Ásia

Pandemia mostra que problemas de habitação na Índia são maiores do que se imaginava

Maior parte das residências do país são inapropriadas para quarentena por falta de água ou de espaço

Brasil de Fato | Nova Delhi (Índia) |

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Família reunida durante a quarentena na favela de Dharavi, em Mumbai: distanciamento social nem sempre é possível - Indranil MUKHERJEE / AFP

Nenhum país adotou medidas de isolamento mais restritivas do que a Índia para conter a disseminação do coronavírus. Para a maioria dos habitantes, no entanto, ficar em casa não é garantia de prevenção.

Cerca de 600 milhões de indianos não têm oferta de água suficiente para suas necessidades e 84,7% das residências possuem menos de um cômodo por pessoa, inviabilizando a higiene e o distanciamento físico.

Na última semana, a Rede por Direito a Terra e Habitação, sediada na capital Nova Delhi, publicou um relatório sobre o impacto da pandemia nos direitos humanos. Além de listar as medidas adotadas por cada estado para aliviar o sofrimento dos mais pobres, o documento aponta lacunas, desafios e sugestões.

Shivani Chaudhry, diretora-executiva da organização, conversou com o Brasil de Fato sobre a importância de aproveitar o momento para repensar políticas públicas. A ativista defende que o Estado não pode usar o coronavírus como desculpa para violar direitos.

Segundo país mais populoso do mundo, a Índia registra 2,3 mil mortes por covid-19 e se prepara para flexibilizar as regras de isolamento no dia 17.

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Dados defasados

O governo indiano admite que há 2,7 milhões de pessoas em situação de rua em áreas urbanas, mas a Rede por Direito a Terra e Habitação trabalha com um número 48% maior.

“Uma comissão designada pela Suprema Corte estimou que 1% da população urbana da Índia não tem casa. Nós temos hoje entre 380 e 400 milhões de pessoas em áreas urbanas, então 1% seria algo em torno de quatro milhões”, afirma Chaudhry.

Essa defasagem ajuda a explicar a dificuldade dos governos estaduais para proteger os sem-teto durante a pandemia. Os abrigos se mostraram insuficientes, e os ministros-chefe – cargo equivalente a governador – tiveram que abrir as portas de escolas e ampliar vagas em albergues para suprir a demanda.

“Eles tomaram algumas medidas, mas o problema é que são muitas pessoas vivendo no mesmo cômodo. Se uma pessoa fica doente, é muito provável que todos os outros se contaminem pelo vírus, porque dividem o mesmo quarto”, pondera a ativista.

“É impossível ficar 24 horas por dia de máscara, e os banheiros são compartilhados. É um risco muito grande. Além disso, quando as pessoas saem para buscar comida, precisam ficar na fila dos centros de distribuição e voltam muito mais expostos”, acrescenta.

Vulnerabilidade

Shivani Chaudhry explica que as políticas de habitação devem ser estruturadas com base no conceito de pobreza multidimensional. Ou seja, os problemas de acesso a moradia refletem uma situação de vulnerabilidade que também diz respeito a outros direitos básicos, como saúde e alimentação.

Antes da pandemia, a Índia tinha 800 milhões de pessoas em situação de pobreza e 230 milhões de famílias cadastradas no sistema público de distribuição de alimentos. Como 90% dos trabalhadores são informais e mais da metade recebe por diária, a demanda por cestas básicas cresce a cada dia. Na última semana, o desemprego no país chegou a 27%.

“Temos um ótimo Decreto de Segurança Alimentar, que garante a dois terços da população o acesso a subsídios alimentares sob o que chamamos de sistema público de distribuição. E o que nós vemos durante a pandemia é que, embora essa política seja boa, ela não cobre todos que precisam”, alerta Chaudhry. “Há muitas pessoas em situação de pobreza que ainda necessitam de comida e, como não estão incluídas no decreto, os estados estão tentando ajudá-las”.

Na Índia, a administração de abrigos para pessoas em situação de rua cabe aos governos locais, mas a responsabilidade sobre a alimentação é compartilhada entre os estados e o governo central.

Desigualdades regionais

Três das quatro metrópoles mundiais com maior densidade populacional estão na Índia: Nova Delhi, no norte, Chennai, no sul, e Mumbai, na costa oeste. Chaudhry elogia os esforços realizados nas duas primeiras para garantir abrigo e alimentação aos mais pobres durante a pandemia. Só em Delhi, são servidas refeições gratuitas para 600 mil pessoas todos os dias.

“Mas na periferia de Mumbai, especialmente em Dharavi, a doença está se espalhando muito rápido”, alerta. Dharavi é uma das maiores favelas da Ásia. “Se uma pessoa se contamina, o mais provável é que toda a família fique doente”, completa a ativista.

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Em Mumbai, voluntários empacotam pães para doar a trabalhadores migrantes / Indranil Mukherjee/AFP

Conforme o vírus avança, fica claro que as necessidades do setor de moradia são mais amplas do que previa o governo central. Muitas delas sequer constam entre as diretrizes do Ministério de Habitação e Assuntos Urbanos do país. O tamanho das residências, por exemplo, que até março parecia ser um problema de natureza privada ou individual, torna-se indissociável dos debates sobre saúde pública.

As famílias indianas têm em média cinco membros, mas 69% das casas possuem até dois cômodos. Na zona rural, onde vivem dois terços da população, a infraestrutura é ainda mais precária. Cerca de 75 milhões de pessoas moram em acampamentos ou assentamentos informais, sem acesso a serviços básicos como água encanada e luz elétrica.

O estado de Kerala, na região sul, possui as condições mais apropriadas para enfrentar a pandemia. “Kerala tem um governo de esquerda há um longo tempo, com investimentos acima da média em saúde e educação”, explica a diretora da Rede. “Durante a pandemia, eles agiram muito rápido. Iniciaram os bloqueios com antecedência, começaram a isolar as pessoas e rastrear os casos, além de serem muito transparentes e eficientes na comunicação”.

Lições da pandemia

Shivani Chaudhry afirma que o coronavírus reforça a necessidade de se efetivar o direito universal à moradia.

“A Índia nunca teve um investimento adequado em moradia social, modelos de habitação coletiva, nem aluguéis sociais. Acho que é hora de, impulsionados por esse problema, incluirmos esse tipo de políticas”, observa. “Vemos muitos despejos, em que as casas de pessoas pobres são demolidas em nome de grandes projetos, rodovias ou ‘embelezamento’ urbano. Então, mesmo quando as pessoas conseguem construir seus lares, o governo os destrói, e isso precisa parar”, conclui.

A ativista reconhece os esforços dos governos estaduais para impedir o contágio da população em situação de rua, mas deixa claro que as respostas até agora são paliativas. “Não podemos ter pessoas morando em abrigos para sempre. Hoje, o governo está colocando essas pessoas em salas de aula, mas logo as escolas vão reabrir. Para onde elas vão? Não podemos permitir que elas voltem a ficar sem casa”, ressalta Chaudhry.

A Índia nunca teve um investimento adequado em moradia social, modelos de habitação coletiva, nem aluguéis sociais.

A Rede por Direito a Terra e Habitação defende a retomada das atividades econômicas na Índia, desde que haja respeito às normas de distanciamento social e uso de máscaras e aos direitos previstos na Constituição do país.

Edição: Rodrigo Chagas