Rio Grande do Sul

MULHERES NA POLÍTICA

“Ser maioria na docência é uma resistência à opressão patriarcal”, afirma Helenir

Professora do Estado há mais de 30 anos, Helenir Schürer está em seu segundo mandato como presidenta do CPERS

Brasil de Fato | Porto Alegre |
“É a educação a força motriz da mudança social", afirma a educadora que iniciou sua militância em 1984 - Arquivo pessoal

Helenir Aguiar Schürer iniciou sua apresentação assim: “Sou mulher, mãe de três filhos e avó de sete netos maravilhosos”. Segundo ela, a educação é um espaço quase que essencialmente feminino. Justamente por remeter à imagem predominante da mulher ao longo da história: cuidadora, maternal, afetiva e, ao mesmo tempo, severa e diligente em sua “missão” de zelar pelo aprendizado e o crescimento dos jovens.

Mas também ressalta que, como sujeito histórico oprimido, a mulher tem na sala de aula e no chão da escola um palco latente de potências e profundas transformações. “É a educação a força motriz da mudança social, e qualquer desconstrução de preconceitos e paradigmas passará, necessariamente, pelo ambiente escolar. Não é uma garantia. Mas um horizonte permanente de possibilidade. Ser maioria, portanto, na docência, é tanto uma consequência quanto resistência à opressão patriarcal.”

Formada em Letras, Helenir é concursada em português e inglês no Estado. Sua militância iniciou em 1984 quando foi aprovada em um concurso municipal, lá em Horizontina, e já se filiou ao CPERS Sindicato. Quando entrou no Estado, em 1987, participou, de corpo e alma, dos 96 dias de greve durante o governo Simon. Após ser vice-diretora do 23º Núcleo do CPERS, em Livramento, e depois diretora, foi representante 1/1000 também daquele núcleo. Em 2001 veio para a direção central e desde 2014 está na presidência do CPERS, o segundo maior sindicato da América Latina e uma referência para a luta e a organização de classe no país e no mundo.

Confira a íntegra da entrevista.

Brasil de Fato RS - Como sempre fazemos, gostaríamos de começar com um pouco da tua história e trajetória.

Helenir Aguiar Schürer - Sou mulher, mãe de três filhos e avó de sete netos maravilhosos. Sou professora formada em Letras, concursada em português e inglês no Estado. Comecei minha militância em 1984 quando fui aprovada em um concurso municipal, lá em Horizontina. Me filiei ao CPERS em 1984, ainda como professora da rede municipal. Em 1987 entrei para o Estado e já participei, de corpo e alma, dos 96 dias de greve durante o governo Simon. Em 1994 fui eleita vice-diretora do 23º Núcleo de CPERS, em Livramento, e depois passei a diretora. Fui representante 1/1000 também daquele núcleo. Vim para a direção central em 2001 e participei de duas gestões da professora Jussara Dutra e da gestão da professora Simone. Fui responsável pela formação política-sindical neste momento e também secretária de formação da CUT/RS. Minha última atuação em sala de aula foi na escola Ernesto Dornelles, da Capital, onde trabalhei até 2014, quando assumi a presidência do CPERS. Hoje estou no segundo mandato.


Helenir assimiu a presidência do CPERS em 2014 / Arquivo pessoal

BdFRS - Como tu vês a atuação das mulheres na educação. Como essa atuação contribui para avanços no setor?

Helenir - A educação é um espaço quase que essencialmente feminino. A questão do gênero na docência é carregada de simbolismos e ambivalências. Primeiro: remete à imagem predominante da mulher ao longo da história: cuidadora, maternal, afetiva e, ao mesmo tempo, severa e diligente em sua “missão” de zelar pelo aprendizado e o crescimento dos jovens.

É, como não poderia deixar de ser em nossa sociedade, uma visão patriarcal e machista, que transpõe o papel esperado da mulher em casa, no privado, para a escola, um espaço público. Assim, as categorias de mulher e professora se fundem, o que obscurece de certa forma a sua atuação como profissional da educação.

Dito isso, como sujeito histórico oprimido, a mulher tem na sala de aula e no chão da escola um palco latente de potências e profundas transformações. É a educação a força motriz da mudança social, e qualquer desconstrução de preconceitos e paradigmas passará, necessariamente, pelo ambiente escolar. Não é uma garantia. Mas um horizonte permanente de possibilidade. Ser maioria, portanto, na docência, é tanto uma consequência quanto resistência à opressão patriarcal.

