Rio de Janeiro

Paralisação nacional

“Muito trabalho para receber pouco”, destaca entregador de aplicativo sobre rotina

Segundo estudo, maioria dos trabalhadores de delivery são jovens e negros; categoria representa 23% dos autônomos

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
A paralisação desta quarta-feira (1) pressiona as grandes empresas de serviços de delivery como Ifood, Loggi, Rappi e Uber Eats a reverem as regras dos aplicativos - Jaqueline Deister

“Trabalho sete dias por semana, quantas horas aguentar por dia 12, 13, 14 ou até 16”. A fala é de Rafael Simões, conhecido apenas como Simões, motoboy há mais de 20 anos no município de Niterói, na região metropolitana do Rio de Janeiro. Há dois anos ele trabalha apenas com os serviços de delivery por aplicativo, sendo a única fonte de renda de sua família.

Simões é um dos organizadores da paralisação nacional que acontece nesta quarta-feira (1) e reivindica melhores condições de trabalho para os entregadores. Tido como referência para outros motoboys, Simões explica que a rotina de quem trabalha com o serviço de delivery normalmente é desgastante, mas no período da pandemia a situação piorou.

“A gente não tem banheiro, não tem água, não tem lugar para almoçar. Os restaurantes estão fechados não tem como você ir ao banheiro, os donos, geralmente, não deixam. Não tem acesso a um bebedouro. É muito cansativo. Está muito estressante. Nós estamos sobrecarregados”, relata o entregador de 37 anos e pai de três filhos.

::O dia a dia dos entregadores de apps: 12h de trabalho, sem apoio e sem direitos::

Outros três motoboys que estavam sentados em suas motos aguardando a próxima chamada do aplicativo enquanto a reportagem conversava com Simões destacaram as dificuldades diárias. Para Diego Silva, morador de São Gonçalo, também na região metropolitana, que trabalha há quatro anos com delivery e há oito meses atua com aplicativos, uma das principais desvantagens são os baixos valores pagos por corrida:

muito longe para muito pouco. Trabalhamos dobrado e recebemos muito menos.

A rotina de Simões e de Silva, que trabalham mais de 12 horas por dia para bater uma meta diária de R$ 100 a R$ 200, é compartilhada por milhões de brasileiros que encontram nos serviços de entrega uma alternativa para complementar a renda familiar ou, até mesmo, para evitar o desemprego. 

Segundo Marco Aurélio Santana, coordenador do Núcleo de Estudos Trabalho e Sociedade (NETS-UFRJ) do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ), a partir de dados da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE), da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD/IBGE) e de pesquisas de perfil, até o ano passado, o país possuía cerca de 5,5 milhões de entregadores, sendo a maioria dos trabalhadores do setor de delivery formada por homens, jovens e negros, e uma minoria crescente de mulheres. A categoria representava, então, em torno de 23% dos trabalhadores por conta própria do Brasil. Como o pesquisador destaca:

além de estarem descobertos de direitos sociais, são submetidos a condições diárias de trabalho totalmente precárias, com longas jornadas de trabalho, extrema pressão por ritmos, altos índices de acidente e baixa remuneração.

O pesquisador afirma ainda que o desmonte intencional das formas históricas de proteção social ao trabalho acompanhe uma dinâmica global, mas também guarda relação direta com o golpe de 2016, com a reforma trabalhista aprovada em 2017, no governo do então presidente Michel Temer (MDB), e vem acelerando sob o Brasil de Jair Bolsonaro (sem partido):

"É um conjunto de políticas regressivas que abarcaram uma alteração destruidora do sistema de regulação protetiva em termos trabalhistas e previdenciários. Nos dois casos foram mudanças bastante profundas que deixaram o trabalho descoberto no presente (quando trabalhadoras/es estão em atividade, mas desprotegidos de direitos sociais) e no futuro (quando da época do que seria a sua aposentadoria)", avalia.

Virando o jogo

A paralisação desta quarta-feira (1) pressiona as grandes empresas de serviços de delivery como Ifood, Loggi, Rappi e Uber Eats a reverem as regras dos aplicativos. Os entregadores exigem mais transparência e remuneração adequada. A forma de organização dos entregadores e entregadoras de aplicativos impõe o desafio de se pensar a categoria, já que o movimento está distante ainda de uma organização sindical mais estrita, é capilarizado e tem ações mais articuladas nas redes sociais e em grupos de WhatsApp. 

“Comparados a um movimento da classe trabalhadora do período anterior, se poderia achar impossível que, submetidos a tal informalidade e precarização da vida e do trabalho, pudessem conseguir sequer tempo de pensar e fazer reivindicações. Mas em outros momentos históricos, a classe trabalhadora também desprotegida e atuando em situação adversa conseguiu desenvolver formas de organização e luta”, pontua Marco Aurélio.

A paralisação nacional dos entregadores desta quarta-feira (1) tem um caráter orgânico, espontâneo e apartidário. Em Niterói, o protesto está marcado para começar às 9h em frente à Estação das Barcas, na Praça Arariboia. A orientação é para que neste dia, clientes não peçam comida pelos aplicativos e avaliem negativamente as empresas de delivery nas lojas de aplicativo como Google Play e Apple Store.

“Estamos brigando por três pautas: queremos ganhar no mínimo R$ 2 por quilômetro; queremos a taxa mínima de R$ 10 e o fim dos bloqueios indevidos. Eu chego num determinado lugar para entregar o pedido, se o cliente ou o porteiro esquecer e não entregar, ou o cliente reclamar, automaticamente o motoboy é bloqueado sem pestanejar ou perguntar. A princípio [o bloqueio] é de 24 horas e depois pode ser um bloqueio 'estamos encerrando a parceria'”, ressalta Simões.

Atualmente, os entregadores não recebem nem R$ 1 por quilômetro percorrido. As taxas variam de 0,70 a 0,80 centavos e o valor mínimo recebido para o delivery é de R$ 5. Para o representante do movimento em Niterói, além de melhorar a remuneração pelo trabalho fornecido, as plataformas digitais poderiam ter mais transparência o bloqueio e criar um sistema que confirmasse o recebimento da encomenda entre cliente, entregador e empresa. 

“Acho que uma criação de código seria excelente para esse fim do bloqueio indevido porque a plataforma criaria um sistema em que a gente entregando o pedido, o cliente reporta o código, a gente coloca no telefone e pronto”, explica. 

Marco Santana defende que, independentemente das pressões e tentativas de esvaziamento que as empresas já estão fazendo nos últimos dias em relação à greve desta quarta-feira (1º), o movimento já é vitorioso pelo seu desenvolvimento e a categoria, em luta por direitos como tem ocorrido em outros países, pode ganhar mais peso a partir da interlocução com formas tradicionais de organização, produzindo uma tensão criativa entre elas.

“Há tendências importantes aflorando desse movimento, nem todas necessariamente novas nos repertórios de ação, e que podem auxiliar na construção de caminhos para a luta da classe trabalhadora no país. Articulação entre formas de organização horizontais e outras mais verticais, entre ações espontâneas e outras mais vertebradas, entre ação no mundo real e ação virtual, intenso uso de aplicativos de mensagem tanto no sentido organizativo quanto no de agitação e propaganda etc. têm fornecido características interessantes a esse movimento”, conclui.

Edição: Mariana Pitasse