Alerta

Ambulantes de Niterói (RJ) denunciam abordagens violentas e apreensões ilegais

Decreto de reabertura do comércio varejista na cidade ainda não permite retorno das atividades da categoria

Brasil de Fato | Niterói (RJ) |
“Episódio de violência contra ambulantes sempre ocorreram de forma silenciosa como algo normal", observa o vendedor Fábio Luiz - Acanit

Meias e panos de chão. Esses são os materiais de trabalho de dois vendedores ambulantes vítimas de uma ação violenta da Guarda Municipal de Niterói, na região metropolitana do Rio de Janeiro. Os episódios foram denunciados pela Associação dos Comerciantes Ambulantes de Niterói (Acanit), que formalizou um pedido de investigação junto à Corregedoria da Guarda Municipal. De acordo com os ambulantes, a repressão contra a categoria aumentou após a reabertura do comércio na cidade, no último dia 22. 

No centro da cidade, um trabalhador senegalês, que não teve o nome divulgado, foi perseguido pelas ruas, até ser dominado por um grupo de guardas, na quarta-feira (24).

“Deram uma ‘banda’ nele e o jogaram no chão. Quando ele viu aquele monte de homem em cima dele, ele tentou sair e o enforcaram. Na semana em que foi agredido, ele já tinha tido a mercadoria apreendida três vezes. Não foi dado o lacre para que ele pudesse recuperar. Ele vende meia, não é nada de mercadoria ilícita”, explica Fernando Carvalho, presidente da Acanit. 

O enforcamento foi constatado na perícia realizada após o episódio. O guarda apontado como autor do golpe já respondeu por outras duas agressões a trabalhadores ambulantes na cidade. 

No dia seguinte, na quinta-feira (25), outro trabalhador foi agredido, desta vez no bairro de Icaraí, na zona sul da cidade. Na abordagem, que foi gravada, é possível ver um carro da Guarda e outro da Polícia Militar parados. O vendedor de panos de chão, Marcos Davi de Souza dos Santos, que é uma pessoa com deficiência, foi cercado por três agentes e teve spray de pimenta jogado contra o seu rosto, enquanto sua mercadoria foi apreendida. 

“Episódio de violência contra ambulantes sempre ocorreram de forma silenciosa como algo normal, isso porque geralmente esses casos não ganham repercussão e os agentes agressores ficam impunes” observa Fábio Luiz, trabalhador ambulante há mais de 20 anos e ex-presidente da Acanit. Para ele, a proximidade entre Guarda Municipal e Polícia Militar contribui para uma postura mais agressiva de enfrentamento por parte dos agentes. “São orientados a combater ambulantes como se fossem criminosos”, complementa. 

Os episódios observados nas ruas de Niterói, nas últimas semanas, compõem as ações da Operação Tolerância Zero, iniciada no dia 6 de junho. A “apreensão de mercadorias de ambulantes não licenciados” e a “patrulha visando apreensão de mercadorias” são duas das três missões descritas na ordem de serviço da Secretaria Municipal de Ordem Pública (SEOP). 

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Segundo o atual presidente da Acanit, Fernando Carvalho, essas apreensões têm ocorrido diariamente e de forma ilegal. “O procedimento correto é o fiscal apreender, contar a mercadoria, lavrar auto de apreensão e entregar o lacre ao ambulante para que ele possa ir à Secretaria de Ordem Pública recuperar o material. Tendo a nota fiscal, ele vai abrir o processo, pagar uma taxa e retirar a mercadoria do depósito municipal”, explica. 

Porém, na prática, a apreensão e recuperação do material não acontecem como deveriam, como destaca Fernando Carvalho. O próprio decreto municipal de 2003, que regulamenta esse tipo de ação, abre brechas para que as orientações não sejam seguidas e não acarreta penalidades aos agentes. Sem a contabilização e o lacre do material no ato de apreensão, é comum que os trabalhadores ambulantes recuperem apenas uma parte dos produtos que foram levados. O tempo de devolução da mercadoria que, por lei, deveria ser de 10 a 20 dias, também não é seguido. 

“A gente tem caso de ambulante que está com processo na secretaria há quase um ano e não consegue retirar a mercadoria, com apresentação das notas e pagamento da taxa. Isso quando é entregue o lacre. Quando não é entregue, muitos comerciantes vão na SEOP pedir o lacre da mercadoria e quando chegam lá, eles ouvem que se o lacre não foi entregue no ato da apreensão, precisam procurar o agente”, conta. 

