Disputa Global

Artigo | Soberania e a estratégia dos EUA

A ideia de que os Estados lutam para adquirir uma noção abstrata denominada poder não é esclarecedora

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
No Império estadunidense, que se inaugura em 1945, Washington estabeleceu regras, informais, a serem obedecidas pelos governos das Províncias - Saul Loeb / AFP

Esta é a segunda parte do artigo O sistema internacional e o Império escrito por Samuel Pinheiro Guimarães, Secretário Geral do Itamaraty (2003-09) e ministro de Assuntos Estratégicos (2009-10). A primeira parte deste artigo está publicada no Brasil de Fato com o título de A hegemonia dos EUA e a ascensão da China.

 “La realidad es la unica verdad”.

J. D. Perón

“Se conheces o inimigo e te conheces, não deves temer o resultado de cem batalhas. Se te conheces mas não ao inimigo, para cada vitória sofrerás uma derrota. Se não te conheces nem ao inimigo, sucumbirás em cada batalha.”

Sun Tzu

Soberania 

    63. A soberania, no dizer de Alberto Fernandez, presidente da nação Argentina, é multidimensional. Aplica-se o conceito à Argentina, mas também ao Brasil e a todos os países periféricos.

    64. A soberania, cujo titular é o povo, é o direito de um povo organizar social, política, militar e economicamente sua sociedade e seu Estado de acordo com sua história, com seus valores, com seus objetivos, com suas aspirações, com suas experiências.

    65. O exercício efetivo, e não apenas retórico, da soberania depende do potencial do país e das vulnerabilidades de natureza política, econômica, tecnológica, militar, ideológica a que está sujeita sua sociedade.

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    66. O objetivo dos Impérios sempre foi impedir o exercício da soberania por parte de suas Províncias ou limitar sua “autonomia”.

    67. No Império, o exercício de plena soberania é exclusivo da metrópole e vedado às colônias.

    68. No Império estadunidense, que se inaugura em 1945, Washington estabeleceu regras, informais, a serem obedecidas pelos governos das Províncias, formalmente Estados nacionais, soberanos e iguais, membros das Nações Unidas, sob pena de punição e que, de fato, limitam sua soberania.   

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   69. Essas regras são flexíveis, dependendo da localização geopolítica da Província, do momento político internacional, do momento nacional e do momento político do governo da Província.

    70. Essas regras são:
    a. ter uma economia capitalista, de mercado, consagrada na legislação;
    b. ter uma economia aberta do ponto de vista comercial;
    c. ter uma economia aberta ao capital estrangeiro em qualquer área ou atividade;
    d. ter um grau mínimo de intervenção do Estado, como regulamentador e empresário;
    e. dar tratamento igual às empresas de capital local em relação às estrangeiras;
    f. não exercer controle sobre os meios de comunicação de massa;
    g. ter regime político de pluralidade partidária e eleições periódicas;
    h. não celebrar acordos, em especial militares, com a Rússia e a China, e províncias em rebelião;
    i. apoiar as iniciativas de política internacional do Império;
    j. respeitar os direitos humanos tradicionais (políticos e sociais);
    k. não restringir a ação de ONGs estrangeiras.

    71. Passaram a ser aperfeiçoadas todas as técnicas de guerra híbrida (ONGs, ativistas, interferência em eleições, “agentes” externos) na periferia do Império para implementar essas regras e derrubar governos que as contrariam.

 

*       *      *


    72. Em certos momentos, devido a circunstâncias políticas, econômicas ou sociais, o governo de uma Província empreende iniciativas que contrariam uma ou várias das “regras” do Império e surge, assim, uma Província “rebelde”, um Estado pária, como tal classificado pela metrópole.

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    73. A campanha política/econômica/midiática para promover a mudança de regime (regime change), isto é, para promover um golpe de Estado para derrubar um governo que os Estados Unidos (o Império) consideram “hostil”, incluem o financiamento de grupos de oposição e sanções econômicas unilaterais, e se desenvolve em várias etapas (que vão se superpondo) de denúncia do governo “hostil” pela grande mídia regional e pela mídia mundial, com o auxílio da Academia.

