Coluna

Em meio ao isolamento, uma atmosfera de guerra paira no ar

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Wojciech Fangor (Poland), Korean Mother [Mãe coreana] (1951) - National Museum in Warsaw [Museu Nacional de Warsaw]
Uma pandemia global não é apenas um tempo para ações urgentes; é também um tempo de reflexão

Em 23 de março, o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, pediu um cessar-fogo. “A fúria do vírus ilustra a loucura da guerra”, disse. Em um relatório recente, o Projeto de Localização e  Dados de Eventos de Conflitos Armado (ACLED, sigla em inglês) afirmou que a “chamada por um cessar-fogo global não teve o resultado desejado”. Do Afeganistão ao Iêmen, os tambores da guerra continuam a bater e seu horror segue definindo a vida social.


Chittaprosad (India), Call for Peace [Convocatória para a paz], 1952 / Reprodução

Uma pandemia global não é apenas um tempo para ações urgentes; é também um tempo de reflexão, um tempo para reconsiderar prioridades. Mas esse não é o caso para aqueles que têm hábitos bélicos e nenhuma paciência. O governo dos Estados Unidos, apesar da gravidade da covid-19, está antecipando uma guerra alucinatória contra a China, culpando-a pelo vírus, ameaçando miná-la a todo momento; o Comando Indo-Pacífico dos EUA buscou 20 bilhões de dólares em financiamento adicional para criar um muro de mísseis para ameaçar a China (em um documento chamado Lei de Autorização de Defesa Nacional: Recuperar a vantagem). Em meio ao grande isolamento, uma atmosfera de guerra paira sobre o ar; é enlouquecedora a perspectiva de entrar em conflito quando deveríamos estar tentando encontrar formas de cooperação.

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Em 15 de março de 1950, o Conselho Mundial de Paz enviou o Apelo de Estocolmo, um texto breve que pedia a proibição de armas nucleares e que acabaria sendo assinado por quase 2 milhões de pessoas. O apelo era composto por três pontos:

- Exigimos a proibição de armas atômicas como instrumentos de intimidação e assassinato em massa de povos. Exigimos rigoroso controle internacional na aplicação dessa medida.

- Acreditamos que qualquer governo a usar primeiro armas atômicas contra qualquer outro país estará cometendo um crime contra a humanidade e deve ser tratado como um criminoso de guerra.

- Convidamos todos os homens e mulheres de boa vontade em todo o mundo a assinarem esse apelo.

Agora, 70 anos depois, o arsenal nuclear é muito mais letal, e até as armas convencionais disponíveis superam as bombas atômicas lançadas pelos EUA em Hiroshima e Nagasaki em 1945. Em 1950, havia 304 ogivas nucleares no mundo (299 nos EUA), enquanto atualmente existem 13.355 ogivas (5.800 nos EUA); hoje em dia cada uma delas é muito mais destrutiva do que as dos primeiros anos dessa terrível tecnologia. Algo como o Apelo de Estocolmo é imperativo nos tempos atuais.

Apelar à proibição de armas de destruição em massa não é uma questão abstrata; é uma reivindicação que aponta diretamente para um bloco de países, liderado pelos Estados Unidos, que persiste teimosamente no uso da força para manter e ampliar seu domínio sobre o mundo. No meio desta pandemia, os EUA ameaçam aprofundar os conflitos com a China, o Irã e a Venezuela, incluindo a transferência de um grupo de transportadores navais para embargar efetivamente portos venezuelanos e a transferência de navios para o Golfo Pérsico, para desafiar o direito dos barcos iranianos em águas internacionais. Além disso, disseram que irão posicionar baterias de mísseis e radares antimísseis em um anel ao redor da China. Nenhum desses países – China, Irã e Venezuela – fez qualquer movimento de ataque contra os Estados Unidos; foram estes que impuseram um conflito. Se um apelo deve ser redigido agora, não pode ser feito de maneira anêmica e universal. Qualquer apelo à paz em nosso tempo deve ser especificamente um apelo contra a guerra imperialista que emana sobretudo de Washington.


Paul Rebeyrolle (France), Journée des intellectuels pour le Viet-Nam [Jornada de intelectuais pelo Vietnã], 1968 / Reprodução

Nossa avaliação da imposição de um estado de guerra pelos EUA baseia-se em quatro pontos:

- Os Estados Unidos já possuem o maior arsenal militar e a maior pegada militar do mundo. Segundo os dados mais recentes, o governo dos EUA gastou pelo menos 732 bilhões de dólares em 2019 em suas forças armadas; dizemos “pelo menos” porque há utilização de fundos secretos para setores da inteligência que não são publicizados. De 2018 a 2019, os Estados Unidos aumentaram seu orçamento militar em 5,3%, quantia igual ao orçamento militar total da Alemanha. Quase 40% dos gastos militares globais são feitos pelos EUA, que têm mais de 500 bases militares espalhadas pelos países do planeta. A Marinha estadunidense tem 20 dos 44 porta-aviões ativos do mundo, enquanto outros aliados têm 21 deles; isso significa que os EUA e aliados têm 41 dos 44 porta-aviões (a China tem dois e a Rússia, um). Não há dúvida sobre a esmagadora superioridade da força militar estadunidense.

