entrevista

Por que a OMS suspendeu esta semana os testes sobre uso de cloroquina para covid-19?

O médico Joelson Santos destaca falta de eficácia e risco de morte como principais razões para a OMS suspender pesquisa

Belém (PA) | Brasil de Fato |

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Jair Bolsonaro insiste na campanha pelo uso da cloroquina, mesmo sem evidências científicas - Reprodução

A Organização Mundial de Saúde (OMS) suspendeu na última segunda-feira (25) todas as pesquisas coordenadas pelo órgão sobre a hidroxicloroquina em 100 países do mundo. Um estudo com 96 mil pacientes não demonstrou eficácia contra a covid-19. Além disso, acredita-se em maior risco de morte. No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) liberou o uso para todas as pessoas com suspeitas da doença.

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Joelson Santos é médico e atua na Vila de Peladas, zona rural de Caruaru, um município localizado no agreste de Pernambuco. Na comunidade em que vive, moram 13.500 pessoas. Ele conversou com o Brasil de Fato sobre o tema e apontou que a hidroxicloroquina está sendo vista como uma "tábua de salvação" do governo Bolsonaro, a fim de oferecer para a população algo para que elas se sintam "cuidadas", mas, na verdade, o efeito é justamente o contrário.

"A hidroxicloroquina e a cloroquina são utilizadas, principalmente, em ambientes hospitalares e ainda estavam se fazendo estudos, porque ela precisa de um monitoramento cardíaco, principalmente por conta dos efeitos colaterais", diz ele.

A OMS suspendeu temporariamente o uso da droga até que a segurança dela seja reavaliada, isso porque estudos apontam que, além de não ter eficácia comprovada, ela aumenta a taxa de mortalidade. 

A organização já tinha se posicionado contra o uso amplo da medicação para tratamento da covid-19. Mesmo assim, o Brasil publicou decreto orientando que pacientes com quadros leves podem usar o medicamento. Os diretores da OMS, por sua vez, reforçaram que o medicamento deveria ser usada, apenas, dentro de ensaios clínicos, ou seja, em pesquisas médicas.

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Em entrevista à Globo News, o ex-ministro da Saúde Nelson Teich reforçou que era contra a administração indiscriminada da cloroquina e afirmou que considerava um erro "gastar dinheiro público sem ter comprovação científica de que a medicação, realmente, serve para o tratamento da doença". 

Em entrevista ao Brasil de Fato, o médico Joelson Santos fala sobre o uso da medicação e os impactos que esse uso desenfreado podem ocasionar para o Sistema Único de Saúde (SUS), sobretudo, para as populações vulneráveis que têm restrições de acesso ao serviço de saúde.

Brasil de Fato: Como o uso indiscriminado da cloroquina e da hidroxicloroquina podem afetar pacientes que fazem uso dessas drogas para tratamento da covid-19? E como isso pode impactar no Sistema Único de Saúde (SUS)?

Joelson Santos: A hidroxicloroquina e a cloroquina estão sendo vistas como a tábua da salvação do governo. Nesse caso, a primeira coisa é que ele tenta trazer alguma "arma" para as pessoas sentirem que estão sendo cuidadas, mas, na verdade, o impacto dela é muito grande, porque essa liberação de uso, principalmente, nas comunidades rurais é danoso.

Essas drogas são utilizadas, principalmente, em ambientes hospitalares e ainda estavam na fase de estudos, porque ela precisa de um monitoramento cardíaco, principalmente por conta dos efeitos colaterais, como a arritmia cardíaca. 

Imagina nas zonas rurais, onde já é difícil o acesso, onde a distância até os centros especializados é grande e também até mesmo às UPAs [Unidade de Pronto Atendimento]. Além disso, ainda estamos com o sistema sobrecarregado. 

Então, as populações rurais vão ser, na verdade, muito afetadas se a gente não tomar medidas de protegê-las, porque já temos a questão da informação. A informação para as zonas rurais e para o campo chegam de forma tardia. As fake news, às vezes, têm mais força na zona rural até porque, infelizmente, o índice de analfabetimo é muito alto na zona rural.

Juntando a falta de informação com o fato de as pessoas acharem que a cloroquina pode ser tomada, isso vai trazer um impacto muito grande e ainda vai aumentar a sobrecarga no sistema de saúde, por conta dos efeitos adversos. 

Muitos países que iniciaram a cloroquina como tratamento já a proibiram, como a Suécia e algumas cidades dos Estados Unidos. Aqui, no Brasil, a nossa população do campo pode ser mais afetada por esse distanciamento do serviço e pelo acesso, que é mais difícil ainda. 

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Como está sendo esse combate à covid-19 no campo?

Primeiro é bom lembrar que, na zona rural, a gente tem uma redução de profissionais e de qualidade de serviço na atenção primária, principalmente nas menores cidades.

