ENCONTROS VIRTUAIS

Como as famílias brasileiras vêm praticando a fé em meio ao isolamento social?

Para membros de diferentes religiões, a espiritualidade vai além dos cultos presenciais pregados por grandes igrejas

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Com a quarentena, os encontros, cultos, e louvores da Comunidade Cristã Reformada, liderada pelo pastor Ariovaldo, passaram a serem feitos virtualmente - Arquivo pessoal

Em meio ao isolamento social e a disparada nas mortes pela covid-19 no país, famílias brasileiras vem mantendo encontros virtuais e organizando espaços de reza em suas casas para a prática da fé.

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A exceção dessa corrente está em grandes denominações neopentecostais, onde líderes se recusam a fechar templos e orientam seus fiéis a não lerem notícias sobre a pandemia.

É o caso do pastor Silas Malafaia, que só suspendeu os cultos da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, no Rio de Janeiro, após uma decisão judicial, e de Valdemiro Santiago, que além de continuar recebendo cerca de 3.000 pessoas na Igreja Mundial do Poder de Deus, em São Paulo, vem cobrando dos fiéis R$ 1 mil por  “sementes de feijão milagrosas”, com o suposto poder de curar a covid-19. 

A pressão desses líderes religiosos e midiáticos tem amparo no Governo Federal. Desde o fim de março, um decreto editado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) determina que igrejas e templos religiosos são enquadrados como serviços essenciais, liberando suas atividades.

Mas entre as diferentes crenças e religiões escutadas pela reportagem do Brasil de Fato, a interpretação foi a mesma: a união afetiva e espiritual entre famílias e comunidades transcende a necessidade do encontro físico e em grupo nos rituais, cultos e celebrações. 

Encontros virtuais e ações solidárias

A Comunidade Cristã Reformada, liderada pelo pastor Ariovaldo Ramos, em São Paulo, faz um contraponto à Bancada Evangélica e seus líderes midiáticos, que segundo o Ramos, são movidos por interesses escusos e sem respeito à Constituição de 1988. Com a pandemia, o grupo vem se mobilizado virtualmente por conta do isolamento social. 

“É claro que os encontros presenciais são muito mais gostosos, porque a gente conversa muito mais, tem a questão do abraço, do estar junto, que faz muita falta. Mas não por estar em um local onde está a presença de Deus. Um lugar sagrado para mim são todos os lugares a partir do momento que eu queira estar falando com ele”, relata Rosana Cyrineu, que participa dos  grupos de estudo da bíblia,  dos cultos e louvores online organizados pela Comunidade Cristã Reformada.

Além dos encontros virtuais, Rosana é uma das voluntárias das ações solidárias organizadas pelo grupo nas periferias da capital paulista, que para ela, em meio às condições precárias de alimentação e renda das famílias, são tão fundamentais como o trabalho dos profissionais da saúde.

“Você realmente tem que estar envolvido com os problemas que estão acontecendo. Eu estava com umas pessoas agora descarregando um caminhão com 200 cestas básicas. Alguém tem que ir e levar, com álcool gel, com máscara, mas  tem gente passando fome, tem gente realmente sem ter nada. Não são todas as famílias que estão conseguindo os 600 reais. Então, não dá para levar o povo para um templo e dizer ‘não porque deus está aqui, vocês tem que estar aqui’, isso é uma loucura”, afirma Cyrineu, que aponta que os grandes líderes midiáticos buscam ter "controle sobre as pessoas", a partir de uma relação de poder. 


O engenheiro agrônomo Kleber Sabino explica que na antroposofia o "arco íris é o maior símbolo de proteção que uma criança pode desenhar" / Arquivo pessoal

Antroposofia e as crianças

Kleber Sabino é de Fortaleza, no Ceará. A partir da mãe, que é católica e formada em teologia, encontrou o espiritismo. Mas somente após o nascimento da filha, hoje com 5 anos, surgiu a relação com a antroposofia. 

