Rio Grande do Sul

Resistência

“O racismo é um elemento estruturante da sociedade brasileira, assim como o machismo”

A afirmação é da roteirista, diretora e produtora gaúcha Mariani Ferreira, ao falar sobre o mercado audiovisual

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Para Mariani, a perversidade do racismo revela como a sociedade funciona "negando para pessoas negras já na infância o direito a acessar determinados saberes" - Arquivo Pessoal

Quantos filmes de produtoras, diretoras e realizadoras negras você viu? Quantas estão no "pantheon" dos influentes da área? O cinema e o audiovisual em geral, assim como outros segmentos da cultura e da maioria dos nichos de atividades, é predominado por um gênero e raça especifica, homem e branco. Conforme ressalta Mariani Ferreira, nesta entrevista ao Brasil de Fato RS, o audiovisual é um lugar de disputa de poder. “Apagar a existência de realizadores negros e negras é um caminho para se manter nesse lugar de poder”, frisa.

Uma pesquisa da Ancine, de 2016, escancara essa realidade do mercado cinematográfico brasileiro. O levantamento feito pela agência, tendo como base os 142 longas-metragens brasileiros lançados comercialmente em salas de exibição no ano de 2016, mostra que são dos homens brancos a direção de 75,4% dos longas. As mulheres brancas assinam a direção de 19,7% dos filmes, enquanto apenas 2,1% foram dirigidos por homens negros. Nenhum filme em 2016 foi dirigido ou roteirizado por uma mulher negra. 

No Rio Grande do Sul, destaca Mariani, o cenário é ainda mais crítico. “Segundo levantamento parcial feito pelo Coletivo Macumba Lab, apenas seis longas foram feitos por pessoas negras no estado. Dessas obras, apenas duas receberam incentivos públicos. Ou seja, os recursos que hoje estão sendo cortados da produção cultural, nunca chegaram na mão de pessoas negras”.

O racismo que permeia a sociedade permeia o audiovisual e constantemente vem à tona. Como ocorrido no dia 3 de julho, quando se revelou em um debate sobre o filme Inverno (1983), de Carlos Gerbase, da Associação Profissional de Técnicos Cinematográficos do Rio Grande do Sul (APTC-RS). Na ocasião, a produtora Luciana Tomasi proferiu a seguinte frase: “Não adianta a gente tentar fazer um filme da senzala, entende? (...) Eu inclusive tenho sangue francês (...) Cada um faz [filme] sobre a sua história”. Posteriormente, tanto a produtora quanto a APTC vieram a público e lamentaram o ocorrido. 

“Desde muito cedo, entendemos que existem espaços que não são nossos. Existe um determinado olhar e postura direcionado a pessoas negras nesses espaços de poder dominados pela branquitude. A fala racista da Luciana Tomasi na live é apenas mais um exemplo disso”, pontua a cineasta, que ressalta que é preciso, antes de tudo, entender que com racismo não existe democracia. “O campo progressista precisa fazer do combate ao racismo a pauta prioritária (...) Mudar o imaginário embranquecido e racista  da nossa sociedade só é possível se realizadores negros e negras tiverem a oportunidade de contar suas histórias”, afirma.

Mariani Ferreira é roteirista, diretora e produtora. Começou sua carreira profissional como trabalhadora doméstica e operária de fábrica de calçados. Estudou jornalismo, foi crítica de cinema e redatora e diretora de publicidade. Seu filme de estreia,  o curta-metragem de ficção “Léo", foi exibido em diversos festivais, como os prestigiados Festival Del Nuevo Cine Latino Americano de La Havana e o Festival Internacional de Cinema de Guadalajara. Também é produtora executiva e roteirista do documentário “O Caso do Homem Errado”. É roteirista da série “Necrópolis”, sitcom adquirida e exibida pela Netflix a partir de março de 2019. Também é uma das criadoras do argumento da série “Os Infratores”, comprado e desenvolvido pela TV Globo em 2018. Ainda atuou por dois anos como curadora do FRAPA - o maior  festival de roteiro da América Latina. Hoje trabalha como roteirista na TV Globo. É membro fundadora do Coletivo Macumba Lab. 