- Os Estados Unidos estão usando toda a sua capacidade de expandir sua dominação nuclear e convencional para o espaço e para a guerra cibernética com seu Comando Espacial (restabelecido em 2019) e Comando Cibernético (criado em 2009). Os Estados Unidos desenvolveram um míssil balístico interceptador (SM-3) que foi testado no espaço e está experimentando armas sofisticadas como as de feixe de partículas, armamento baseado em plasma e bombardeio cinético. Em 2017, Trump anunciou o compromisso de seu governo com essas novas tecnologias bélicas. O governo dos EUA gastará pelo menos 481 bilhões de dólares até 2024 para desenvolver novos sistemas avançados de armas, incluindo veículos autônomos, contra-drones, armas cibernéticas e robótica. O exército estadunidense já testou sua Arma Hipersônica Avançada, que pode viajar no patamar Mach 5 (aproximadamente 3.800 milhas por hora, cinco vezes a velocidade do som), para que possa chegar a qualquer lugar da Terra em uma hora; essa arma faz parte do programa Convencional Global de Ataque das Forças Armadas dos EUA.


Hamed Ewais (Egypt), Al Zaim w Ta’mim Al Canal (Nasser e a nacionalização do Canal), 1957 / Reprodução

- O complexo militar dos EUA avançou seu programa de guerra híbrida. Este programa inclui uma série de técnicas para minar governos e projetos políticos, incluindo a mobilização do poder estadunidense sobre instituições internacionais (como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e o serviço de informação SWIFT) para impedir que os governos administram atividades econômicas básicas. Também se utilizam do poder diplomático para isolar governos, aplicam sanções para impedir que empresas privadas façam negócios com determinados países, além de realizarem guerras de informações para construir a imagem de certos governos e forças políticas como criminosas ou terroristas e assim por diante. Este poderoso complexo de instrumentos é capaz – à luz do dia – de desestabilizar governos e justificar mudanças de regime.


Asela Pérez (Cuba), El Futuro es la Paz/O futuro é a paz XI Festival Mundial da Juventude e dos Estudantes, Havana, Cuba, 1978 / Reprodução

- O governo dos EUA, juntamente com seus parceiros da OTAN e fabricantes de armas dos EUA e da Europa, continuam inundando o mundo com as armas mais letais. Os cinco principais exportadores do ramo (Lockheed Martin, Boeing, Northrop Grumman, Raytheon e General Dynamics) estão sediados nos Estados Unidos. Somente essas cinco empresas representaram 35% das 100 principais vendas de armas do mundo em 2018 (os números mais recentes); o total de vendas de armas nos EUA representa 59% de todas as vendas naquele ano. Isso significou um aumento de 7,2% em relação às vendas nos EUA em 2017. Essas armas são vendidas para países que deveriam gastar seu precioso excedente em educação, saúde e alimentação. Por exemplo, no oeste da Ásia e no norte da África, a maior ameaça para o povo não é apenas o terrorista em seu Toyota Hilux, mas também o traficante de armas em um quarto de hotel com ar-condicionado.

O mundo em que o Apelo de Estocolmo foi escrito é marcadamente diferente do mundo em que vivemos hoje. É necessário um novo apelo. Nós o desenvolvemos enquanto discutíamos em Bouficha, Tunísia; o chamaremos de Apelo de Bouficha.

Nós, os povos do mundo:

1) Nos opomos à defesa do imperialismo estadunidense que procura impor guerras perigosas em um planeta já frágil.

2) Nos opomos à inundação do mundo com armas de todos os tipos, que inflamam conflitos e muitas vezes levam os processos políticos a guerras sem fim.

3) Nos opomos ao uso do poder militar para impedir o desenvolvimento social dos povos do mundo; defendemos o direito dos países de construir sua soberania e dignidade.


Ahmed Mofeed (Palestine), Mahdi Amel, 2020 / Instituto Tricontinental

Em 18 de maio de 1987, Hassan Hamdan (também conhecido como Mahdi Amel) foi assassinado nas ruas de Beirute. Mahdi Amel continua sendo um dos pensadores marxistas mais importantes do mundo árabe. No que parece ser um período decididamente sombrio, uma de suas frases mais importantes – e mais poéticas – brilha para nós:

Você não está derrotado,

Contanto que esteja resistindo.

Em 11 de maio de 2020, Évelyn Hamdan, parceira de Mahdi Amel e uma ávida leitora desta carta semanal, deixou o mundo. Este boletim é dedicado à companheira Évelyn e a seus filhos.

Cordialmente, Vijay.

Edição: Camila Maciel