Confinamento

Artigo | Se quarentena em casa traz más sensações, já pensou sobre estar encarcerado?

Natalie Hanna parte do isolamento social para refletir sobre adoecimento psíquico no sistema prisional brasileiro

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
Brasil possui 3ª maior população carcerária no mundo, com um ritmo de crescimento de 8,3% ao ano - Agência Brasil

Vivemos hoje um momento histórico, com uma crise sanitária e econômica devido à pandemia da covid-19, e, no intuito de reduzir o número de infecções e mortes pela doença, especialistas da área da saúde recomendam o isolamento social.

Entretanto, para aqueles que têm o privilégio de praticá-lo, muitos são os relatos de sentimentos de tédio, angústia, desânimo, crises de ansiedade, insônia, depressão, alcoolismo e maior consumo de outras drogas (cigarros, ansiolíticos, antidepressivos, relaxantes). Também dados contabilizando um aumento significativo de casos de violência doméstica

Se em casa sensações ruins e sintomas até antes nunca experimentados estão sendo observados, pergunto: você já pensou sobre estar encarcerado por anos?

O Brasil possui a 3ª maior população carcerária no mundo com um ritmo de crescimento de 8,3% ao ano. São mais de 812.000 pessoas encarceradas e, dessas, 41,5% presas sem julgamento.

Considerando os possíveis desconfortos que a experiência de isolamento social pode proporcionar, este texto traz informações sobre o sistema prisional brasileiro e busca provocar um questionamento acerca da atual política de encarceramento em massa que nosso país pratica, decorrente de uma política nacional e com o apoio de boa parte da população brasileira que nunca pisou em um presídio.

Apesar das condições degradantes dos presídios brasileiros serem de conhecimento da maioria das pessoas, trarei informações descritivas de uma Penitenciária Feminina de Segurança Máxima, no interior do Estado de São Paulo, onde trabalhei em 2019.

Por dentro da penitenciária

Lembro do primeiro dia em que fui a essa penitenciária. Enormes muros cercados, cinzas e desbotados, devidamente vigiados por agentes penitenciários em suas altas torres. Na entrada, se faz registro do CPF e o carro é revistado. Na sequência, passa por raio-X, tira cinto, tira sapato, revista seu corpo e é permitida sua entrada, sempre acompanhada de uma agente penitenciária. Caminha por longos corredores escuros sem janelas, não muito limpos e abafados, com grades grossas e imponentes, divididos por portões que recebem sempre um procedimento de abertura e fechamento. Um trajeto que parecia interminável entre os diferentes pavilhões. Até onde chegaríamos? Por mais quantos portões e trancas eu passaria? 

Cada batida dos pesados portões de ferro fechados nas minhas costas era um adicional mental de informação de que eu também estava sendo encarcerada — mesmo que esporadicamente e por livre vontade. 

Muitos dos sentimentos de angústia, depressão, irritabilidade e ansiedade que diversas pessoas estão relatando devido ao isolamento social assemelham-se aos relatos que pessoas encarceradas fazem.

A grande maioria é medicada para conter surtos psicóticos dos mais diversos, além de muitos casos de suicídios, que, especificamente dentre mulheres presas, apresentam um percentual de 20% acima da média nacional.

Nesse presídio em que estive, há celas superlotadas e muitas mulheres dormem no chão por falta de lugares nas acomodações. Falta de ventilação e iluminação adequadas devido às janelas muito pequenas contribuindo para um ambiente úmido e insalubre. Não há mínimas condições de higiene - os banheiros estilo turco (buraco no chão) para necessidades fisiológicas ficam dentro das celas e não há privacidade - as próprias presas improvisam panos para a separação do “banheiro” dentro das celas. Relatos de ratos e baratas nas celas são recorrentes, assim como banhos frios, mesmo no inverno, numa região de temperaturas baixas do estado de São Paulo e alimentação limitada e inadequada (relatos de alimentos mau cozidos e/ou frios). 

No regime fechado, as detentas ficam presas nas celas por 14 horas diárias em espaços de 8m² a 12m². As agentes penitenciárias abrem as celas às 6h30 da manhã e as fecham às 16h30 (algumas presas que conseguem trabalhos dentro do presídio retornam às celas às 17h. Como a maioria não tem trabalho, nesse intervalo das 6h30 às 16h30, podem escolher entre permanecerem presas nas celas - o que muitas fazem para evitar brigas e mais punições - ou presas no pátio, do tamanho de uma quadra pequena de futsal. 

No atual distanciamento social muitas pessoas que estavam há apenas um mês sem sair de casa sentiram ansiedade, irritabilidade, depressão e pensamentos suicidas. Imagine ficar preso por anos em condições de habitabilidade inadequadas como as descritas acima.

Trago essas informações para elucidar a ineficiência dos presídios brasileiros para promover uma adequada ressocialização dos egressos, reflexão positiva sobre os crimes cometidos e para redução da violência urbana. Pelo contrário, contribuem para o aumento da violência se considerarmos os presídios como “escolas do crime”.

