ECONOMIA

"A inflação venezuelana se deve à manipulação cambial", afirma economista

Entenda como o ataque à moeda nacional é uma tática da guerra econômica contra a Venezuela durante a pandemia

Brasil de Fato | Blumenau (SC) |
Comerciantes venezuelanos preferem anunciar o preço de mercadorias em dólar desde o final de 2019. - Reprodução

Na Venezuela, o 1º de maio é celebrado com grandes manifestações de rua e com o anúncio de aumento do salário mínimo. No entanto, antes mesmo do novo valor ser fixado, os distribuidores e comerciantes aumentam os preços das mercadorias para aumentar seus lucros.

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Neste ano não foi diferente. O governo bolivariano publicou na segunda-feira, (27), o aumento do salário mínimo de 450.000 BsS para 800.000 BsS,  porém em menos de um mês o valor do câmbio passou de 75 mil BsS para 175 mil BsS como equivalente a um dólar .

Segundo levantamento da Assembleia Nacional, a Venezuela registou 97,3% de inflação no primeiro trimestre de 2020, 62,2% em janeiro, 21,8% em fevereiro e 13,3% em março. No entanto, o valor acumulado interanual seria de 3.276%. 

Para tentar explicar as bases dessas variações bruscas no índice inflacionário do país e a perda de liquidez da moeda nacional, o Bolívar Soberano, o Brasil de Fato conversou com o economista venezuelano Antonio Boza.

:: Como a escalada de preços afeta o cotidiano dos venezuelanos ::

Brasil de Fato: Com a maior parte da atividade econômica do país paralisada desde 14 de março, como explicar que a inflação se mantenha em alta?

Antonio Boza: Em primeiro lugar, porque a inflação venezuelana se deve fundamentalmente à manipulação cambial e ela não tem vínculos com variáveis comuns da economia, como por exemplo, demanda agregada, oferta de bens e serviços, liquidez monetária.

Começando pelo fato da teoria de que liquidez monetária injetada produz inflação, que tem muita difusão no mundo e é amplamente aceita, é absolutamente falsa.

Se qualquer pessoa entra no site do Banco Mundial e coloca massa monetária x PIB vai descobrir que sua teoria não tem nenhum vínculo com a realidade. Injeção monetária não se traduz em inflação, não há uma relação direta.

Mas ainda que assim fosse, segundo os cálculos de Pasqualina Curcio, com a quantidade de recursos que normalmente se destinam para compra de divisas, que é um 10% das reservas internacionais, o valor da divisa deveria ser de aproximadamente 1080 BsS, o que obviamente não é assim. 

É uma manipulação que têm intenção de desestabilizar o país, um instrumento de pressão na sociedade.

Quando os marcadores de preço, os grandes monopólios adotam esse dólar paralelo, o resto da economia tem que seguir, se não, não tem capacidade de repor seus inventários, seguem praticamente por sobrevivência, esse é o mecanismo.

A Venezuela concentra 90% das suas exportações no mercado petroleiro. Com a crise histórica a nível mundial, o custo de produção de um barril de petróleo venezuelano é quase mais alto que o seu valor de mercado. Como o país poderia equilibrar essa equação?

O preço do barril de petróleo está por debaixo do custo de produção é um desafio que a Venezuela deve enfrentar e até o momento o aparato do Estado tem sido o provedor de divisa. Cerca de 90% das divisas que entram no país são do aparato público, não somente através do petróleo, mas também do ferro e outros minerais. 

A Venezuela terá que contar com convênios com outras potências emergentes como Rússia, China, Irã, que signifiquem vendas a futuro, acordos de retribuição por diversas vias. Além de surtidora de petróleo, a Venezuela também tem uma posição geopolítica fundamental num novo quadro de reposição de forças, que é o multilateralismo.

Mas de imediato não há forma de não sentir o golpe da queda do preço do barril de petróleo.

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No último mês o Bolívar Soberano sofreu uma depreciação de 74%, se levamos em conta o cambio do dólar paralelo. Como explicar esse fenômeno, sobretudo quando estas casas de câmbio são controladas em Cúcuta (Colômbia) e a fronteira se mantém fechada?

O Banco Central da Venezuela cometeu o erro, há cerca de sete anos, de deixar de publicar o Índice Nacional de Preço do Consumidor (INPC). O índice de preços de qualquer país que é publicado pelos bancos centrais não é uma simples relação sobre como o índice inflacionário vai aumentando, mas é o pivô do sistema de preços.

