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Engenheiros do Caos desmascara estratégia desinformativa de Bolsonaro

O escritor franco-italiano Giuliano Da Empoli, autor do livro Engenheiros do Caos, concedeu entrevista a Manuela D´Ávila

Brasil de Fato | Santa Maria (RS) |
Em pauta as redes de fake news, a parcialidade dos algoritmos e as técnicas discursivas usadas pela extrema direita para criar o caos nas redes sociais e no mundo da política - Reprodução Vermelho

Em entrevista a Manuela D´Ávila, o escritor franco-italiano Giuliano Da Empoli, autor do livro Engenheiros do Caos (Ed. Vestígio), discutiu sobre as redes de fake news, a parcialidade dos algoritmos e as técnicas discursivas usadas pela extrema direita para criar o caos nas redes sociais e no mundo da política.

Ao chamar estes estrategistas e políticos de “engenheiros”, Da Empoli já revela que todo o caos em que mergulham sociedades inteiras nada mais é que construção calculada e sistematicamente alimentada. Mas a simples condenação moral deste mecanismo político não é suficiente, na opinião do cientista político, que sugere formas de enfrentamento à desinformação e ao populismo de lideranças como Jair Bolsonaro, a partir da compreensão do mecanismo, mesmo não tendo escrito sobre a realidade brasileira.

Segundo ele, para se tratar as fake news do ponto de vista político, é necessário entender qual a lógica interna que motiva o sucesso de estratégias baseadas nelas. “Essa lógica é sempre baseada numa verdade emotiva, no sentido de que os fatos podem ser falsos, mas somam com a experiência das pessoas que são de alguma forma tratadas representadas nessas fake news. São muito eficazes, porque mesmo que sejam falsas factualmente, são verdadeiras emotivamente”, explica.

Não é ignorância, é cálculo

Ele relata um exemplo interessante que sintetiza o efeito dessa estratégia aparentemente irracional e ilógica de Donald Trump, presidente dos EUA. Algumas semanas antes da explosão da pandemia, ele fez uma convenção no Colorado onde falou que estava construindo o muro na fronteira entre aquele estado (do centro dos EUA) e o México, para não haver problemas com imigrantes. Como não há uma fronteira entre o Colorado e o México, opositores e jornalistas se entusiasmaram em dizer que o presidente nem sequer sabia do que estava falando.

Os mesmos opositores e comentaristas se surpreendem com os efeitos disso, tão longe do resultado esperado por eles que tentaram desqualificar o presidente como ignorante. Na realidade, a estratégia fez a população voltar a comentar sobre o tema do muro, na medida em que opositores ficaram corrigindo-o sobre o assunto. Serviu, mais uma vez, para mostrar que Trump é um outsider (marginal) da política, diferente do establishment de políticos comuns. “Nem desses políticos que parecem o professorzinho que corrige erros das pessoas comuns. O que ele  faz é a grande promessa de todos os líderes nacional-populistas, que não é uma promessa de conteúdo de política econômica ou social, mas a humilhação do establishment, não apenas político, mas também cultural, intelectual, acadêmico, etc”, analisa ele, levando em conta a repulsa que o cidadão comum e sofrido tem dos especialistas.

O terceiro objetivo é uma prova do voluntarismo de Trump, no sentido de que sua vontade é uma liderança tão forte que dobra a realidade. “Com isso, ele está colocando em cheque toda a realidade política, bem conhecida na União Europeia, de que nada é possível fazer devido ao déficit público, aos tratados, ao endividamento, à finança, ao mercado, às mil regras europeias que impedem que as coisas sejam feitas. Trump é tao forte que dobra a realidade, ele vai e faz o muro onde não é possível”.

A festa do grupo de Whatsapp

Da Empoli acrescenta um elemento fundamental a esta estratégia, que é o fato das fake news criarem uma tribo, uma adesão afetiva ao discurso. Sobre um simples fato real não se pode criar uma tribo de seguidores, pois para aderir a uma fake news, de que existe uma fronteira entre o Colorado e o México, mesmo não existindo, você tem que acreditar realmente no seu líder. “Isso é independente dos fatos, a teoria dos complôs, existe a função de criar uma identidade das pessoas que seguem um líder e são fiéis a ele”.

Aqueles comentaristas sobre Trump ou Bolsonaro, focam na raiva e no medo, todos os sentimentos negativos que são aproveitados pelos slogans dessas lideranças. Porém existe um lado festivo que neutraliza estas acusações, que é encontrar-se dentro de uma comunidade que pensa, pela primeira vez, na mesma coisa que você. Essas comunidades, diz o cientista político, muitas vezes são formadas por pessoas periféricas culturalmente e socialmente, que vêm das margens, e que se encontram nesse momento, baseados sobretudo em slogans de palavras de ordem.

Neste aspecto tribal, Da Empoli observa um elemento carnavalesco e hedonístico deste fenômeno, que é muito importante, pela transgressividade e pela ruptura de tabus. “E a respeito disso, o editorialista e o colunista de um grande jornal que diz que está tudo errado, que esta não é a realidade, parece um pouco com o professorzinho da escola que interrompe um momento de divertimento de adolescentes”, compara ele, mostrando que a prática do “Fact Checker” [a checagem de fake news], tem este mesmo problema, ao simplesmente corrigir a informação de modo factual e racional.