Falando em específico: a medicina é historicamente "elitizada" no Brasil, há uma migração de profissionais para os grandes centros. Por isso, a gente vê a concentração médica nos grandes polos trabalhando em três, quatro empregos. 

Agora, como a pandemia está indo em direção à periferia e também ao campo, a população camponesa passa a ser muito afetada também pela falta de profissionais e equipes na atenção primária. Ou seja, muitos profissionais estão sendo deslocados da atenção para "dar" plantão. E tem ainda o problema dos profissionais, que estão se negando a fazer alguns tipos de atendimentos.

Além disso, a desigualdade e a concentração de terras que a gente tem no campo se reflete em uma grande quantidade de pessoas pobres. Pobreza essa que é muito grande por conta da concentração de terras e da exploração. 

Então, temos tomado algumas medidas: eu trabalho na zona rural e uma das primeiras medidas que implantei aqui foi informar as pessoas, criar um meio de comunicação para dialogar com a população. A partir do momento em que a população passa a ter acesso a algumas informações, eles passam a questionar, porque como eu disse, chega muito fake news e a população fica desprotegida. 

Aqui, em Caruaru, é um pouco menos, porque há um grande investimento no SUS, mas em outras regiões, conversando com outras pessoas, inclusive em áreas de assentamentos, temos conhecimento de que têm locais em que havia 30 pessoas com febre e a secretaria de saúde passou quase duas semanas para tomar as primeiras medidas. Em um momento de pandemia, é preciso medidas rápidas. Mas no campo demoram mais essas medidas. Há uma desigualdade para com o campo. 

Além disso, tem a questão das vacinas. Há muitas reclamações de algumas áreas, porque estão deixando para vacinar as áreas rurais por último. Então, é essa necropolítica que escolhe quem recebe o tratamento primeiro. 

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Os povos que estão em organização são prejudicados pelo preconceito dos próprios profissionais, da própria gestão. Por isso que é importante mantermos o povo alerta, organizado, ciente dos seus direitos, do que o SUS deve fazer, do que é o SUS. 

É pela equidade, pelo fim da desigualdade com o campo, que é crônica e histórica e está se vislumbrando mais com a pandemia. A população sofre, porque as estruturas não foram pensadas para a zona rural, elas são estruturas da zona rural, mas pensada para o urbano, profissionais que são formados com a visão de atendimento urbano. Então, a gente tem toda essa série de situações. 

Como é realizada a orientação de prevenção e combate aos sintomas leves no campo uma vez que a população, de certa forma, já vive em isolamento?

O primeiro tratamento que estamos fazendo, principalmente, entre a ala mais popular é garantir comida para as pessoas. Essa é a primeira coisa. Ou seja, é a soberania alimentar, a produção de alimentos saudáveis, o conhecimento dos alimentos e a distribuição da terra. São medidas urgentes para as pessoas trabalharem, plantarem, principalmente, plantações de curto período para poder se alimentar. 

A alimentação saudável e balanceada é uma coisa que a gente tem frisado muito. Plantas e medidas medicinais que a gente tem. Por exemplo, o consumo de alho, que é um antiviral bem histórico, o consumo de limão, ou seja, a gente está tratando de entender alguns alimentos que podem nos fortalecer frente a isso, porque não tem um tratamento específico, mas a gente pode tratar, diminuir os impactos da doença e quando ela chega, a gente vai diminuir os sintomas.

Tem ainda o eucalipto para febre, a gente vai ter o consumo de líquidos, de vitamina C, que está na goiaba, que está na acerola. Então, tratando de trazer um pouco desse conhecimento e valorizando as potencialidade que têm no campo. Então, as práticas populares estão mais presentes no campo, justamente, por essa ausência dos serviços tradicionais que não chegavam. 

Temos ainda a formação de algumas barreiras para ter esse controle de quem vem da cidade. Os primeiros casos que têm aparecido na zona rural são pessoas que têm mais contato na cidade. 

Logo, manter esse cuidado é um desafio, porque temos que levar a produção para as feiras, mas também alertamos para os caminhões que vêm de todas as partes do Brasil e entram nas nossas áreas e fortalecemos esse espaço de diálogo com a população para ela ter acesso à informações de qualidade, porque nesse isolamento histórico do campo, eles estão isolados também de outros direitos: de educação, cultura, então, a gente está tratando de trazer tudo isso. 

Além disso, a gente tenta também trazer a arte no isolamento, porque a doença mental estava chegando antes de a pandemia. São medidas que a gente tem feito, identificar os mais vulneráveis e tratar de incentivar a solidariedade, a arrecadação de alimentos. E no campo, às vezes, a gente vê mais a solidariedade nata das pessoas, são algumas potencialidades que a gente precisa valorizar junto às comunidades.

Edição: Camila Maciel