impedimento à livre manifestação, a criminalização e incitação da violência contra movimentos populares, a paralisação da política nacional de reforma agrária, a não reparação de danos aos sujeitos violados e ausência de medidas de não repetição de violência pelos agentes de segurança pública que vitimaram o trabalhador rural Antônio Tavares em 2000 não são elementos que compõem o quadro da história de apenas duas décadas atrás. A história daquele 02 de maio de 2000 ainda é contada como relato do tempo presente.

Naquele dia, cerca de dois mil integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) se dirigiam à capital paranaense para participar da Marcha pela Reforma Agrária, em comemoração ao Dia dos Trabalhadores e das Trabalhadoras. Orientada pelo governo sob comando de Jaime Lerner, a Polícia Militar do Paraná, organizada em uma tropa de 1500 agentes, bloqueou a BR-277 e impediu - a bala - a chegada da comitiva dos 50 ônibus do MST à Curitiba. Na altura do quilometro 108, sem antes mesmo de qualquer diálogo, os agentes públicos de segurança dispararam contra os trabalhadores assim que desceram dos ônibus. Entre os cerca de 185 feridos, o agricultor Antônio Tavares tombou ao disparo letal do policial militar Joel de Lima Santa Ana. Tavares, à época, tinha 38 anos e era pai de cinco filhos. Somente em 2012, o Tribunal de Justiça do Paraná condenou o Estado do Paraná pelo assassinato do trabalhador.

No entanto, passadas duas décadas, o Estado não adotou qualquer medida relevante para reparação das violações, muito menos adotou medidas de não repetição: permanece pendente a investigação e responsabilização criminal dos responsáveis pelo assassinato, com isenção do crime do policial pela jurisdição criminal militar, não houve ainda nem mesmo a integral reparação financeira aos familiares de Antônio e às demais 185 vítimas da ação do Estado, e a violência pelos braços armados do estado ainda miram os trabalhadores rurais sem terra.

“Quando se trata de trabalhador rural sem terra, de integrante de uma comunidade tradicional quilombola ou indígena existe sempre uma dificuldade maior para que se tenham ações positivas do Estado, como no caso indenizar as famílias e reparar outras vítimas do episódio. Ao passo que neste caso [assassinato de Antônio Tavares] a responsabilidade do Estado é muito direta: não se trata de ação indenizatória porque o Estado deixou de prestar um serviço a um cidadão, trata-se, sim, de um episódio de uma ordem que partiu da segurança pública para que, a qualquer custo, os trabalhadores fossem impedidos de chegar à Curitiba”, destaca o advogado do setor de direitos humanos do MST, Cláudio Oliveira.

“Isso agrava a situação do ponto de vista de como o sistema de justiça deveria tratar o episódio, ao ponto que o caso foi levado a julgamento e cortes internacionais e o Brasil recebeu sanções em razão disso”, complementa, em referência à recriminação, em 2009, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) ao país por confiar a apreciação do crime a uma corte militar, a despeito das orientações da Organização dos Estados Americanos (OEA). O posicionamento da Comissão é fruto da denúncia feita pelas entidades Terra de Direitos, Justiça Global, Comissão Pastoral da Terra (CPT) e pelo próprio MST.

O assassinato de Antônio Tavares também foi um dos casos que levou o estado do Paraná a ser condenado no Tribunal Internacional dos Crimes do Latifúndio. A atividade, promovida por organizações e movimentos populares no dia 2 de maio de 2001, denunciava diversos outros casos de assassinatos de trabalhadores rurais sem terra. Na época, o governo do estado foi considerado culpado pela ação e pela omissão em casos de violência no campo.


Numerosa tropa de choque realizou violento despejo das famílias do Acampamento Sétimo Garibaldi / Arquivo MST

Violência em crescimento

A violência dirigida aos trabalhadores rurais no Paraná, em especial aos organizados em torno de movimentos de reivindicação por políticas de reforma agrária, durante os dois mandatos de Jaime Lerner (1994 a 2002), contabiliza 16 assassinatos e 134 despejos violentos, segundo o MST, e alçou o governador a alcunha de “arquiteto da violência”, em referência ao ofício do ex-mandatário e à violência dirigida a este segmento.

Permeado por conflitos rurais nos quais o trabalhador rural é a ponta mais desprotegida e com 78% do território paranaense ocupado por atividades relacionadas à pecuária e agricultura (Ipardes), o Paraná foi o estado que, percentualmente, registrou maior aumento de despejos em áreas rurais e ameaças do ano de 2018 para 2019, de 17 para 72 despejos respectivamente, de acordo com Relatório Conflitos no campo da Comissão Pastoral da Terra.