Manuela observa este “revolta” do eleitorado em contestar o establishment “de tudo isso que taí”, como um senso de comunidade e identidade no momento em que o mundo discute muito a questão identitária. Uma comunidade dos que se sentem hostilizados pela pessoa que quer esclarecer com um certo pedantismo. “Fica a percepção, por essas pessoas, de que o erro vem da inexperiência política. O Trump e o Bolsonaro até erram, mas mostram que não são daquele ‘ambiente sujo’. Existe também um ambiente de testosterona, carregado de masculinidade, que se encaixa como uma luva no caso brasileiro”, pondera ela.

Por outro lado, diz Manuela, esses líderes da extrema direita fazem tudo isso e conseguem chegar nas pessoas certas por meio da big data (os algoritmos), que garantem o público alvo nas redes sociais.

O ódio instrumentalizado

Da Empoli diz que ser italiano não é sempre uma vantagem, a não ser para entender o populismo e estes novos fenômenos. “A Itália é a Silicon Valley [região onde ficam as grandes empresas de tecnologia da Califórnia] do populismo, porque fizemos muitas experimentos. Os pontos comuns que existem entre a Itália e o Brasil são surpreendentes”, afirma ele.

A Itália foi o lugar onde, no início dos anos noventa, uma inteira classe política desapareceu pelas operação de juízes que mobilizaram a operação “mãos limpas”, uma operação jurídico-policial anticorrupção. Ele conta que não foi apenas um partido e um movimento, mas foi a partir daquele momento que os italianos se convenceram de que a classe política em geral, em todas as tendências, fosse um elemento de corrupção, e era preciso tentar alguma coisa diferente. Tentaram outsiders como juízes, ou empreendedores como Berlusconi, e agora o Movimento 5 Estrelas, “que nesse momento está no governo da Itália, com um grupo de pessoas quase pegas por acaso”.

O grande motor da política italiana nos anos 1990 foi a raiva e o ódio contra a classe política. “Depois chegaram os que chamo de ‘engenheiros do caos’, que entenderam que hoje pode-se aproveitar da raiva de uma forma muito mais tecnológica, muito mais eficaz e muito mais targetizada [dirigida a um público alvo] do que se fazia no passado”, analisa.

Governos de likes e compartilhamentos


Os líderes nacionais denominados Engenheiros do Caos / Reprodução Vermelho

Os “engenheiros do caos”, de acordo com sua definição precisa, são aqueles que importaram na política a lógica de funcionamento das grandes plataformas de redes sociais. Plataformas que funcionam com base em um só critério: o engajamento, buscando manter o usuário na plataforma o maior tempo possível  e gerar o máximo de interação. Essas plataformas, alerta ele, antes de serem um instrumento de comunicação, são também instrumentos de coleta de informações e inteligência sobre os usuários, e tentam oferecer informação que esses usuários querem, “sabendo o que eles querem”. “Se, em algum momento, a plataforma perceber que o usuário quer um conteúdo mais agressivo, mais forte, elas sabem qual o conteúdo que gera mais engajamento, e tentam mudar os usuários para estes conteúdos e ter mais reação”, complementa.

Portanto, é esta lógica de funcionamento e este critério de engajamento que os “engenheiros do caos” aplicam na política (e governos). “Não propõem visões coerentes, não têm medo de se contradizer, dizer uma coisa num dia e dizer outra no outro dia. A única preocupação é gerar mais engajamento em cada um dos grupos de pessoas que sustentam o que eles fazem”, diz ele.

O ódio e a rejeição do establishment político unificam toda a visão e juntam uma maioria de grupos extremistas. No caso do Brexit, onde a campanha estava sendo guiada por Dominic Cumming – o principal conselheiro de Boris Johnson -, ele dizia que, para fazer uma boa campanha política, você não contrata um comunicador, mas um médico. “Você tem que poder descobrir as causas da raiva de cada um e depois explicar que a Europa é a responsável”, exemplifica. Para mostrar o efeito paradoxal desta estratégia, Da Empoli conta que, para os amantes dos animais, a Europa não protegia o suficiente, embora a Inglaterra tivesseleis melhores para tutelar os animais. Para os amantes da caça, diziam que a Europa queria extinguir a caça aos animais, e que se os ingleses queriam voltar a caçar raposas, que teriam que votar pelo Brexit. “Com isso, engajaram grupos com visões e interesses totalmente diferentes”, resumiu.

A reação é identitária

Manuela comenta este efeito lembrando a percepção do autor de que a construção de uma maioria é considerada por ele ultrapassada. “O caos é organizado a partir de um conjunto de minorias. No Brasil, um dos principais grupos de apoio a Bolsonaro era de caçadores de javali. Assim como outro grupo era de pessoas que defendia o sacrifício de animais em religiões afro”, menciona ela. Manuela no entanto, questiona se a resistência a essa nova ordem também não viria de minorias organizadas, como mulheres, negros, LGBTs, ambientalistas. Ela também indagou se existiria uma forma de regulamentação legislativa possível contra isso.

