Direito à Memória

"Cada pessoa é um universo": memoriais transformam mortes por covid-19 em lembrança

Páginas contam histórias das pessoas que perderam a vida para a doença de forma poética

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Em São Paulo, “eu amo tudo que vivi” foi a última frase de Thiago Mendes Lobo, de 26 anos, cuja vida inteira foi levada pela covid-19 - Nelson Almeida/AFP

O Brasil amanheceu neste fim de semana com 15.633 mortes causadas pelo novo coronavírus, segundo dados divulgados pelo Ministério da Saúde, neste sábado (16).

Com o número, o Brasil se aproxima de posições no ranking mundial em relação à doença que nenhum outro país gostaria de ter. E os países que estão à frente dessa triste lista, reiteram para o mundo a dor da perda de milhares de cidadãos.

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Em Belém, no Pará, a doença levou Adalberto Álvares Almeida, de 53 anos. Nascido e criado em Belém, Almeida era amante do carnaval e do Clube do Remo.

De São Paulo, a piauiense Adélia Maria Araújo de Almeida Oliveira, de 62 anos, faleceu na linha de frente da doença. Médica pediatra, ela era generosa ao cuidar das pessoas com interesse, respeito e seriedade. 

Em São Paulo, “eu amo tudo que vivi” foi a última frase de Thiago Mendes Lobo, de 26 anos, cuja vida inteira foi levada pela covid-19.

De Mairiporã, interior paulista, ele era um pouco “desligado”. Uma vez organizou uma festa surpresa para um amigo, mas sem querer acabou mandando o convite para o próprio aniversariante. 

A auxiliar de enfermagem Valdirene Aparecida Ferreira dos Santos, de 39 anos, era casada e deixou dois filhos. A paranaense faleceu enquanto estava estava na linha de frente no Hospital Marcelino Champagnat (HMC), na cidade de Curitiba, onde trabalhava há cerca de três anos.

Todos esses nomes e suas histórias estão no memorial online Inumeráveis, que mostra a realidade da pandemia para além dos números que sobem exponencialmente a cada dia no Brasil e no mundo.

Gabriela Veiga, atriz e do núcleo fundador do projeto, afirma que a ideia nasceu justamente para contrapor “toda essa parte humana que é tratada de uma forma fria e calculista que são as estatísticas, os números e as quantidades de mortos”.

“Nesse memorial, a gente conta todas as histórias. O objetivo é contar 100% das histórias de quem foi vítima de covid-19. Então, é uma mescla de jornalismo com arte e humanidade”, afirma Veiga.

Ao reunir essas histórias, o projeto acaba por “eternizar” essas pessoas, e o memorial também se tornando um lugar onde as pessoas podem voltar para visitar as lembranças dos entes queridos.

É como se você entendesse que cada pessoa é um universo muito grande. Em vários momentos da humanidade, as mortes foram tratadas de forma fria. E essa era mais uma chance de acontecer isso também pela nossa liderança do país. Mas o Inumeráveis é um esforço para que isso não aconteça.

Outro projeto semelhante é o “Memorial das Vítimas do Coronavírus no Brasil”, da Rede de Apoio às Famílias de Vítimas Fatais de Covid-19. Um dos fundadores, o historiador Danilo César, que trabalha há mais de 20 anos com o direito à memória e ao luto, afirma que a ideia nasceu “justamente pela importância do direito à memória e às expressões de luto”.

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Mas, para além de criar um memorial, a rede também presta auxílio psicológico para as famílias. Pelo cenário internacional. Nós já podíamos imaginar o que viria acontecer por aqui, em especial com relação às vítimas fatais, numa escala inimaginável e inédita, e todos os diversos impactos pós traumáticos, de lutos, diversos tipos de lutos que isso desencadearia”, afirma César.

A partir do cenário internacional que se aproximava do Brasil, César entendeu que era necessário cumprir o papel “fundamental” de apoio às famílias de vítimas fatais. 

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Ele explica que o apoio se dá de diversas formas, desde orientações básicas até mesmo antes das mortes até depois, desde auxílio jurídico e psicológico, sempre de forma gratuita, em todo o Brasil, do Acre ao Rio Grande do Sul. 

“É um trabalho absolutamente imprescindível e fundamental. No momento em que a gente está conversando, já são mais de 15 mil pessoas mortas oficialmente no Brasil. Estudos dizem que, para cada pessoa que morre, por volta de 10 pessoas no mínimo passam a atravessar um período de luto muito difícil”, frisa César.

Nessa conta, são no mínimo mais de 150 mil pessoas que precisam desse tipo de acolhimento, sem contar com o cenário de subnotificação, de acordo com estudos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) feito em cima do aumento expressivo do número de internações por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), em 2020, e a grande quantidade de testes negativos para gripes já conhecidas. 

“É um trabalho imprescindível psicoterapêutico do ponto de vista social para o país. É um trabalho que a gente faz também complementarmente ao dos profissionais de saúde que estão heroicamente salvando vidas”, destaca César.

Edição: Leandro Melito