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Coluna

Nem saúde, nem economia

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Panelaços pelo país pedem saída de Bolsonaro - Roberto Parizotti/Fotos Públicas
A necropolítica bolsonarista não tem limites, extermina CPFs e CNPJs com a mesma eficiência

O governo de Jair Bolsonaro tem conseguido o feito raro de errar em todas as ações que empreende. Depois de criar o falso antagonismo entre defesa da vida e recuperação da economia, mostrou que é capaz de contribuir para destruir os dois lados. Além disso, tem mostrado equívocos em tudo o que toca: política externa, cultura, meio ambiente, educação, justiça e direitos humanos, para ficar nas lambanças mais evidentes.

Mas é no campo do combate à pandemia que ele se destaca, oferecendo tanto uma política sanitária criticada mundialmente, como apresentando soluções para a economia que não têm garantido nem empregos nem a sobrevida das empresas que tanto parecem cultuar. A necropolítica bolsonarista não tem limites, extermina CPFs e CNPJs com a mesma eficiência e falta de caráter.

No âmbito sanitário, as trocas de ministros são apenas a face visível de uma política pública sem rumo. O governo federal rompeu com o consenso mundial em torno das ações responsáveis emanadas pela Organização Mundial de Saúde e da mais clássica ciência fundada em evidências, deixando de atuar na liderança de ações coordenadas para implantar um clima de confronto federativo.

Além disso, no renovado desconforto em agir dentro dos padrões científicos, o governo criou ideologização que constituiu um terraplanismo epidemiológico, feito de superstições e mitos vindos do submundo da insensibilidade humana. Não fosse o mais despreparado presidente do mundo, Bolsonaro arrogou a si a capacidade de dar opiniões sobre temas que não domina e cuja consequência afeta a vida das pessoas. Para ele, as urnas o tornam médico, general e taumaturgo.

A recente modificação do protocolo de um medicamento assinala a que ponto pode chegar o delírio autoritário. Com riscos comprovados por grupos de pesquisa em todo mundo e contra recomendações do próprio Ministério da Saúde, o presidente impõe algo mais grave que um remédio inadequado: uma cultura da subserviência em parte da máquina pública. Hoje é a cloroquina, amanhã um vermífugo que também mata pulgas, defendido pelo astronauta que tem com bagagem científica o plantio de feijões no algodão. O monstro faz escola.

A política pública de combate ao novo coronavírus destruiu o que de mais trabalhoso havia sido construído pelo Sistema Único de Saúde em mais de 30 anos de trajetória: a ideia de um compartilhamento responsável e racional entre níveis de governo. Em outros termos, um conjunto ordenado de ciência com consciência. O que o saber propicia, a gestão viabiliza.

Não há, em nenhum patamar de governo ou campo a atuação no controle da pandemia, algo que se assemelhe aos princípios do SUS. Seja em termos de universalidade, equidade, integralidade, regionalização e controle social. O que se observa é um cada um por si, capitaneado por alguns governantes estaduais e municipais de boa vontade, que contam com a má vontade do governo federal.

O Brasil testa pouco e mal. Investiga casos com pouca efetividade por falta de normas claras de acompanhamento de dados. As próprias informações que alimentam os bancos são defasadas e com pouca abrangência em razão dos poucos exames.

O tratamento tem sido prejudicado pela falta de uma coordenação do Ministério da Saúde, que não estruturou um sistema nacional de leitos, não tem comandado de maneira confiável os protocolos médicos e hoje esgarça as poucas certezas científicas no uso de medicamentos.

Com isso viu o país caminhar para assumir um lugar vergonhoso em termos internacionais, perdeu o foco moral interno que garantisse um sentimento de colaboração e cidadania sanitária e viu dois ministros preferirem deixar o cargo que manchar suas biografias. Tudo de ruim que se observa na área da saúde parecia proposital, como se com isso o país fizesse uma opção pelos interesses da economia.

No entanto, não é o que se vê. Ruim em saúde pública, o Brasil se mostra ainda pior em matéria de ações macroeconômicas para conter as consequências da doença no mundo real. As políticas do setor não foram capazes de garantir renda para a população mais vulnerável de forma eficiente e suficiente. O processo de ajuda emergencial jogou as pessoas nas aglomerações e o valor repassado foi aquém das necessidades mínimas de sobrevivência.

Além disso, o apoio às empresas de pequeno porte e negócios de empreendedores individuais foi ineficiente, com pouco crédito e dificuldade de acessar as linhas disponíveis. Os negócios estão fechando não por falta de consumidores, mas de transferência de capital de giro ou para pagamento de salários e compromissos correntes. A prioridade são programas de grandes empresas para descartar funcionários.

A falsa miragem da retomada da economia com a abertura do comércio esconde dois erros graves. O primeiro é o aumento da contaminação pela Covid-19, caso esse processo não tenha um controle adequado, o que parece distante num cenário com baixa testagem e investigação ineficaz. Em segundo lugar, a própria descapitalização das pessoas, pelo desemprego e diminuição de salários, não será por si só um instrumento capaz de garantir a retomada.

Depois de falhar em proteger as vidas, o governo federal vai dar defeito na proteção dos negócios. A crise, que deverá ser a maior em muitas décadas (ou medida na régua do século), não partiu de um problema do sistema financeiro para chegar à vida real. Filha de uma doença que habita todos os desvãos da sociedade, sua aterrissagem na existência pegou um mundo inteiro em crise, com milhões desempregados sem perspectiva. O que foi abstração em 2008 é cruelmente material em 2020.

O Brasil não sairá da crise colocando a vida das pessoas em risco. As medidas econômicas não podem se limitar a facilitar demissões e diminuição de salários e, menos ainda, a achar que uma transferência limitada de renda seja capaz de garantir a travessia do furacão. Tanto para o cidadão comum como para o iludido empreendedor que acreditou no canto da sereia do esforço recompensado. Para que a roda gire, é preciso que as pessoas mantenham os empregos e a renda, com capacidade de voltar a consumir.

No entanto, tudo será feito em um novo patamar, sem o consumismo que nutria o mercado e sem a capacidade operacional de vários negócios que se sustentavam exatamente na relação próxima entre as pessoas. O novo sistema que sai dessa pandemia vai exigir um tempo de adequação, criatividade e transformação. A ideia de relações remotas e novos produtos e serviços precisará de um tempo de transição.

O mercado não é capaz de fazer isso por si só. O limite mais visível da nova situação econômica está inscrito no DNA do tipo de capitalismo que era considerado natural até então. Sem o Estado, a transferência de renda, a garantia de defesa da vida, a realidade como era antes está com os dias contados.

É essa situação que os planos econômicos do governo não parecem alcançar. Guedes é um ser mitológico bifronte: olha para o passado enquanto é empurrado para um futuro que vai exigir mais solidariedade (mesmo por motivos egoístas de sobrevivência) para o qual não está preparado. Nem quer.

Não se trata de decidir se o valor do auxílio emergencial será de R$ 200 ou R$ 600. Se vai durar alguns meses ou vai migrar para a renda básica de cidadania. Se as empresas vão ter linhas de crédito para manter seus negócios e preservar empregos. Se setores afetados mais frontalmente pelas características da doença terão cobertura. A dúvida é uma só: haverá vida possível?

Na saúde e na economia.

Edição: Joana Tavares