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Montes Claros: pessoas em situação de rua são removidas e denunciam truculência

Ação foi comandada pela prefeitura. Relatos criticam forma da abordagem e comissão se compromete a apurar denúncias

Brasil de Fato | Montes Claros (MG) |
O despreparo na abordagem, segundo denúncias, refletem a ausência de diálogo que perdura na relação do poder público com essa população - Divulgação

As ações de distanciamento social são preconizadas pelas autoridades em saúde em todo o mundo, em especial pela Organização Mundial de Saúde, como a única maneira de conter a alta transmissão do novo coronavírus. O Brasil ocupa o humilhante segundo lugar no ranking mundial de contaminação. Em número de mortes diárias, o país ocupou a primeira posição no mundo no dia 26, com 807 vidas perdidas.

Em meio à guerra sanitária, estados e municípios brasileiros vêm buscando se preparar para lidar com esse inimigo e as ações têm sido construídas de modo independente, considerando as especificidades de cada município, região e estado desse país continental.

Em Montes Claros, no Norte de Minas, a prefeitura adotou medidas importantes de isolamento social que retardaram o contato da população com o coronavírus. Mas um fato recente chamou a atenção das entidades da sociedade civil organizada, movimentos populares e pastorais sociais: a implementação do Plano Municipal de Contingência Emergencial Intersetorial às Pessoas em Situação de Rua. Um programa que prevê ações multisetoriais, envolvendo diversas secretarias municipais, conforme Decreto Municipal número 4035, de 30 de abril de 2020.

Dentre as medidas previstas no Plano Municipal está a articulação, por parte da Secretaria de Municipal de Desenvolvimento Social, com entidades assistenciais para viabilizar a abertura de suas instalações para o acolhimento da pessoa em situação de rua com suspeita ou confirmação de contaminação por covid-19. As entidades deverão oferecer três refeições diárias, de segunda a sexta feira, com possibilidade de o serviço ser estendido aos fins de semana. O decreto ainda estabelece a abertura do Ginásio Ana Lopes para o isolamento social da pessoa em situação de rua com suspeita ou confirmação de contaminação pelo coronavírus.

À Secretaria Municipal de Saúde foi estabelecida a prioridade de vacinação contra a influenza da população em situação de rua e dos profissionais que estiverem atuando nos equipamentos públicos que atendam a esse público. A disponibilização de kits de higiene para as pessoas em situação de rua e para os servidores do Abrigo Institucional, da Abordagem Social e do Centro Pop também está estabelecida no decreto, enquanto o Programa Consultório na Rua deverá intensificar a identificação e o cuidado à pessoa em situação de rua.

Para a Secretaria Municipal de Serviços Urbanos foi estabelecido no Decreto a implementação da reforma e manutenção dos banheiros públicos localizados nas Praças Dr. Carlos Versiani e Coronel Ribeiro, com disponibilização aos usuários de insumos para higienização, bem como providenciar profissional paramentado para a realização da limpeza diária, sete dias por semana.

Críticas

Tudo muito justo no papel. No papel, porque a prática é muito diferente, como denunciam pessoas em situação de rua que foram abordadas e removidas por agentes públicos, em especial da Guarda Municipal, de locais como a Praça da Matriz, Mercado Municipal e outros pontos na região central da cidade. O despreparo na abordagem, a truculência empregada na remoção refletem, segundo essas pessoas, a ausência de diálogo que perdura na relação do poder público com essa população.

Vivendo em situação de rua há muitos anos e pai de cinco filhos, W. que não quer se identificar, sobrevive da reciclagem de material e conta que estava numa barraca de lona próxima às Castanheiras, quando foi abordado pela Guarda Municipal. “O fato da gente ser morador de rua eles acham que a gente não tem família. Que a gente está na rua porque quer, muitos estão na rua por conta das drogas. Eles falaram com a gente do Centro Pop, falaram que a era para gente ir pra lá, tomar um banho, se alimentar. Chegamos lá e não tinha nada disso, não tinha nem água. O abrigo, lá na Vila Oliveira,  tá pior do que ficar na rua. As pessoas estão pulando o muro, comprando droga lá perto, e usando lá dentro. O prefeito tem que entender que a gente merece uma oportunidade e chance. Por que ninguém dá para gente uma oportunidade de emprego? Não chegam perto de você, não te dão uma máscara? Chegaram aqui na maior brutalidade,  da forma deles, derrubando as barracas, jogando as coisas fora”, descreve.

Outro relato de desrespeito é feito por uma mulher que também não quis se identificar, moradora da Praça da Matriz. “Eles chegaram na ignorância, não esperaram a gente tirar as coisas da gente. Chegaram com a polícia, a guarda municipal e trataram a gente como um cachorro. Não fui para o abrigo porque lá é o maior ponto de droga. O Consultório na rua só vem aqui num ano e no outro, se depender deles aqui a gente morre”.

A publicação do Decreto Municipal sem uma escuta atenta daqueles que já atuam junto às pessoas em situação em rua acaba por impor ações coibitivas e homogêneas para uma população que é naturalmente heterogênea. “Não é possível que a lógica higienista ganhe legitimidade em tempos de pandemia. A covid-19 não pode justificar a prática de higienização social que estamos assistindo”, ressalta Sônia Oliveira, coordenadora das Pastorais Sociais e membro do Comitê Municipal de População em Situação de Rua.

Os relatos apontam que agentes da Guarda Municipal chutam a comida, tiram os documentos, as roupas, as cobertas. As denúncias chegaram até a presidente da Comissão de Direitos Humanos, deputada Leninha Souza (PT). A parlamentar destaca que em fevereiro, antes mesmo da pandemia, a Comissão apresentou uma proposição de alteração à Lei 18.315, de 2009, que estabelece as diretrizes para a formulação da Política Estadual Habitacional de Interesse Social. A proposição, segundo o PL 5.475/18, garante que moradores em situação de rua em Minas Gerais terão prioridade nos programas de moradia popular do estado. “Vamos acolher, no âmbito da Comissão de Direitos Humanos, as denúncias. É preciso que consigamos enxergar as pessoas em situação de rua como parte indissociável da cidade. Reconhecê-las como cidadãs e cidadãos, buscar implementar políticas públicas de assistência, acolhimento e, sobretudo, geração de trabalho e renda de modo que elas sejam capazes de autogestão”, afirma a deputada.