    74. Os mecanismos do Império para submeter o governo rebelde se movimentam de forma coordenada e muito semelhante em todos os casos, no contexto de uma operação de guerra híbrida. O Império acusa o governo da Província “rebelde” de:
    a. ser uma ditadura cruel;
    b. ser um governo corrupto;
    c. tolerar e patrocinar o narcotráfico;
    d. oprimir sua população com violência;
    e. não cumprir seus compromissos internacionais;
    f. sufocar a liberdade de imprensa;
    g. prender e torturar opositores;
    h. causar a fome da população mais pobre;
    i. ser uma ameaça militar ao Império;
    j. ser uma ameaça militar aos Estados vizinhos.

    75. As táticas da estratégia de controle da Província rebelde e para derrubar seu governo (regime change) se faz através de:
    a. denúncias de ONGs;
    b. “estudos” depreciativos de organismos internacionais e sua divulgação;
    c. fomento político e financeiro a grupos de oposição;
    d. campanha de desinformação da mídia internacional;
    e. denúncias de ex-integrantes do Governo de Província rebelde; 
    f. sanções econômicas unilaterais (e ilegais).

    76. As quatro Províncias rebeldes mais notáveis no momento, que são Cuba, a Venezuela, o Irã e a Coreia do Norte, não apresentam nenhuma ameaça militar ou econômica ao Império, mas são, o que é importante, um “mau exemplo” para as demais Províncias, ao procurarem seguir políticas de desenvolvimento autônomo soberano e não subordinado.

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    77. Essa estratégia de propaganda e de regime change visa a criar o “clima de opinião” para a aprovação de sanções do Conselho de Segurança e eventualmente de autorização para uma intervenção humanitária, que seria uma “obrigação” da comunidade internacional.

    78. Uma forma de depor o Governo de uma Província “rebelde” é a formação de uma força multilateral de países vizinhos que se considerariam “ameaçados” pelo governo ditatorial e agressivo da Província rebelde. Outra forma, hoje mais utilizada pelo Império, é a guerra híbrida e seu componente de lawfare - emprego de manobras jurídico-legais como substituto de força armada, visando alcançar determinados objetivos de política externa ou de segurança nacional.

    
    79. O objetivo da guerra híbrida é derrubar o governo-alvo por ações de desestabilização, a partir da exploração de conflitos e tensões identitárias, estimuladas por agentes estrangeiros.

    80. Ao iniciar uma campanha da guerra híbrida é necessário ter as maiores informações possíveis sobre as vulnerabilidades do alvo em relação a questões étnicas, religiosas, históricas, de fronteiras, disparidades sociais e econômicas.

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    81. A criação da narrativa é fundamental e pode utilizar fakenews, perfis automáticos (bot) para criar cybercascatas.

    82. As operações da guerra híbrida usam as técnicas do ciberespaço para mobilizar setores de população através de ONGs e promover manifestações contra o governo-alvo.


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A Estratégia do Império

    83. A ideia de que os Estados lutam para adquirir uma noção abstrata denominada poder não é esclarecedora e torna a ação dos governos (dos Estados) caracterizada pela irracionalidade.

    84. Na política internacional um Estado tem como objetivo (ainda que não explicito e até dissimulado) aumentar sua participação no Produto Interno Bruto (PIB) mundial e assim lograr nível mais elevado de bem estar para sua população (ou para suas classes hegemônicas); alcançar maior capacidade de influir nas discussões internacionais e nelas proteger seus interesses, seja em organismos internacionais e regionais, ou em relações bilaterais; garantir capacidade de defesa diante de adversários; garantir o acesso a recursos e a mercados. Quanto menor o poder político, econômico e militar de um Estado e maiores suas vulnerabilidades mais difíceis de alcançar serão estes objetivos.

    85. Os objetivos de uma estratégia em sua aplicação podem vir a se revelar irreais ou impossíveis de atingir, mas eles envolvem sempre uma racionalidade prévia de objetivos, isto é, alcançar vantagens econômicas ou políticas que facilitem ou que são necessárias para alcançar vantagens no sentido mais amplo da palavra. Mesmo em uma guerra dinástica o conflito envolve objetivos econômicos que as partes em disputa e aqueles que cercam os pretendentes desejam usufruir em caso de vitória. A luta não é pelo trono, mas sim por aquilo que o trono significa em termos de seu poder legal de alocar vantagens econômicas.

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    86. A definição da estratégia a ser seguida deve ter início com a formulação de uma visão do mundo, uma visão do inimigo ou adversário e uma visão dos seus próprios recursos e situação. Uma visão apenas, pois as informações nem sempre existem, nem sempre são completas, nem sempre são verdadeiras.