Durante o isolamento social, Sabino vem cultuando momentos diários com a corrente espiritual, que vive e festeja as épocas do ano junto com as crianças. Para isso, organizou em sua casa, o “cantinho de época”, que é abastecido regularmente com pedras, plantas, e outros símbolos - como desenhos de lousa e pinturas de proteção - que possam trazer um “movimento de luz e esperança” dentro da família. 

“A quarentena convidou a gente a ficar em casa, por uma necessidade externa, e que trouxe a gente a ficar em um momento de recolhimento. E aí depois ficou muito esse questionamento: recolhimento para que? Só para se proteger? Daí esse movimento de que as pessoas pudessem visitar o que está acontecendo dentro do seu lar”, explica o engenheiro agrônomo que leciona em uma escola Waldorf, na capital do Ceará. 

Foi a partir da rotina espiritual inspirada no espírito santo e nos desenhos infantis da filha, que Sabino buscou expandir a experiência que vive em sua casa para outros membros da família - mesmo não pertencentes à mesma crença religiosa.  

“Muitos tinham rito de ir à missa, ir ao centro espírita, ir nos encontros da antroposofia, ao candomblé. Cada um tinha seu rito, muitos inclusive sem ritos estavam um pouco distantes, então serviu também como um momento para cultivar essa religiosidade. Se você for ver na essência, todos falam a mesma coisa de forma diferente, é isso que está vindo muito claro, estão sendo quebradas barreiras inclusive dentro da nossa família”, aponta Kleber.


Sacerdotisa Íyá Leke Adriana de Iyemojá tem enviado fotos de celebrações antigas para "aguçar as memórias" de seus filhos / Arquivo pessoal

O cuidado do Candomblé

Para Íyá Leke Adriana de Iyemojá - ou Adriana Mattos Rodrigues - a fé não é algo que se define e nem pode se moldar. A sacerdotisa do Candomblé de Ketu é formada em Arquivologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde se dedica ao patrimônio religioso Afro Brasileiro e aos acervos pessoais de pesquisadores da religião Afro Brasileira.

Com a chegada da covid-19 ao país, Iyá Leke suspendeu as atividades e as festas públicas em seu terreiro situado no bairro do Campeche, no sul da Ilha de Florianópolis, em Santa Catarina.  A interrupção do calendário, porém, não impediu que ela intensificasse as rezas, as súplicas e as oferendas aos orixás, segundo ela para “manter a todos fortalecidos”.

“A nossa cosmovisão está entrelaçada em afetos. As pessoas vêm ao terreiro por diversas vontades e anseios, por alegria, por felicidade, para resolver os seus problemas, e nesse momento, a ausência de estar nesse espaço, ela causa sim um dano psíquico nas pessoas, porque a gente está acostumado a ele, mas esse modelo social ele perpassa os muros do terreiro”, explica Iyá Leke.

Durante o isolamento social, Iyá Leke tem utilizado meios eletrônicos e mídias sociais - como os grupos do whatsapp - para  “aguçar as memórias” de seus filhos, por meio do envio de cânticos, poesias, fotos de celebrações passadas, além de vídeos do bosque que cultiva e celebra na parte de trás do terreno de sua casa - onde também fica o terreiro. 

Estabelecer o afeto e o cuidado com as pessoas, sabendo que isso faz parte da natureza humana, na opinião de Iyá Leke, é a base do Candomblé e a principal lição que será preciso estabelecer em um cenário pós-pandemia, mesmo em um país, que segundo ela passa por um “desequilíbrio político” e por uma “série de violências”.

‘‘Não é só o medo de se contaminar, não é só o medo de perder esse outro, é o medo desse amanhã, que é um movimento extremamente perverso. E que bom que não seremos mais os mesmos. Não é interessante a humanidade agir da maneira que está agindo", define a mãe de santo.

Edição: José Eduardo Bernardes