Da Empoli ver fatores positivos e negativos na possibilidade de regulação das fake news. Para ele, é preciso recusar a retórica da “exceção técnica” que as empresas que controlam essas plataformas defendem. As plataformas dizem que não se pode aplicar regras normais como aquelas das eleições, ou contra a difamação e tutela da privacidade e da reputação social, porque “nós somos um outro mundo, uma outra coisa”. “Existem regras ligadas ao funcionamento de uma democracia que respeita os direitos individuais, que podem, sim, ser aplicadas às novas plataformas, com adaptações às diferenças que elas portam. Mas é muito importante afirmar esse princípio e recusar essa retórica tecnológica. Isto eu penso que seja um fato positivo”, sugeriu.

O fato negativo, no entanto, é que ele percebe que os democratas se concentram somente nos conteúdos, e não no funcionamento do sistema, o que impossibilita o enfrentamento do problema. Ele considera o conteúdo dessas mensagens “sem esperança”, já que só se pode reagir judicialmente a mensagens mais extremas, isto é, para os casos de difamação pessoal, para os casos que seriam um crime comum.

Mas o problema vai muito além disso, na opinião dele. Não se sabe praticamente nada sobre o funcionamento desses algoritmos, no sentido de que vivemos num regime de transparência, mas não tem nada mais secreto do que o funcionamento dos algoritmos do Google, do Facebook e dessas plataformas. “No meu parecer, estamos desarmados em relação a este problema”, acredita.

A pandemia e a volta da realidade

Quando eclodiu a pandemia do coronavírus, muitos pensaram que este seria o retorno da realidade, dos especialistas, dos fatos, já que existem mortos e uma doença que é um dado objetivo. Haveria, então, a recuperação de uma realidade única, factual, contra a qual Bolsonaro, Trump e todos os outros confrontariam. Da Empoli ressalta que, por um certo lado, aconteceu este choque de realidade. Mas não voltamos a uma realidade dos fatos, porque, mais uma vez, muito rapidamente se multiplicaram as interpretações dúbias, com fatos selecionados conforme o pertencimento aos grupinhos de interesse. “Ao contrário, a realidade se fragmentou ainda mais e se polarizou ainda mais”, resume.

Com a pandemia, viu-se um comportamento mais agressivo de Trump e Bolsonaro, sempre tratando o tema como detentores de poder e como outsiders, ao mesmo tempo. São autoridade, mas também subversão. “Aquele que incita a não respeitar as regras. Aquele que diz, em relação aos governadores locais, aos que impõem as regras, para rebelarem-se contra eles”, diz o analista, acrescentando que, mais uma vez, esta postura gerou seguidores que foram às ruas em sua defesa, mesmo em meio à pandemia.

A apropriação da emoção pela esquerda

Da Empoli admite não ser capaz de prever o que virá deste cenário de caos absoluto, tanto no Brasil, quanto nos EUA. De certa forma, a fragmentação e a polarização são tão grandes que todos os resultados são possíveis, na opinião dele. Mas ele se sente desconfortável em ouvir que esse novo mundo privilegia as emoções fortes, o medo, o que seria uma vantagem daqueles que fazem argumentações pouco racionais, enquanto a esquerda faz discursos racionais e se ressente deste novo mundo. “Acredito que, se queremos fazer política em todos os tempos, precisamos ter a capacidade de gerar emoções e valorizar as identidades e os grupos, suscitando emoções profundas, e não somente elementos de racionalidade que descem do pedestal para decretar o que é a realidade”, avalia.

Para ele, estes elementos emotivos sempre fizeram parte da capacidade do fazer político. “Quem pensa que pode fazer política com slides em powerpoint, ou no qual explica o que aconteceu com a curva, ou que existem estatísticas que dizem certas coisas, segundo meu parecer, nem no passado, nem hoje, jamais foi ou será um bom líder político”.

“Permanece a exigência de mobilização das paixões, dos grupos, dos pertencimentos sentidos e profundos, sabendo certamente que não se voltará a um velho mundo”, declara. Para ele, temos que aprender, do ponto de vista técnico e, quem sabe, político, com alguns desses líderes. “Eu não falo de Bolsonaro, porque me parece demais”, brincou. “Quem se esquece deste aspecto afetivo e emocional, na política, paga sempre um preço muito alto. Temos também uma falha tecnológica que temos que recuperar para acertar a mensagem”, concluiu.

Manuela comentou que, mesmo o livro dele não ter sido escrito se debruçando sobre o caso brasileiro, “ele serve praticamente como uma bússola para se entender as razões pelas quais o Brasil mudou tão rápido e tão profundamente, provocando a pergunta de como pudemos mudar dessa maneira”. “Teu livro não tranquiliza, mas dá respostas importantes para o que acontece no Brasil”, elogia.

Veja o encontro virtual completo abaixo, com tradução de Claudia Antonini:

Edição: Portal Vermelho