Coluna

Uma esquerda com instinto de poder

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bolsonaro ato brasilia
A luta para derrotar o golpe que se prepara é indivisível da luta pela derrubada de Bolsonaro. - Evaristo Sa/AFP
O conflito é irredutível. Derrubar Bolsonaro é o desafio de nossa geração

Na verdade, a típica revolução pós-Outubro do Breve Século XX, deixan­do de lado algumas explosões localizadas, seria ou iniciada por um golpe (quase sempre militar), capturando a capital, ou o resultado final de uma luta armada extensa e em grande parte rural. Como os oficiais subaltemos – muito mais raramente suboficiais – de simpatias radicais ou esquerdistas eram comuns em países pobres e atrasados, onde a vida militar oferecia perspecti­vas de uma carreira atraente para jovens capazes e educados de famílias sem ligações e riqueza, essas iniciativas costumavam ser encontradas em países como o Egito (a revolução dos Oficiais Livres de 1952) e outros do Oriente Médio (...) Por outro lado, para surpresa da maioria dos observadores, em 1974 um clássico putsch militar de jovens oficiais desiludidos e radicalizados pelas longas guerras coloniais de retaguarda derrubou o mais velho regime direitista então operando no mundo: a Revolução dos Cravos em Portugal . (grifo nosso)  
 

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Eric Hobsbawm, em Era dos extremos: o breve século XX 

O tempo da política é sempre, em alguma medida, o tempo breve do presente, das decisões que são iminentes, que não podem ser adiadas. A pandemia, o impacto de uma catástrofe sanitária, equivale à experiência de uma guerra. E governos que são derrotados na guerra demonstraram-se, historicamente, condenados. 

A possibilidade de uma crise final do governo Bolsonaro parece incontornável, nos próximos meses, quando o efeito devastador de um número apocalíptico de mortes se combinar com a maior depressão econômica da história. Será que ela será suficiente para, além de dissociar a maioria da classe média do governo, produzir um racha nas Forças Armadas, como no modelo sugerido por Hobsbawm? 

Uma das chaves da conjuntura é saber se a escalada golpista de Bolsonaro tem ou não sustentação militar incondicional. Porque a luta para deter o perigo urgente de um golpe é inseparável da luta pela derrubada do fascista na presidência. São dois tempos de uma luta ininterrupta, que se radicalizará em permanência, e vai exigir uma esquerda com instinto de poder.

O tema é urgente, quando observamos que não há sequer uma fração minoritária da burguesia brasileira disposta a lutar para derrubar Bolsonaro. Há contrariedade, há setores que se deslocaram para a oposição, mas nenhum disposto a lutar, por enquanto, para deslocar o governo Bolsonaro. Cabe a esquerda nestas condições ainda adversas assumir um papel central na luta para derrotar os neofascistas. Mas, enquanto luta pela mais ampla unidade possível contra Bolsonaro, a esquerda não deve fazer harakiri para tranquilizar os aliados da classe média e das dissidências burguesas. Não pode renunciar à defesa estratégica dos interesses dos trabalhadores. A luta para derrotar o golpe que se prepara é indivisível da luta pela derrubada de Bolsonaro. Esse desafio é um processo que precisa incendiar a imaginação das massas e, de forma ininterrupta, abrir um caminho para a luta pelo poder.

Quando uma classe dominante é infértil e, portanto, parasitária, ela renuncia à perspectiva de um projeto nacional. A recolonização do Brasil é o projeto de Paulo Guedes. Não encontrou ainda uma resistência burguesa expressiva. Trata-se de um projeto estéril de futuro. Bolsonaro governa para o dia de amanhã, mas não pode confessá-lo. Mesmo com o impacto da pandemia, mantém o apoio da classe dominante para o ajuste fiscal do Estado, que aposta em uma tutela reguladora dos generais.

O paradoxo é que a inércia é a paralisia do tempo, mas a crise é a sua aceleração. Uma classe que é, historicamente, improdutiva, mas que permanece no poder, exige de seus partidos a ilusão de um projeto que não pode ser senão uma nostalgia de passado, ou seja, uma caricatura do que já foi, ou uma romantização do que deveria ter sido. Ela vive a urgência da crise, a vertigem acelerada da mudança, e levanta os olhos para o futuro, com uma ansiedade de passado, isto é, de estabilização e ordem. Os seus partidos são prisioneiros desta angústia e vivem a armadilha do conflito entre o necessário e o impossível. Por isso, a impotência diante da ameaça golpista.

Ao contrário, as classes oprimidas descobrem a política como o terreno de sua libertação, e é diante da crise que reúnem forças para abrir o caminho para a mudança de baixo para cima. É somente nessas circunstâncias que as amplas massas esmagadas sob o peso da luta pela sobrevivência buscam de forma sustentada, na sua unidade e mobilização, uma saída coletiva para a crise da sociedade.

Elas também vivem o descompasso entre existência e consciência de forma aguda e exacerbada. Só existem como atores políticos quando se libertam dos fantasmas do passado que governam as suas consciências. Mas o caminho de sua expressão política independente é muito mais difícil. Não possuem a sabedoria que o exercício do poder trouxe através de gerações às classes proprietárias: a relação entre os seus destinos privados e os dramas históricos em que estão envolvidas só se revela em situações excepcionais. Acontece que estamos entrando em uma situação excepcional. Dezenas de milhões estão retirando conclusões nos últimos dois meses.

Esse processo, necessariamente, lento, não possui atalhos, é o caminho de uma experiência que se constrói na luta, e através da luta. Mas a luta é imprevisível. Os seus desenlaces não aceitam prognósticos fáceis, e a consciência flutua de acordo com as sucessivas alternâncias de vitórias ou derrotas. A primazia crescente da luta não resolve, ao contrário, exacerba o paradoxo central da política: o que opõe necessidade à possibilidade. O conflito é irredutível. Derrubar Bolsonaro é o desafio de nossa geração.

Os partidos são a expressão concentrada deste conflito. Agem a partir de programas, é certo, mas esses também mudam. E um programa é uma linha ténue que une fins e meios, o presente e o futuro, uma unicidade de tempo que só existe como possibilidade, e que só tem perspectiva como instrumento de mobilização, na luta pelo poder. É nesse sentido, e somente nele, que Lenin cunhou a célebre e, também, mal interpretada frase: “fora do poder, tudo é ilusão”. Porque é diante da crise que a política assume as suas “formas heroicas”. 

As classes em luta se preparam para um inadiável desenlace que as convoca para o combate frontal. Teriam-no evitado, se fosse possível. As classes proprietárias não mais são capazes de exigir os sacrifícios que antes apareciam perante as outras classes como toleráveis. O seu projeto não tem mais legitimidade, porque o descompasso entre a  promessa de futuro e a ruína do presente, colocou o Estado, sob o seu controle, em ruptura com a sociedade. 

Já os trabalhadores, e as outras camadas populares, tendem á emancipação do seu domínio hegemônico, e assim, deslocam as relações de força, o que, politicamente, corresponde à dupla compreensão de que o possível, para a burguesia, é desnecessário, e que o que é necessário, para as massas, é inadiável. A hora do Fora Bolsonaro chegou.

Edição: Rodrigo Chagas