Veja abaixo a entrevista completa 


"É preciso que a branquitude começa a tomar a responsabilidade que lhe cabe" / Divulgação/Telescópiofilmes

Brasil de Fato RS - Como tu descreverias o cinema gaúcho atualmente?

Mariani Ferreira - É um cinema super elitizado e concentrado nas mãos de um grupo muito pequeno de pessoas. É um cinema branco-centrado e porto-centrado. 

BdFRS - Como tu avalias o machismo e o racismo na cultura gaúcha e brasileira? Como ele se manifesta?

Mariani -  O racismo é um elemento estruturante da sociedade brasileira, assim como o machismo. Ele se manifesta em todos os aspectos da nossa organização social. Por isso, um jovem negro é morto a cada 23 minutos no país. Por isso também,  a pesquisa realizada pela Ancine apontou que, em 2016, nenhum filme realizado no Brasil foi roteirizado ou dirigido por mulher negra. Existe uma relação direta entre a construção de um imaginário branco e racista, que retrata o negro de forma subalternizada e estereotipada, e o genocídio da juventude negra no País. 
 

BdFRS - No dia 3 houve o episódio lamentável da live e a fala clara de racismo. Para além desse fato, que outras situações semelhantes tu já passastes? 
 
Mariani - A gente enfrenta o racismo desde muito cedo, sob as mais diversas manifestações. A primeira vez que entendi o que era racismo foi quando uma professora de música na infância disse que "não valia a pena" me ensinar. A perversidade dessa atitude é muito sintomática de como nossa sociedade funciona, negando para pessoas negras já na infância o direito a acessar determinados saberes.

Quando decidi trabalhar com cinema, enfrentei o deboche e descrença de uma das editoras do jornal onde eu trabalhava. Quando fui cobrir como repórter o Festival de Cinema de Gramado uma crítica de cinema branca não acreditou que eu fosse repórter. Essa são apenas algumas situações. Mas sei também que, na nossa sociedade pigmentocrática, mulheres negras de pele mais escura que a minha enfrentam violências muito maiores.  O Brasil  é uma máquina de esmagar corpos negros, a fala racista da Luciana Tomasi na live é apenas mais um exemplo disso. 

 
BdFRS - Em uma matéria do Sul 21, tu faz a seguinte afirmação: “Essa ingenuidade da branquitude é que nos mata”, queria que tu falasse mais sobre isso?

Mariani - Essa frase foi dita por uma realizadora paulista,  Renata Martins (Sem Asas, Malhação Viva a Diferença, Empoderadas, Aquém das Nuvens), uma das mulheres que mais me inspira no cinema brasileiro. Essa frase diz respeito ao lugar de conforto e privilégio da branquitude que não procura entender sobre relações raciais, sobre privilégios, sobre racismo. Desse lugar de privilégio, a branquitude recorre à ignorância, a desculpas como "transe coletivo", para escapar da responsabilidade de desconstruir um sistema racista e desigual criado por ela mesma. Desse lugar de conforto, uma socialite pode deixar uma criança negra sozinha num elevador, se furtando a culpa pela morte dessa criança. Desse lugar de conforto, uma diretora branca pode afirmar que não existe um Spike Lee e uma Ava Durvney no Brasil, apagando a existência de dezenas de realizadores negres. Desse lugar de conforto, a branquitude pode passar anos no poder sem priorizar o combate ao racismo estrutural que está provocando o genocídio indígena e negro no país. Mas, como diz Jurema Wernerck, o tempo de alegar ignorância e ingenuidade acabou. É preciso que a branquitude comece a tomar a responsabilidade que lhe cabe. 

Se ficarmos esperando a boa vontade da branquitude, jamais vamos passar de posições subalternas em produções cheias de problemas comandados por brancas e brancos. 
 

