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Artigo | Máquina de lucro: um ensaio sobre a vida dos trabalhadores e trabalhadoras

Como será a vida pós-pandemia e o que devemos fazer? Fortalecer as relações e seguir a luta

Pelotas | Brasil de Fato |
O Quarto Estado, obra de 1901 de Giuseppe Pellizza da Volpedo - Associazione Pellizza da Volpedo - Divulgação

O primeiro caso de coronavírus no Brasil foi detectado na última semana de fevereiro. Algumas semanas depois, critérios de isolamento e quarentena foram anunciados. Com o tempo, as medidas ficaram cada vez mais rígidas, menos para os trabalhadores essenciais.

O aprofundamento de retrocesso nos direitos trabalhistas foi iniciado no governo Temer, em 2017, com a contrarreforma trabalhista e com a defesa da contrarreforma previdenciária, agora paralisada por conta dos desdobramentos recentes. Com a pandemia, mais medidas flexibilizaram o trabalho, como as MPs (Medidas Provisórias) 927 e 936. Antes da retomada da vida à “normalidade”, o por enquanto ministro da Economia, Paulo Guedes, já anuncia quais setores vão ter que “ajudar o Brasil nesse momento difícil”. Como em toda crise, cabe aos mais pobres fazer esforços em defesa da retomada econômica.

O futuro do trabalho, que nada tem a ver com uma visão futurística de máquinas dominando homens, é revelado desde já: enquanto a elite olha pela janela, o sujeito essencial para a economia é condicionado a um trabalho precário, com baixos salários e pouca proteção. Um futuro diferente deste somente é possível com trabalhadores e trabalhadoras organizadas e uma correlação de forças capaz de elaborar significações na defesa do Estado público e de caráter popular.

Os serviços considerados essenciais são os de transporte, imprensa, limpeza, alimentação, serviços hospitalares, entre outros. Agora já é um grupo maior, ampliado gradativamente pelo governo federal, mas estados e municípios possuem autonomia para decidir como conduzir as ações de combate à covid-19. Contudo, as condições de trabalho dos trabalhadores desses serviços têm sido alvo de questionamentos. Sobretudo para trabalhadores de aplicativos, extremamente flexibilizados e sem vínculo empregatício. A segurança no trabalho, nesses casos, assim como no de empregadas domésticas, para citar outro importante exemplo, possui pouco respaldo jurídico, visto que são empregos informais.

Filhos e filhas de empregadas domésticas lançaram um manifesto ‘É pela vida de nossas mães’ na última semana de março, motivado pelo caso de uma trabalhadora doméstica vítima da covid-19 após contágio com a empregadora que, mesmo com diagnóstico positivo para a doença, manteve a relação de trabalho. Ações como essa denunciam relações estruturais sobre o trabalho no Brasil, mas, acima de tudo, denunciam a negligência sobre a vida das pessoas em detrimento do lucro. Pois, por trás da precarização do trabalho há sempre uma taxa de lucro que quer crescer. Motivo pelo qual, inclusive, as contrarreformas do ex-presidente interino Michel Temer (MDB) foram tão desejadas pelos representantes da burguesia brasileira.

As contrarreformas trabalhista e previdenciária foram as primeiras e principais pautas dos 2 anos de governo presidencial de Temer. Logo após o impeachment de Dilma Rousseff (PT), incentivado pela necessidade de políticas de maior austeridade para compensar a crise cíclica do capital, os mesmos agentes que, à época do impedimento, fizeram campanha e construíram as significações necessárias para isso, pressionaram Temer para garantir a aprovação das reformas. A grande diferença foi que de um lado a imprensa mantinha seu ritmo de ofensiva e, do outro lado, o Congresso Nacional encontrava-se um pouco acuado por conta das mobilizações e organização dos trabalhadores e trabalhadoras que tomaram as ruas naquele ano.