    87. Em primeiro lugar, a visão do próprio Estado e da própria sociedade. Esta visão é mais precisa, pois as informações são mais amplas, mais disponíveis e menos distorcidas, sobre os recursos naturais, de capital, de população, dos homens e equipamentos militares, das vulnerabilidades, das possíveis alianças.

    88. Em segundo lugar, a visão é a avaliação dos recursos naturais, dos recursos de capital, da qualidade dos estrategistas, das lideranças e das personalidades, dos recursos militares, em homens e equipamentos, dos alvos previstos da estratégia do inimigo ou adversário.

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    89. Com razoável conhecimento dessas informações e a formação dessa visão geral pode-se formular as várias etapas de uma estratégia de ataque ou de defesa diante do inimigo (ou adversário).

    90. O plano estratégico trata permanentemente com a incerteza. A concepção estratégica vive entre a insegurança e a surpresa.

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    91. A existência de uma estratégia de caráter hegemônico e global do Império estadunidense não significa que ela está tendo ou que terá êxito em alcançar seu objetivo.

    92. O Império estadunidense desenvolve uma estratégia global cujo objetivo é manter sua hegemonia, sua capacidade de se apropriar de uma parcela maior do Produto Mundial, em benefício de suas classes hegemônicas, através de um sistema econômico, político e militar que organizou e lidera.

    93. Essa estratégia tem facetas econômicas, tecnológicas, políticas, militares e ideológicas.

    94. A estratégia do Império em relação a suas Províncias é distinta de sua estratégia em relação aos Estados Adversários, China e Rússia.

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    95. A estratégia de preservação da hegemonia política em relação às Províncias utiliza os seguintes instrumentos:
    a. treinamento de elites civis e possíveis futuros líderes;
    b. divulgação e defesa das regras que os governos das Províncias devem seguir;
    c. organização de seminários e programas para jornalistas;
    d. defesa de liberdade de ação para as ONGs;
    e. defesa da liberdade de acesso à Internet;
    f. financiamento de organizações políticas;
    g. a prática do lawfare e a cooperação com juízes das Províncias;
    h. a ênfase na luta contra a corrupção;
    i. a ênfase em relações políticas bilaterais e não multilaterais;
    j. ação para impedir a formação de alianças regionais entre Províncias;
    k. geração de fricções da Província com China e Rússia, e a difusão de propaganda anti-China e anti-Rússia.

    96. A estratégia de preservação da hegemonia econômica do Império estadunidense sobre as Províncias utiliza os seguintes instrumentos:
    a. promover a aceitação pelas classes hegemônicas locais da visão tradicional da Divisão Internacional do Trabalho entre produtores primários e produtores industriais, em especial no caso das Províncias subdesenvolvidas;
    b. promover a incorporação das Províncias subdesenvolvidas na economia americana através de acordos de livre comércio;
    c. promover a redução unilateral de tarifas industriais;
    d. promover o cumprimento das dez regras do Consenso de Washington, em especial pelas Províncias subdesenvolvidas;
    e. organizar programas de formação e treinamento de economistas;
    f. fragilização das grandes empresas de uma Província.

    97. A estratégia de preservação da hegemonia tecnológica do Império estadunidense utiliza as seguintes políticas:
    a. impedir a difusão do conhecimento tecnológico através de maior proteção à propriedade intelectual na ordem internacional e na legislação das Províncias;
    b. promover o recrutamento de cientistas das Províncias para trabalharem nos Estados Unidos;
    c. promover o recrutamento de estudantes excepcionais para sua “absorção” na sociedade e economia americanas;
    d. expandir o sistema educacional e cultural americano nas Províncias.

    98. A estratégia de preservação da hegemonia militar do Império estadunidense se realiza através das seguintes políticas:
    a. promover o desarmamento nuclear e a limitação da indústria nuclear em todas as Províncias;
    b. promover a negociação de acordos de desarmamento de armas convencionais;
    c. estimular a transformação das Forças Armadas, em especial nos países periféricos, em forças policiais;
    d. treinar os oficiais militares de alta patente na doutrina e uso de equipamentos militares americanos;
    e. desestimular o desenvolvimento local de indústria bélica;
    f. vender armas de segunda geração a preços reduzidos.

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    99. A estratégia do Império para manter sua hegemonia cultural se realiza através das seguintes políticas:
    a. impedir a adoção de legislação pelas Províncias de proteção à sua cultura nacional e à sua indústria cultural;
    b. manter livre acesso de seus produtos culturais (filmes, livros, música etc) aos meios de comunicação de massa nas Províncias;
    c. expandir o sistema de difusão da cultura americana através de institutos de idioma e de programas de intercâmbio.