Em um dos episódios mais violentos da violência estadual sob comando do governador Ratinho Júnior (PSD) cerca de 50 famílias de agricultores do Acampamento Companheiro Sétimo Garibaldi, em Querência do Norte, foram fortemente reprimidas, em dezembro de 2019, por um batalhão de 150 policiais militares. Com uso de bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo e spray de pimenta e apoio de drones e helicóptero, a ação militar descumpriu decisão de suspensão da ordem de reintegração de posse emitida pelo do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná horas antes.

“Neste cenário, nos preocupa a criminalização dos movimentos e da militância, de uma forma geral, pelos instrumentos comuns do direito penal e outros que o governo federal já sinalizou que pretende construir para criminalizar os movimentos sociais”, destaca Claudio, em referência direta ao conjunto de projetos de lei de tramitação no Congresso de criminalização de movimentos e organizações sociais, como o Projeto de Lei 9604/2018. De autoria do deputado federal Jerônimo Goergen (PP/RS), a medida propõe configurar como ato terrorista a “ocupação de imóveis urbanos e rurais”, expediente utilizado pelos movimentos populares para pressionar governos para realização da reforma agrária e urbana. O Projeto de Lei encontra-se sujeito à apreciação pelo plenário da Câmara dos Deputados.

“Nos preocupa as reintegrações de posse, despejos, desalojamento de famílias das organizações do campo de forma geral, de camponeses e povos e comunidades tradicionais, porque desde a Constituição Federal de 1988, que é tida como cidadã, a reforma agrária ainda foi não assumida como uma política de Estado e compromisso do Estado brasileiro. Estes povos ocupam estes territórios e desenvolvem nestes espaços com atividades econômicas, políticas, culturais social e culturais e se enraizaram, de fato, nestes espaços. A não regularização não é culpa de quem ocupa este território, mas do Estado em não implementar política de reforma agrária e de regularização”, complementa.

Ausência de determinação de âmbito nacional

Mesmo o contexto de grave crise epidemiológica, no qual um despejo ou conflito no campo intensificaria vulnerabilidade dos trabalhadores rurais, a ameaça ainda é presente. Ainda que o Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR) tenha ampliado a suspenção, até o prazo de 15 de maio, para cumprimento de ordens de reintegração de posse de áreas com ocupações coletivas urbanas e rurais em território paranaense, medida presente no âmbito do Decreto Judiciário 172, a ausência de uma diretriz nacional é compreendida como uma situação sensível.

Quando o país ainda registrava seus primeiros casos de Coronavírus em território nacional, em 17 de março, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), órgão vinculado ao Ministério Público Federal, solicitou ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) providências para a suspensão, em todo o país, do cumprimento de mandados coletivos de reintegração de posse, despejos e remoções judiciais ou extrajudiciais, seja em áreas urbanas ou rurais. Com base na Recomendação nº 62 do CNJ de adoção de medidas preventivas de contenção à pandemia no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo, o requerimento da Procuradora tem como leitura a necessidade de adoção de medidas preventivas à contaminação pela Covid-19. No entanto, passados mais de quarenta dias o CNJ não publicou nenhuma nova recomendação sobre a não realização de despejos neste período.

"A ausência de determinação nacional de suspensão de despejos e reintegrações de posse, como requereu a PFDC ao CNJ, faz com que tenhamos situações díspares entre os estados, ficando à cargo dos tribunais regionais federais e dos tribunais de justiça dos estados estabelecerem regramentos específicos que entendessem como necessários em contexto de pandemia. Assim, muitos estados não previram resoluções específicas em relação a situação dos conflitos possessórios no campo e na cidade, deixando a cargo de cada magistrado(a) o destino dessas famílias que demandam terra, moradia, e ou território nos casos específicos", destaca a assessora jurídica da Terra de Direitos, Maíra Moreira.

"Houve requerimento também da PFDC ao Comandante-Geral da Polícia Militar para que haja recomendação no sentido de suspensão do cumprimento de mandados de reintegração de posse coletivos em áreas urbanas e rurais durante no período que durar a pandemia da Covid-19. Precisamos acompanhar essas medidas e cobrar que esses órgãos se manifestem publicamente sobre o assunto, pois como vimos, ao mesmo passo em que estruturas de mediação são criadas, também há paralelamente intensificação de violências e violações cometidas por instituições policiais", complementa. 

Edição: Lia Bianchini