Prova disso é a alta taxa de reincidência no Brasil, que embora exista uma fragilidade nos dados e em sua conceituação, alguns estudos apontam para cerca de 70%. Isso é, de cada 10 pessoas que vão presas, sete voltam a cometer crimes após serem libertas. A maioria dos egressos reincide no crime por falta de oportunidades de trabalho, decorrente de baixa escolaridade e/ou dificuldade em encontrar trabalhos que não tenham preconceito pelos precedentes criminais. Além do fato das dificuldades psicossociais de retornar à sociedade após anos de reclusão. 

Salvo raras exceções de boas administrações penitenciárias, os presídios brasileiros oferecem poucas opções de trabalho e de estudos. Quando há, são escassas.  

Questão estrutural

De um modo geral, existe uma crença em nossa sociedade de que presos são pessoas deploráveis e que não merecem um tratamento digno e humano. Quem nunca escutou: “Aquele ali tinha que apodrecer na prisão?". 

Na maioria das vezes, nesses discursos, não há uma observação das causas das estruturas histórico-sociais que contribuem para que os crimes ocorram e sigam ocorrendo. Não é mera coincidência que mais de 60% da população carcerária no Brasil é autodeclarada negra ou parda.

Aumentar a população presa significa também que o Estado está investindo muito mais em aprisionamento como resposta aos problemas sociais, em vez de pensar em políticas públicas em educação e saúde. O problema de segurança pública segue sem solução, pois é sabido que desigualdades socioestruturais contribuem para a ocorrência de violência. O contínuo crescimento de pessoas privadas de liberdade, por sua vez, não tem repercutido na melhoria das condições de vida e de segurança da sociedade brasileira. 

Isso não quer dizer que não devam incorrer punições a crimes violentos, principalmente crimes que impliquem perigo à vida em sociedade (assassinatos, estupros, pedofilia, feminicídios). 

Aplicação de penas alternativas e de caráter educativo, como serviços à comunidade ou a entidades públicas, para crimes sem violência ou grave ameaça podem ser eficazes.

Importante ressaltar que a discriminação sociorracial presente em nosso país gera um reflexo pulsante na escolha das pessoas que vão presas, como já mencionado, uma grande maioria pobre e negra. Quem consome as drogas? Quem vai preso?

E, considerando a histórica negação de direitos às pessoas presas, mantendo-as em condições degradantes, implica também em uma seletividade em medidas protetivas e de acesso ao sistema de saúde pública diante da pandemia que estamos vivendo.

Covid-19 e o encarceramento

Evitar aglomerações e manter higiene adequada, principalmente das mãos, são as recomendações básicas para evitar o contágio da covid-19. No entanto, como impedir aglomerações em celas superlotadas? Como manter a higiene em ambientes insalubres?

Importantes órgãos como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) recomendaram ações para reduzir a superlotação nos presídios, sugerindo um desencarceramento emergencial, principalmente de presos idosos e com comorbidades existentes, e mesmo presos condenados por crimes de baixo potencial ofensivo ou sem violência, para praticarem medidas socioeducativas em meio aberto ou concessão de prisão domiciliar.

A recomendação foi negada pelo então Ministro da Justiça Sergio Moro e o sistema prisional brasileiro encontra-se diante de um possível colapso sanitário devido a enorme probabilidade de disseminação e contágio da covid- 19. 

Precisamos repensar as formas de punição aos crimes que são cometidos considerando que somente emprisionar não é uma solução. Ao contrário, contribui para o desenvolvimento de problemas de sanidade mental e consequente aumento da violência urbana. 

A política atual de encarceramento em massa, com um exponencial crescimento da população carcerária, sobretudo de pessoas negras e pobres, mostra-se ineficaz para solucionar os problemas de segurança pública.

Muitas são as propostas que podem ser implementadas, garantindo direitos humanos básicos para as pessoas encarceradas. Um exemplo são maiores e melhores investimentos públicos em políticas educacionais e de apoio às populações em situação de vulnerabilidade social. Também a melhoria nas estruturas dos presídios e oferecimento de mais oportunidades de trabalho e educação; descriminalização e regulamentação do uso de drogas verificando boas práticas e resultados em outros países desenvolvidos, reduzindo consideravelmente a guerra do tráfico e garantindo um uso com base na redução de danos; apoio a mulheres em situação de vulnerabilidade social (a maioria das mulheres (67%) vai presa por inserção no tráfico de drogas por falta de oportunidades de formação e trabalho); diferenciação de crimes mais graves dos mais leves e propor alternativas penais ao encarceramento para estes últimos; e, por fim, uma adequada ressocialização e inserção social dos egressos, com atendimento psicossocial e direcionamento para instituições de apoio para o trabalho e educação.

*Natalie Hanna é economista, graduada em Direito com especialização em Ciências Políticas e pós-graduada em Meio Ambiente e Sociedade. 

Fonte: BdF Rio de Janeiro

Edição: Mariana Pitasse e Vivian Fernandes