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    100. Do lado de fora do Império se encontram seus Adversários: a República Popular da China e a República Federativa Russa.

    101. Estes Estados Adversários são descritos nos documentos oficiais do Império como “inimigos terríveis”, “revisionistas” cuja intenção é destruir os Estados Unidos e o mundo livre e seus valores sociais, políticos e econômicos.

    102. A estratégia de Defesa Nacional de 2018 afirma que China e Rússia são “potências revisionistas” que procuram “construir um mundo consistente com seu modelo autoritário – ganhando poder de veto sobre as decisões econômicas, diplomáticas e de segurança de outras nações”.

    103. Esta designação de “inimigos” é necessária para justificar, aos olhos da população americana, dos tax-payers, as despesas com armamentos que beneficiam as empresas e as estruturas militares do complexo industrial-militar, e o subsídio, às vezes a fundo perdido, a empresas para realizar programas de pesquisa e desenvolvimento científico e tecnológico, justificado e legalizado com o argumento de “segurança nacional”.

    104. Todavia, a China e a Rússia, sempre acossadas pelo Império, direta ou indiretamente, ostensiva ou sub-repticiamente, conhecedoras de sua força econômica, politica, militar e ideológica, agem com cautela e não demonstram intenção de “derrubar” o atual sistema de normas internacionais, mas sim de participar dele em melhores posições nos sistemas de decisão.

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    105. A estratégia do Império estadunidense em sua disputa com a Rússia e a China se faz através das seguintes políticas:
    a. estimular sua desintegração territorial através do financiamento de organizações separatistas;
    b. estabelecer uma rede de acordos militares com Estados vizinhos da Rússia e da China e nesses Estados estabelecer bases;
    c. promover manifestações de reivindicação política de democracia e liberdade de expressão;
    d. dificultar acordos da Rússia e China com Províncias desenvolvidas ou subdesenvolvidas;
    e. financiar ONGs de defesa de direitos humanos.

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    106. A estratégia da Rússia e da China para enfrentar o Império estadunidense tem os seguintes aspectos principais:
    a. reduzir suas próprias vulnerabilidades;
    b. não defender uma Nova Ordem Internacional;
    c. procurar ocupar cargos importantes nos organismos internacionais;
    d. reforçar seus laços recíprocos de cooperação, em especial com os Estados vizinhos e a Iniciativa da Rota da Seda e do Cinturão;
    e. criar entidades “paralelas”, como são o NDB e o Banco Asiático de Infraestrutura para oferecer melhores condições à Províncias subdesenvolvidas;
    f. contrastar uma política de defesa de autodeterminação e não intervenção com a política de controle da soberania exercida pelo Império;
    g. oferecer a cooperação técnica e financeira para a industrialização;
    h. reforçar laços de cooperação com os países da Europa Ocidental.

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    107. Quanto menores forem as dimensões de território e, portanto, a gama de recursos do solo e de população e, portanto, o mercado potencial de uma Província maiores são suas vulnerabilidades e, portanto, sua dificuldade em alcançar uma soberania mais plena.

    108. Os grandes Estados da periferia, que são Províncias subdesenvolvidas, têm maior possibilidade de ampliar sua soberania e para tal devem desenvolver, com prudência e firmeza, uma estratégia com base:
    a. no desenvolvimento e industrialização de seus recursos naturais;
    b. na redução de suas vulnerabilidades:
    • econômicas, pela diversificação de sua exportações, em termos de produtos e destinos, e de importações, em termos de origem; e redução do endividamento externo;
    • tecnológicas, pelo desenvolvimento de sua força de trabalho científica e tecnológica orientada para à pesquisa sobre sua industrialização;
    • políticas, pela coordenação de sua política externa com outros grandes Estados de periferia principalmente aqueles vizinhos;
    • militares, pela construção paulatina da indústria bélica;
    • ideológicas, pela diversificação do treinamento no exterior e criação de centros de formação no país.

    109. Se não houver a execução sistemática e persistente de uma estratégia com esse objetivos, qualquer exercício de soberania estará fadado ao fracasso.

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*Samuel Pinheiro Guimarães foi Secretário Geral do Itamaraty (2003-09) e ministro de Assuntos Estratégicos (2009-10)

Edição: Leandro Melito