BdFRS - No campo da educação, por exemplo, 8 em 10 professores da educação básica são mulheres. Ao mesmo tempo se nota uma desvalorização, um aceno do machismo estrutural que se apresenta. Além do machismo, quando abordamos a relação de mulheres e política, há assuntos que sempre estão na pauta, como racismo e a violência. Como esses fatores aparecem nas escolas? E como superá-los?

Helenir - As escolas não são ilhas. Elas refletem e impactam o meio social no qual estão inseridas. Convivemos, portanto, com o machismo, o racismo e toda sorte de violência estrutural. Como trabalhamos, muitas vezes, com estudantes de famílias periféricas e completamente desassistidas pelo Estado, precisamos lidar com realidades bastante cruas. Por um lado, é necessário compreender e respeitar a realidade de cada aluno, mas não é possível educar sem questionar, sem estimular a dúvida e a desconstrução de pré-concepções que vêm do muro para fora da escola. A contradição faz parte do processo pedagógico. Educação é contraponto.

Também vale registrar que a desigualdade e o racismo são escancarados na distribuição dos quadros docentes e discentes. O número de alunos brancos ainda é desproporcionalmente maior, o que reflete a problemática da evasão escolar entre os estudantes mais pobres, de maioria negra. Também há um número pequeno de negros e negras lecionando no magistério.


"A desigualdade e o racismo são escancarados na distribuição dos quadros docentes e discentes", avalia Helenir / Arquivo pessoal

BdFRS - Agora com a pandemia, com as escolas fechadas, há uma sobrecarga de trabalho. Além disso a categoria está há mais de 55 meses com seu salário sem ser pago em dia, ainda há o desconto de 30%. Gostaria que nos falasse sobre isso e de outros fatores que a categoria vem enfrentando, adoecimentos, suicídios, enfim, a realidade do sistema educacional público no estado.

Helenir - O RS é a quarta economia do Brasil, mas paga um dos salários mais baixos entre todos os estados para quem trabalha no chão da escola. O último reajuste real de professores(as) e funcionários(as) a se dar em todos os níveis e classes ocorreu em 2014. Desde então, a inflação já corroeu mais de 30% do poder de compra do salário básico dos educadores. É um processo brutal de empobrecimento e desvalorização, conduzido por governos que, infelizmente, elegeram a educação e seus trabalhadores como inimigos.

Após duríssimos embates com Sartori, Eduardo Leite foi eleito para aprofundar o desmonte do Estado, a precarização e a abertura do setor público para atores privados. É um governo que gosta de se dizer democrático, mas o verniz de diálogo não durou os primeiros meses de gestão. Após continuar o massacre à categoria e não cumprir as mais básicas promessas de campanha, como pagar em dia, Leite enviou à Assembleia o mais amplo pacote de ataques ao funcionalismo e aos serviços públicos já visto no Rio Grande do Sul.


"O RS é a quarta economia do Brasil, mas paga um dos salários mais baixos entre todos os estados para quem trabalha no chão da escola" / Arquivo pessoal

Fizemos uma greve histórica, justa e heroica. Barramos parte dos retrocessos, mas fomos duramente penalizados pelo simples ato de resistir. Até hoje, em meio à pandemia, continuamos sendo descontados sem qualquer transparência, em razão dos dias de greve - apesar da recuperação das aulas e do ano letivo finalizado. Também há uma continuidade de Sartori no processo de fechamento das escolas, mesmo antes da pandemia. Agora o governador alterou radicalmente os critérios para o adicional de Difícil Acesso, concedido para pessoas que trabalham em locais distantes, periféricos ou com dificuldade de acesso, por exemplo. Na prática, muitos educadores perderam valores assombrosos com a mudança. Profissionais que atuam em escola do campo não terão mais dinheiro para chegar ao trabalho. É muito grave.

Além de toda a desvalorização, o governo não conhece limites e usa a rede estadual para fazer experimentos pedagógicos de todo o tipo durante a pandemia, sobrecarregando educadores com novas ferramentas, ordens contraditórias e procedimentos burocráticos sem fim. São pessoas que estão usando os próprios equipamentos para trabalhar e pagando a Internet com o salário parcelado, atrasado e cortado. É claro que isso afeta a saúde.

Não temos qualquer expectativa de que este governo olhe para os educadores como pessoas. Ele só vê números. E estes números ele quer reduzir para reduzir custos. Um Estado que vê educação como gasto jamais sairá da vanguarda do atraso. Não há país no mundo que se desenvolveu sem investimentos públicos vultuosos e qualificados em educação pública e nos seus trabalhadores(as). Aqui querem fazer o impossível.

BdFRS - Sendo a educação o pilar de transformação para tudo na sociedade como cambiar o modelo atual de educação, como fazê-lo mais humano, democrático, emancipado, um modelo mais próximo de Paulo Freire? O que precisamos fazer para nos distanciarmos de um futuro-presente ensino público privatizado?