Vidas valem menos do que o mercado

Após uma série de desdobramentos, com recuo das ruas inclusive por alguns sindicatos, a reforma Trabalhista foi aprovada em julho de 2017. Nem assim Michel Temer conseguiu melhorar sua popularidade, desgastada desde o início de seu governo como presidente interino. De todo modo, a lei da reforma Trabalhista (13.467/2017) acarretou transformações essenciais para aumentar o lucro sobre o trabalho precarizado e, além disso, flexibilizar relações que atuam no campo jurídico, ao retirar a participação do sindicato através da sobreposição do negociado ao legislado. Mais horas diárias de trabalho, férias divididas, trabalho intermitente, permissão de trabalho por grávidas em condições insalubres, e outros retrocessos de lutas históricas dos trabalhadores e trabalhadoras já prenunciava que vidas valem menos do que o mercado. Mas, nessa época, ainda não imaginávamos o que estava por vir.

Então, findado o governo Temer, novas eleições à espreita aprofundaram a crise política sob supervisão da imprensa hegemônica. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi preso por alegações ainda não comprovadas, resultando em sua soltura em novembro de 2019. Mas, antes disso, Jair Bolsonaro (sem partido) foi eleito presidente (sic). E então, logo após Bolsonaro, veio a pandemia. E com ela uma série de outros retrocessos para trabalhadores e trabalhadoras, como é o caso das Medidas Provisórias (MPs) 927 e 936.

Tais medidas agravam a desigualdade social e dizem respeito apenas às necessidades das empresas. Sem a presença do sindicato para negociações, trabalhadores sentem-se ameaçados e com receio de ficarem completamente desamparados. A MP 927 permite, para citar um exemplo, que o tempo que trabalhadores estão em casa por conta da necessidade de isolamento social seja revertido em horas a serem pagas futuramente para os empregadores ou, então, que feriados sejam compensados para o banco de horas. Isto é, nós vamos pagar em horas no trabalho o tempo que precisamos ficar em casa em atenção à nossa saúde e sobrevivência. A MP 936 traz em seu texto a proposta de redução proporcional de jornada de trabalho e salário, medida que deve ser acordada entre empregador e empregado, sem a mediação do sindicato. Ações como essas evidenciam um importante fator que deve estar presente nessa discussão: o fortalecimento do Estado sob a ótica do neoliberalismo.

No segundo semestre de 2019, o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese/RS) divulgou um relatório atualizado de devedores da Previdência Social e o montante total dessa dívida. Empresas como Vale, Samarco e Gerdau; e bancos, tais como, Itaú, Bradesco e Santander, figuram entre os maiores devedores. São quase R$ 1 trilhão. Essa dívida existe por falta de pagamento de impostos aos cofres públicos para a garantia da Previdência. Ou seja, sonegação de imposto, que também é crime. No entanto, o ministro da Casa Civil, Walter Braga Netto, apresentou ao governo o ‘Programa Pró-Brasil’, o que na verdade foi um slide com projeções sem qualquer base matemática.

Segundo Braga Netto, durante apresentação em coletiva de imprensa, este “não é um programa de governo, é um programa de Estado”. Dividido em dois eixos, ordem e progresso, a centralidade é o fortalecimento da relação do Estado com o setor privado. É o aprofundamento do neoliberalismo e da flexibilização do trabalho. É o anúncio declarado de que a vida vale menos do que o mercado. Com isso, assim como a dívida dos bancos e das empresas com a Previdência deve ser paga pela população com medidas austeras, o arrocho salarial dos servidores públicos deve atuar como medida de recuperação econômica. Então, a economia faz seu apelo, ao afirmar, segundo palavras de Paulo Guedes, que “precisamos também que o funcionalismo público mostre que está com o Brasil, que vai fazer um sacrifício pelo Brasil, não vai ficar em casa trancado com geladeira cheia e assistindo a crise enquanto milhões de brasileiros estão perdendo emprego”. Sucatear para privatizar, é o lema do Brasil.

