Covid

Após inauguração de obra com prefeito e deputados, 6 Terena morrem com sintomas no MS

Em Aquidauana (MS), evento da prefeitura e do estado pode ter sido responsável pela morte de indígenas por coronavírus

|
Lideranças Terena afirmam que evento de inauguração de estrada poderia ter sido adiado para atender recomendações da OMS - Foto: Divulgação

Em um período de apenas 24 horas, seis indígenas da etnia Terena morreram na Terra Indígena (TI) Taunay/Ipegue, em Aquidauana, no Mato Grosso do Sul. Desses, quatro já foram confirmados como casos de covid-19. Segundo o Conselho do Povo Terena, outros dois líderes — entre eles o professor Paulo Baltazar — foram transferidos para hospitais de Campo Grande e estão internados com quadro respiratório grave.

O novo coronavírus fez sua primeira vítima no território Terena no dia 14 de julho, com a morte de Onessimo Cândido, de 40 anos, da Aldeia Água Branca. Duas semanas antes, no dia 02, representantes da comunidade haviam participado da cerimônia de início das obras de pavimentação da rodovia MS-442, no trecho que liga o distrito de Taunay à BR-262 — uma demanda antiga dos Terena.

O evento organizado pelo prefeito de Aquidauana, Odilon Ribeiro (PSDB), causou aglomeração, contrariando as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Ele reuniu alguns dos principais líderes tucanos do estado, aliados do governador Reinaldo Azambuja. Entre eles, os deputados federais Beto Pereira e Rose Modesto e o presidente da Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul (Alems), Paulo Corrêa.

Entre os presentes, pelo menos um testou positivo para covid-19, o presidente da Assembleia. Sete dias depois da inauguração, Paulo Corrêa pediu afastamento da Alems após os exames confirmarem a doença.

200 indígenas no evento

Ao mesmo tempo, indígenas que estiveram no encontro começaram a relatar os primeiros sintomas. “Mais de duzentas lideranças indígenas acompanharam a inauguração”, afirma Elvis Terena, membro do Conselho do Povo Terena e morador da TI Cachoeirinha, no município vizinho de Miranda. “Depois disso, mais ou menos cinco a dez dias depois, começaram a ter problemas respiratórios”.

Ele relata que também recebeu o convite, mas optou por não participar. “Por prevenção acabamos não indo. Grande parte das autoridades participantes vieram de Campo Grande, que já tem um índice grande de infectados”.

Poupada da primeira onda da pandemia, a capital sul-mato-grossense entrou na zona de alto risco para transmissão da covid-19 desde o início do mês, quando viu os casos dispararem.

Segundo boletim da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), já são 139 casos confirmados de coronavírus entre os Terena, dos quais 53 na TI Taunay/Ipegue.

O rápido avanço da pandemia entre os Terena evidencia o colapso da saúde indígena na região. A prefeitura de Aquidauana informou que, até a última semana, havia apenas um médico e três técnicos de enfermagem da Sesai trabalhando no município, com uma população de mais de 11 mil indígenas, divididos em onze aldeias. Índice onze vezes inferior ao de um médico a cada mil habitantes recomendado pela OMS.

Prefeitura e estado 

Por causa da distância em relação aos centros urbanos, os indígenas da região adotaram bloqueios sanitários logo no início da pandemia. “Desde março, quando a OMS decretou a pandemia, as lideranças indígenas já estavam preocupadas para que o vírus não chegasse às comunidades”, afirma Elvis.

“Infelizmente, houve um despreparo do próprio governo do estado e da prefeitura, que passaram por cima da nossa decisão. O pacote da rodovia poderia ter sido lançado de outra forma, sem fazer aglomerações”.

Executor da obra, o governo do estado informou que a organização do evento foi de responsabilidade da prefeitura de Aquidauana. As fotos do evento, divulgadas tanto pelo governo estadual como pela prefeitura, mostram o prefeito Odilon Ribeiro e o secretário de Estado de Governo e Gestão Estratégica, Eduardo Riedel, com destaque semelhante durante a inauguração. A prefeitura destaca Odilon; o governo estadual, Riedel.

Sobre as medidas para contenção da covid-19 nos territórios Terena, a secretaria de Estado de Comunicação informou que mobilizou a entrega de testes e de kits de proteção e solicitou ao Ministério da Saúde, órgão responsável pela Sesai, o envio de médicos e a instalação de um hospital de campanha na TI Taunay/Ipegue. Até o fechamento da reportagem, não houve resposta do governo federal.

De Olho nos Ruralistas também entrou em contato com a prefeitura que, por meio de sua assessoria, informou que “não era esperado público” no evento, apesar da presença de deputados e outras autoridades vindas de Campo Grande. Ainda segundo a assessoria, foi instalada uma tenda próxima ao cerimonial onde os convidados mediram a temperatura e receberam álcool em gel. Na ocasião não foi reportado nenhum caso suspeito.

"Vamos invadir a aldeia e exterminar essa raça inútil"

A destruição causada pela pandemia entre os povos indígenas vem despertando reações diversas no Mato Grosso do Sul. De um lado, apoiadores — entre eles a atriz Lucélia Santos — organizam campanhas de doação. De outro, moradores de Aquidauana e Miranda usam grupos de WhatsApp para compartilhar mensagens de ódio contra os Terena.

Em um dos áudios obtidos pela reportagem do Campo Grande News, divulgados nesta quinta-feira (23), um homem chega a propor o extermínio de indígenas:

— Vamos ajuntar todo mundo. Vamos invadir a aldeia e matar todo mundo lá. Pronto. Bom que já extermina essa raça inútil do caralho.

Outra moradora defende o apartheid:

— Tem que fechar a cidade e não deixar eles virem para a cidade.

Um terceiro homem sugere:

— Já que na aldeia tem gente com Covid, eles tinham que ficar lá dentro.

Prefeito cheio de terras

O ódio aos povos originários, recurso comum na retórica do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), foi o tema de um especial do observatório, De Olho no Mato Grosso do Sul, que investigou violações de direitos humanos contra as etnias Terena, Guarani Kayowá, Guarani Mbyá e Kadiwéu no Mato Grosso do Sul.

A série do De Olho nos Ruralistas também se debruçou sobre o avanço territorial de políticos ruralistas da região, com um mapa de suas terras no estado. Entre os donos de terras estão alguns dos líderes tucanos que participaram da cerimônia de inauguração da rodovia, apontada pelo Conselho Terena como causadora do contágio.

O principal deles é o prefeito Odilon Ribeiro, que declarou à Justiça Eleitoral ser dono de 8.236 hectares em Aquidauana, o equivalente a 0,5% da área total do município. Ribeiro é o segundo prefeito com mais terras no estado, atrás apenas de Waldeli dos Santos Rosa (MDB), de Costa Rica, que declarou ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) possuir 12 mil hectares.

Membro da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), o deputado federal Beto Pereira aparece na lista com uma fazenda de 409 hectares em Terenos, a 110 quilômetros de Aquidauana. Ele é um dos defensores no Congresso da nova lei de licenciamento ambiental, que flexibiliza as condições para emissão de licença para empreendimentos agropecuários.