Helenir - O nosso grande patrono nos deixou um legado profundamente transformador. Seu gigantismo fica ainda mais evidente neste momento em que o Brasil é governado por uma seita negacionista que tenta apagar o passado do país. O presidente foi eleito com a promessa de escolher para o MEC um ministro que usasse um “lança chamas” para apagar a memória de Paulo Freire. Eles têm muito medo desse legado porque não conseguem conceber uma educação voltada para a superação da desigualdade, uma pedagogia construída desde a visão do oprimido, de baixo para cima. Não é à toa que, além da precarização e privatização, dois mecanismos de esvaziamento político para dar lugar à ideologia neoliberal, o único projeto deste governo para a educação é a implantação de escolas cívico-militares, uma aberração autoritária e diametralmente oposta às necessidades de uma educação emancipadora.

Mas a privatização na educação é exclusão e elitização. É a forma mais segura das elites terem segurança de que os filhos dos trabalhadores terão escolas de segunda classe e, formados, servirão de mão de obra barata e servil. Talvez essa seja uma das lutas mais importantes e desafiadoras do nosso tempo e da geração que está chegando às esferas de poder. É preciso defender a todo custo a educação de qualidade como um direito universal e inalienável. O único caminho possível para um futuro melhor.


"A privatização na educação é exclusão e elitização" / Arquivo pessoal

BdFRS - Em live recente do BdFRS e Rede Soberania a senhora fez um resgate dos governos (nível federal), que mesmo não sendo suficiente, investiram na educação em comparação com o quadro desastroso que temos desde o impeachment da presidenta Dilma. Na mesma live a senhora enalteceu o papel dos profissionais ainda mais nesses tempos de pandemia. A que atribui a educação no nosso país não ter o devido reconhecimento dos gestores públicos e por uma parcela da sociedade, lembrando os ataques a Paulo Freire e outros pensadores?

Helenir - É fácil perceber a diferença dependendo dos governos e seus projetos. Com todas as limitações dos governos Lula e Dilma, a preocupação com a educação era inegável. A presidenta impeachmada condicionou 70% dos royalties do petróleo para a educação. Este era um projeto de Nação, mas sobretudo um projeto de futuro, de superação das desigualdades e das inúmeras dificuldades que hoje afetam o setor público.

Hoje, pelo contrário, o projeto é de privatização, de Estado mínimo para o povo e enorme para poucos empresários e o setor financeiro. Passa por isso também a falta de reconhecimento dos professores, a desvalorização da gestão democrática nas escolas, o ataque às próprias fundações e símbolos da educação pública, como Paulo Freire. Tudo que vem é ao contrário do que está sendo feito, ou ao menos planejado. As verbas diminuem, a EC 95 congelou os orçamentos e está matando a Saúde e a Educação de inanição, e o Fundeb, a principal fonte de recursos da educação básica no país, está literalmente no leito de morte. Sua vigência termina neste ano e não há o menor interesse do governo federal em renová-lo. É uma luta constante pela própria sobrevivência do direito à educação para todos e não somente para alguns.

BdFRS - Que sociedade teremos pós pandemia? Qual desejarias?

Helenir - Muitos dizem que após a pandemia nós teremos uma outra sociedade. Mas tenho minhas dúvidas. Aqueles que são condicionados pelo lucro e o egoísmo não mudarão. Continuaremos tendo uma sociedade dividida, onde alguns querem subjugar os outros. Gostaria que a pandemia levasse a reflexões profundas sobre o meio ambiente, a desigualdade, a falta de solidariedade - que hoje é pauta na mídia nacional, a mesma que sempre que pode prega o individualismo. Mas até neste momento de pandemia muita gente consegue ignorar preceitos mínimos de solidariedade ou demonstrar empatia pela vida, não usando máscaras ou frequentando aglomerações. Temos um presidente que trabalha pela morte do seu povo.


"Temos um presidente que trabalha pela morte do seu povo" / Arquivo pessoal

Pelo lado positivo, no entanto, a escola pública sairá fortalecida e os educadores mais valorizados aos olhos da sociedade. A falta do espaço escolar, as evidentes limitações do trabalho remoto, a necessidade do acompanhamento e do ensino presencial, estão sendo muito evidenciadas e sentidas diariamente neste período de isolamento. Mas não podemos nos enganar quanto aos nossos governantes. Estes já estão se aproveitando para passar a boiada e continuarão a fazê-lo, deixando o filet mignon para os grandes empresários e multinacionais.

Edição: Katia Marko