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DIREITOS

Lei que altera o marco do saneamento básico pode aprofundar desigualdades

Atualmente mais de 35 milhões de brasileiros vivem sem acesso à água potável e 100 milhões sem esgotamento sanitário

Brasil de Fato | Salvador (BA) |
As populações do campo, da floresta e das águas, das periferias das grandes cidades e de cidades menores são as mais afetadas pela falta de acesso à água e saneamento básico segundo pesquisador.
As populações do campo, da floresta e das águas, das periferias das grandes cidades e de cidades menores são as mais afetadas pela falta de acesso à água e saneamento básico segundo pesquisador. - EBC

O projeto de lei (PL) que estabelece novas regras para a prestação de serviços públicos de saneamento básico no país, aprovado pelo Senado no último mês de junho, deve ser sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) na próxima quarta-feira (15). O PL 4.162/2019, que vem sendo chamado de novo marco legal do saneamento, estabelece, entre outras medidas, condições que facilitarão a entrada de empresas privadas na área. A meta é a universalização do atendimento até 2033, podendo ser relaxada até 2040.
O saneamento básico abrange os serviços públicos de abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos, drenagem e manejo de águas pluviais urbanas. No Brasil, ainda são milhões de brasileiros que não contam com abastecimento de água e esgotamento sanitário, mas especialistas e movimentos sociais alertam que as novas medidas podem agravar o problema, encarecendo e precarizando os serviços.

O que muda com a nova lei
Segundo a pesquisadora Gabriela de Toledo, do Observatório do Saneamento Básico da Bahia (OSB-BA), não se trata de um “novo marco regulatório”, como tem sido denominado. “O Marco Legal do Saneamento é a Lei n.11.445, de 2007”, afirma, “o que esse PL fez foi alterar pontos do marco e outras leis”. Como principais mudanças, ele atribui à Agência Nacional das Águas (ANA), que passa a ser Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico, o estabelecimento de normas de referência para o saneamento básico em todo o país; institui a regionalização na prestação dos serviços (em blocos de municípios não necessariamente limítrofes); e determina a obrigatoriedade de licitação para contratações.

Luiz Roberto Moraes, do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS), declara que a proposta serve para “colocar a iniciativa privada no negócio do abastecimento de água e do esgotamento sanitário”. E adverte: “O PL em nenhum momento considera o abastecimento de água e o esgotamento sanitário como direitos humanos essenciais”.

Como alerta Moisés Borges, membro do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB): “muda completamente o objetivo, que está determinado pela Constituição Federal e pela ONU, de que a água é um bem comum e direito fundamental humano”.
Outro ponto crítico é o fim do chamado subsídio cruzado. Hoje, municípios maiores, em que a arrecadação de receitas supera as despesas (superavitários), garantem o atendimento nos municípios onde acontece o contrário. “Salvador gera muito recurso para a Embasa (Empresa Baiana de Água e Saneamento S/A), mas há municípios menores que geram certo prejuízo” exemplifica Moisés. “Ao terminar com o subsídio cruzado, o que acontece é que esses municípios [principalmente do interior] não vão conseguir se automanter”.

Agência nacional e prestação regionalizada
Para especialistas, a centralização da regulação em um ente pode torná-lo alvo mais fácil de pressões por parte de grupos privados. “A capacidade deles, política e econômica, de capturar os entes reguladores e fiscalizadores é imensa”, afirma Moraes. Hoje o Brasil tem 57 agências de regulação, entre estaduais, municipais e intermunicipais.

Já o modelo de prestação regionalizada ainda não é transparente. Para Gabriela, o principal problema é que “não foi mostrada nenhuma metodologia de organização desses territórios”. Segundo a pesquisadora, tais critérios precisam estar evidentes. E orienta: “Se fôssemos para avançar na definição de microrregiões de saneamento básico deveria ser utilizado então as bacias hidrográficas como referências territoriais”. Pensar a partir das bacias, explica, permite uma integração entre características sociais, ambientais e econômicas dos territórios.

O projeto de lei é criticado, ainda, por retirar a autonomia dos municípios, que detêm a titularidade dos serviços públicos de saneamento básico, segundo a Constituição Federal. Gabriela detalha: “Os estados deverão definir essas microrregiões de saneamento básico. No caso de eles não definirem em tempo hábil o Governo Federal deverá cumprir este papel”. Para ela, isso fragiliza o processo, porque o governo teria menos condições de defini-las a partir de características regionais.

Saneamento não é mercadoria
Hoje são duas as formas de delegação dos serviços públicos de saneamento básico pelo governo: por licitação, para concessão a agentes privados, ou por gestão associada, entre estados e municípios, por meio de convênios de cooperação e contratos de programa. O que o PL faz é deixar apenas uma opção. “Isso cria um monopólio do setor privado, porque inclusive para empresas públicas poderem participar de licitações elas têm características jurídicas que tornam esse processo muito mais difícil”, destaca Gabriela.

Há na área de saneamento o que se chama de “monopólio natural”. “Você não pode ter, numa rua, numa cidade, duas tubulações de água ou de esgoto para você optar em qual quer ligar o seu domicílio”, explica Moraes. “Você só dispõe de uma infraestrutura, é diferente de telefonia, por exemplo”. Hoje cada estado tem uma companhia para prestar esses serviços em seus municípios. O projeto de lei, então, “acaba praticamente transferindo o que seria o monopólio público para o setor privado”, afirma o especialista. O que é um problema porque a iniciativa privada trabalha com a lógica do lucro.

“Não é interesse do capital entrar nas áreas rurais, geralmente sistemas relativamente pequenos e com uma população com a capacidade de pagamento baixa”, pondera Moraes. E questiona: “Quem são os 35 milhões que não têm acesso à água potável e os 100 milhões sem esgotamento sanitário? A população do campo, da floresta e das águas, a população das periferias das grandes cidades e a população de cidades menores, exatamente aquelas que serão excluídas desse novo modelo”. O pesquisador argumenta que o foco do mercado será em áreas onde a universalização já está perto de ser atingida, que são mais rentáveis.

Para uma melhor distribuição é necessária a atuação do poder público: “Não tem nenhum país do mundo em que a universalização do saneamento básico se deu sem a participação do Estado”, diz Moraes. Além disso, a proposta abre espaço para privatizações – previstas no novo texto legal – que não deram certo em vários países do mundo. “Não só aqui no Brasil mas a nível mundial, o capital entrou nessa área e entrou com tanta sede que arrancou o que pôde e depois foi retirado pela população e poder público”, conclui.

Entidades e movimentos em mobilização
O projeto de lei foi aprovado em meio à crise da pandemia mundial da Covid-19, em que a água tem papel fundamental no combate à proliferação do vírus. “Eles se aproveitam desse momento de pandemia para aprovar as medidas que interessam ao grande capital, prejudicando a população”, declara Moisés. Ele conta que ações têm sido feitas para destacar o tema na sociedade, como tuitaços e mobilizações nas redes sociais. “Seja através de meios virtuais ou outros que não coloquem em risco a saúde das pessoas, mas que façam sim uma pressão para reverter essa condição, principalmente trazendo e levando a informação para a classe trabalhadora”.

A mobilização é importante ainda, ressalta Gabriela, porque artigos aprovados no PL, que foram resultado da resistência dos militantes da área de saneamento poderão sofrer vetos do presidente: “São justamente artigos que tentaram fazer alguma melhoria no destroçamento que estava sendo feito na lei atual”, finaliza.

Edição: Jamile Araújo