Da morte de Miguel a trabalhadores contaminados pelo novo coronavírus em uma das fábricas da JBS, protagonizamos um retrato nítido da “sociedade da inimizade”, apontada por Foucault e Mbembe, como aquela que subjuga e controla, hostilmente, corpos e populações. As explicações para o que vivemos são inúmeras, mas não há dúvidas, que na árvore genealógica da barbárie, o fascismo é o filho pródigo da despolitização. Processo que representa o distanciamento de uma pessoa ou grupo da realidade em que vive.
Desmascarar os fenômenos de antipolítica, ultrapolítica e pós-política inerentes ao processo de despolitização, é imperativo para tentar compreender, por exemplo, o porquê da população brasileira preferir um presidente homofóbico e racista, ainda que o revés dessa escolha signifique uma ameaça de ruptura com as vias democráticas e a consequente legitimação do desprezo da humanidade.
Voltemos as eleições de 2018 para desmistificar a antipolítica. Vejamos quantos políticos ocupam cargos nos governos em todos os níveis, seja graças ao discurso “não sou político, sou gestor”, seja pela teatralidade que capta a indignação coletiva sem fim preciso. Os dedos das mãos não são suficientes para contabilizar os nomes do fenômeno da antipolítica no Brasil. Forjados de nova política, representam, na verdade, o que há de mais retrógrado no sistema. Via de regra, os eleitores antipolíticos tendem a buscar figuras anti-sistêmicas ou a agir com apatia e desinteresse a tudo que diz respeito as pautas políticas. O paradoxo consiste no fato de que, conscientemente ou não, essa decisão também é inevitavelmente política, considerando que o vazio político nunca deixará de ser preenchido e que quando o obscurantismo avança todos nós retrocedemos.
Já o segundo fênomeno, ultra-política, nos interpela a rememorar as manifestações pelas “Diretas Já”, “Fora Collor” e as “Jornadas de Junho”. Ao longo dos anos, as reinvindicações cederam lugar para o clamor de uma massa sem orientação política precisa, quadro que culmina, em 2013, na rejeição de bandeira de partidos nos protestos. Tal fato simboliza o abre-alas para o bloco da direita e sua ultra-política, conceito muito bem resgatado pela socióloga Sabrina Fernandes, e, que segundo o filósofo Slavoj Zizek, recorre ao modo de guerra, a política com intenção de criar um “Inimigo” comum. No nosso país, os neoliberais, fascistas e companhia, logo se encarregaram de produzir a lista de “inimigos”. Nela, temos um pouco de tudo: comunistas, corrupção, PT, ideologia de gênero, universidades, imprensa e o resto do mundo, com exceção dos ianques, claro. Desde então, a “guerra” maniqueísta vem sendo naturalizada pelo senso comum e uma de suas crias é a ascensão do neofascismo com apoio de uma base dura de, aproximadamente, 30% dos brasileiros.
Nessa altura do campeonato quem continua a apoiar Bolsonaro se deleita a cada discurso de eugenia e higienismo que compartilharmos indignados nas redes. A obstinação é tamanha que até a grande mídia defensora árdua dos interesses da classe dominantes, está sendo considerada comunista. Na era terraplanista, a disputa de narrativa considera, primeiramente, se você está contra o “inimigo”. Se sim, informação compartilhada. Senão, pouco importa a veracidade do conteúdo apresentado ou sua relevância científica, seu conteúdo será desprezado.
Qual é a saída, então? A pós política tem a resposta: “Ouçamos os especialistas”, “nem direita, nem esquerda”, “chega de radicalidade, a saída é o centro”, eles dirão. No mercado das soluções rápidas para todos os problemas, esses discursos estão entre os mais vendidos. Contudo, nada mais são do que novos modelos de armação que as velhas visões neoliberais têm investido, dada a suposição de neutralidade. A tática se baseia em dar respostas técnicas para ganhar a credibilidade do povo e vender modelos antigos em uma embalagem mais atraente, que agrade e agregue os interesses de todas e todos. No fenômeno da pós-política, ter um lado significa radicalismo, o que não se aplica quando se trata da defesa do status quo. Para eles, apontar opressões de gênero e raça é problematizar demais. No âmbito da institucionalidade, a pós-política se destaca com louvor na conciliação com as estruturas do capital e de opressão. Se me pedissem para resumir, diria que se trata de uma farsa ideológica que despreza o antagonismo.
Diante de tudo, o sentimento da desesperança se sobressai, motivado diretamente pela miséria do capitalismo. Essa desesperança tem aberto caminhos diversos que desaguam, quase sempre, no mesmo rio. Com a derrota estratégica da esquerda, o projeto genocida de Bolsonaro avança. Por isso, é fundamental a organização política nesse momento: sindicatos, movimentos e partidos. Somente através desses instrumentos de luta podemos alinhar nossa indignação na direção de um objetivo estratégico comum. Trata-se de fundamentar nossas ações. Trata-se de vontade coletiva nos termos de Gramsci. Sejamos realistas, sejamos intransigentes. Mudanças radicais exigem demandas radicais. Vos suplico expressamente, lutemos para que a única negociação de termos possível para nós, seja aquela em que a utopia será sempre quociente.
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Este artigo de opinião se baseou e resgatou conceitos do livro “Sintomas Mórbidos” de Sabrina Fernandes.
Helena Antunes é engenheira, estudante de ciências sociais e militante das amélias