Auxílio emergencial

O trâmite legal para recuperar sua mercadoria ou reclamar seus direitos frente a uma abordagem irregular de agentes públicos pode ser desconhecida por muitos trabalhadores ambulantes. Pensando nisso, um grupo de extensão da Universidade Federal Fluminense (UFF) tem trabalhado para aproximar os conhecimentos técnicos das necessidades reais vivenciadas pelos camelôs no seu dia a dia.

“A gente faz uma assessoria popular no sentido de buscar, em conjunto com eles, soluções nas vias administrativas e judiciais em relação às suas demandas. É importante frisar que é a própria organização dos ambulantes que levanta as pautas e direciona a agenda. A ação extensionista se desenvolve como um suporte a isso”, explica Tiago José, advogado e coordenador do Grupo de Trabalho (GT) dos Ambulantes. 

No início do ano um manual sobre recuperação de mercadorias apreendidas foi criado pelo grupo. Nos últimos meses, com a chegada da pandemia do novo coronavírus e o decreto de isolamento social, o projeto uniu forças aos trabalhadores no auxílio às questões jurídicas, na busca pelos benefícios emergenciais e na arrecadação de alimentos. 

A Associação dos Comerciantes Ambulantes contabiliza cerca de mil trabalhadores licenciados na cidade de Niterói e estima que há outros mil não licenciados. Muitos deles não têm conseguido acessar o auxílio emergencial de R$ 600 do governo federal. Entre os ambulantes regularizados, que podem solicitar um benefício no valor de R$ 500 pago pela Prefeitura de Niterói, as dificuldades são outras já que o formato de cartões pré-pagos não pode ser utilizado pelos trabalhadores para pagamento de contas e aluguel, por exemplo. Apenas em farmácias, mercados e postos de gasolina.

“Os que não são licenciados ficaram de fora e os que têm a licença, o auxílio não é suficiente para pagar as despesas, por isso temos na rua uma galera se arriscando para trabalhar”, observa Fábio Luiz. 

Como medida assistencial de emergência às famílias, a Acanit e o projeto UFF nas Ruas iniciaram um movimento de arrecadação de alimentos. Entre maio e julho, aproximadamente 900 cestas básicas foram doadas. Atualmente, o grupo mantém uma vaquinha online para continuar a ação. 

Retomada do comércio

O anúncio de mais uma etapa de flexibilização do isolamento, com a reabertura do comércio de Niterói, na segunda quinzena de junho, encheu os trabalhadores de esperança na retomada das atividades. O decreto que autorizou a volta gradual no funcionamento de lojas, centros comerciais e shoppings, ainda não permite o funcionamento do comércio ambulante. 

“A associação protocolou um pedido de informação, mas nada foi respondido ainda”, conta o atual presidente da Acanit, Fernando Sobrenome.

Em nota, a Guarda Municipal reforçou a informação de que os ambulantes “ainda não possuem autorização para voltar ao trabalho nas ruas”. Questionada pela reportagem sobre o motivo de separação da categoria do restante do comércio no decreto de reabertura, a instituição respondeu que "está atuando nas ruas da cidade com o objetivo de manter o ordenamento e fazer cumprir os decretos de medidas sanitárias". 

Sobre as denúncias de agressões e truculência durante as abordagens, especialmente após a reabertura do comércio, a Guarda Municipal destacou que “a Corregedoria está apurando o caso e vai definir as providências a serem tomadas”. Segundo a instituição, “tais atitudes não condizem com o treinamento recebido pelos agentes”. 

Os ambulantes poderão voltar a atuar na próxima fase de flexibilização, que ainda não tem uma data estipulada pela Prefeitura de Niterói. Sem uma definição objetiva, muitos trabalhadores estão voltando ao comércio ambulante e se arriscando duplamente: ameaçados pelo vírus e reprimidos pelos guardas. 

“Orientamos aos trabalhadores que estão nas ruas que filmem as ações de apreensão ou agressão da Guarda Municipal para que possamos denunciar. Temos feito atos nas redes e nos mobilizado, estamos sempre nas páginas e canais dos órgãos competentes reivindicando nossos direitos”, reforça Fábio Luiz, membro da Acanit.

Fonte: BdF Rio de Janeiro

Edição: Rodrigo Chagas e Mariana Pitasse