E assim vivemos década após década como personagens da trajetória literária de Charles Dickens

Em artigo no jornal inglês, The Guardian, Mariana Mazzucato, professora de economia da University College London, sugere um novo modelo produtivo do capital para lidar com a crise econômica a longo prazo. A velha ideia do capitalismo humanizado, tão mitológica quanto a ideia da mão invisível do mercado. Essa saída mantém a população pobre - negros e negras, em especial, pois o racismo acentua a desigualdade - refém de trabalhos precarizados e mal remunerados.

Desde o início da pandemia, já são 1,1 milhão de pessoas desempregadas, segundo estatísticas da pesquisa trimestral de emprego do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a Pnad Contínua. Dessas, 400 mil eram trabalhadores com carteira assinada, que, provavelmente, integrarão os números de trabalhadores informais ou qualquer outra modalidade de trabalho flexível que possa vir a ser criada na tentativa de valorização do capital. Pois, a tendência é que as medidas pós-pandemia sejam muito mais austeras, e a longo prazo, para um conjunto cada vez maior de trabalhadores e trabalhadoras.

Enquanto isso, em meio a uma pandemia, o presidente vai ao STF, acompanhado de empresários e ministros, para pedir a abertura do comércio.

O acordão jurídico-parlamentar-midiático feito para aprovar medidas econômicas severas segue firmado. Talvez esteja um pouco enfraquecido pelos desequilíbrios do presidente. Apesar disso, o Supremo Tribunal Federal (STF) continua a autenticar a agenda de precarização da vida da classe que vive do trabalho[1], sem alarde da mídia hegemônica e com apoio do Congresso Nacional. Ao fim e ao cabo, Bolsonaro isolado não muda o fato de que por aqui o neoliberalismo seguirá imperando, como se fato fosse um indivíduo com poderes supremos.

É difícil fazer previsões sobre o tempo do isolamento e o futuro do atual governo. A crise ao redor de Bolsonaro acentua-se na mesma proporção em que consolidam-se os grupos favoráveis e contrários à sua gestão. Isso, por sua vez, acarreta uma série de incertezas ou talvez inseguranças e vice-versa à medida que os agentes políticos vão definindo suas posições. Pode parecer paradoxal, mas a polarização, sobretudo em um contexto de esquizofrenia ideológica, com um governo conservador e liberal, nos deixa a árdua tarefa de lidar com os problemas mais complexos que se pode ter em uma crise política e em uma crise econômica.

Se, por um lado, o impeachment de Dilma tinha um ar kafkiano, vide o livro ‘O processo’; por outro lado, a atual crise do governo Bolsonaro apresenta a essência da narrativa de Bacurau. Agora, nos falta criar um meio de defesa coletiva. 

Diversas são as leituras (e muitas, muito boas!) sobre a atual conjuntura e os possíveis desfechos. É difícil traçar articulações precisas, mas é necessário fortalecer uma correlação de forças capaz de, mais do que apresentar alternativas, sustentá-las. Em todas as áreas precisamos elaborar planos de ação com caminhos possíveis de serem traçados para a construção de uma outra sociabilidade e outra lógica produtiva que não coloque os trabalhadores e trabalhadoras como agentes essenciais sob circunstâncias inseguras e precarizadas como condição para o crescimento econômico dos setores privados da sociedade civil.

Pautas que há tantos anos lutamos para defender, hoje são justamente as pautas essenciais para a recuperação e fortalecimento da democracia, tais como, a democratização dos meios de comunicação, a demarcação de terras indígenas, a regulamentação dos trabalhos informais, a taxação das grandes fortunas e a descentralização da renda. Nós sabemos quem são nossos aliados. Que nós, então, fortaleçamos as relações e sigamos adelante à luta!

* Jornalista e mestre em Comunicação e Cultura (UFRJ). Coordena o Instituto de Estudos Políticos Mário Alves (IMA), sediado em Pelotas/RS.Colaboradora do Brasil de Fato RS.

 

[1] A expressão ‘classe que vive do trabalho’, segundo o sociólogo Ricardo Antunes (2015), é utilizada como “sinônimo de classe trabalhadora” e abarca assalariados do setor de serviços, trabalhadores/as rurais, trabalhadores/as produtivos e improdutivos, desempregados/as e informais.

Edição: Katia Marko