A partir dessa publicação é que se geram todas as expectativas de colocação de preços das mercadorias em uma economia e a expectativa futura de inflação.

Ao acabar com esse índice, o BCV deu liberdade para que qualquer empresa use cálculos próprios de custos, demanda, ofertas de bens e serviços, usando outro marcador de preços. 

Há uma distorção cambiária manipulada. Existem dias que não há atividade em uma casa cambiária  e, no entanto, a divisa tem uma variação do seu valor. A fronteira pode estar fechada, a casa de câmbio pode estar fechada e continua havendo uma variação cambiária.

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Assim como na última semana, em agosto de 2018 também foi adotada a política de congelamento de preços e terminou sendo ineficaz para conter a especulação. Você acredita que desta vez essa medida pode ser efetiva?

Essa política já foi aplicada em outros países. Na Argentina, na última gestão kirchnerista, chamava-se "preços cuidados", começou com uma lista de 80 produtos e terminou com uma lista de quase 700 produtos. Por que assim como há empresários que estão em uma dinâmica hiper especulativa, há outros empresários, cujo patrimônio, o nível de investimento é alta, tem maquinaria, equipamentos, infraestrutura, uma massa de operários e é claro perdem muito mais com a desestabilização e preferem apostar no estímulo para captar mercado a perdê-lo subitamente, porque logo as pessoas poderiam deixar de ter capacidade de comprar. 

A última vez não funcionou, porque houve uma simulação dos empresários que não estavam interessados no controle de preços, senão nas divisas a preços preferenciais, já que é ele o único injetor de divisas no país.

Há dois fatores que contribuem para que agora funcione, primeiro é que os empresários estão apostando na capitalização de mercado; o outro é que dessa vez o Estado não têm dólares. 

Nós temos a ferramenta do sistema Pátria, uma ferramenta de big data que já foi utilizada para distribuição de bônus sociais, para a prevenção do coronavírus e que poderia ser usada para fazer controladoria sobre os estabelecimentos, marcas, produtos, que fazem parte dessa lista de preços. 

A lista de preços foi acordada em dólares. Isso representa o desaparecimento do Bolívar Soberano? E como evitar a distorção de valores da mercadoria se o comerciante estabelece o preço de acordo com o dólar paralelo e o consumidor deve pagar ao câmbio oficial?

Há uma distorção que não pode ser controlada no seio da contradição. Não pode haver uma guerra sobre quem coloca o preço das divisas. Para romper essa lógica devemos partir de outro ponto, que o Estado sabe, mas ainda não implementou completamente. 

Essa saída é a implementação de uma divisa alternativa, que nesse caso seria o Petro, para que cumpra os três papeis que deve cumprir uma moeda, são eles: unidade de conta, que efetivamente há dois anos o Petro já funciona como unidade de conta, já que é a referência para estabelecer o salário mínimo; como reserva de valor, uma forma de poupança, isso também já aconteceu há mais de um ano.

Porém, a função mais importante e que pode dar ao Petro a capacidade de gerar estabilidade na relação cambial e na capacidade aquisitiva dos trabalhadores, é a função de meio de pagamento, e essa função apenas teve um ensaio em dezembro de 2019.

Com toda a situação da pandemia não se pôde implementar essa última função do Petro que é a que coloca o Petro num jogo econômico ativo. 

Não podemos atacar a distorção cambial com o Bolívar Soberano e tentar competir com o dólar paralelo. A solução está em uma moeda ancorada no mercado internacional.

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Estima-se que o Estado venezuelano tenham cerca de US$7 bilhões bloqueados apenas em ativos financeiros no exterior. Recentemente se soube de mais um caso de uma conta do Banco Central no CitiBank. Como deter esse tipo de furto?

Não temos outra coisa que fazer senão percorrer esse longo caminho do direito internacional para tentar reaver nosso patrimônio e apostar nas novas relações internacionais do multilateralismo.

Apostar nas novas relações com países que também querem recompor o direito internacional que tem sido sistematicamente violentado pelos Estados Unidos. 

Foi assim com Iraque, com a Líbia, em que se apoderaram de mais de 210 bilhões de dólares em ouro depositados em bancos europeus, o mesmo com a Venezuela.

Edição: Leandro Melito