BdFRS -Ao ser lançada a série sobre Marielle Franco, Antonia Pelegrino fez a seguinte declaração sobre a escolha de José Padilha para a direção, dizendo que o Brasil ainda não formou um Spike Lee: “Se tivesse um Spike Lee, uma Ava DuVernay”. Dados da Ancine de 2016 apontam o abismo que há no audiovisual quando se trata da questão de gênero, e um abismo ainda maior quando falamos de raça. A que atribui isso?

Mariani - A Antonio Pelegrino e sua tentativa de apagar realizadoras negras brasileiras não é um fato isolado. Outras diretoras  brancas "feministas", mulheres adoram andar com um livro de Angela Davis embaixo do braço, fazem pouco ou nada para mudar essa estrutura porque se beneficiam diretamente dela. No Brasil não existe um Spike Lee, assim como não existe um Fellini, um Scorsese, um Copola. A branquitude abraça a própria mediocridade, celebrando em festivais e em sessões vazias nos grandes cinemas uma narrativa que já morreu. Enquanto isso, tenta apagar a obra de pessoas como Renata Martins, Juliana Vicente, Carol Rodrigues, Glenda Nicácio, Camila de Moraes, Viviane Ferreira, Jessica Queiroz, Juliana Balhego, Gautier Lee, Kaya Rodrigues e tantas outras diretoras que estão revolucionando nosso audiovisual.  O audiovisual é um lugar de disputa de poder. Apagar a existência de realizadores negros e negras, é um caminho para se manter nesse lugar de poder.


"Como fazer "Atlanta" ou "Pantera Negra" com uma sala de roteiro cheia de pessoas brancas? Precisamos ocupar esses lugares de comando em grandes produções" / Divulgação

BdFRS - Para além da produção e visibilidade nacional, há também um desconhecimento praticamente total sobre as produções estrangeiras, como por exemplo, o cinema africano. Podemos afirmar que o desinvestimento na produção feita por realizadores negros é mundial? Quais as principais diferenças do que acontece lá fora e aqui no país, e em especial no estado?

Mariani - Existe na sociedade ocidental branca um modus operandi de invisibilizar realizadores negres, especialmente mulheres negras.   Não é à toa que Ancine passa a sofrer ataques violentos dos governos de direita ao instituir cotas em seus editais. No Rio Grande do Sul, o cenário é ainda mais crítico. Segundo levantamento parcial feito pelo Coletivo Macumba Lab, apenas seis longas foram feitos por pessoas negras no estado. Dessas obras, apenas duas receberam incentivos públicos. São recursos que nunca chegaram nas mãos de pessoas negras.  

BdFRS - Ao nos debruçarmos sobre a participação das mulheres negras no cinema, temos o caso das cineastas dos EUA, como a Ava Duvernay que fez Selma. No Brasil, há uma produção que não é vizibilizada (17 mulheres negras que arrasam no audiovisual latino-americano). Como vês a atuação nesses dois universos, americano e brasileiro?

Mariani - Nos EUA, o cenário ainda é muito desigual, mas já caminhou bastante em relação ao Brasil. Uma das grandes diferenças lá é o acesso. Mulheres negras vêm comandando grandes produções no cinema e TV norte-americanos, sendo chefes de salas de roteiro, showrunners, diretoras, executivas de canais. No Brasil, esse é um espaço que ainda precisa ser conquistados por nós. E quando eu digo conquistado é no sentido de "ocupação". Por que a mesma branquitude brasileira que sonha em fazer "Atlanta" no país, não está disposta a investir em um criador negro. Como fazer "Atlanta" ou "Pantera Negra" com uma sala de roteiro só com brancos? 
 
BdFRS - Maju Coutinho, quando passou ao vídeo na TV Globo, foi violentamente atacada nas redes. Porque a imagem do negro no Brasil, quando ocupa um lugar que até então não ocupava, provoca reação tão negativa?

Marinani - Por que a branquitude não quer abrir dos privilégios que detém. A hegemonia branca na grande mídia é um exemplo desses privilégios. 
 
BdFRS -Neste ano, impulsionadas pelo ocorrido nos EUA, ocorreram inúmeras manifestações antirracistas e antifascistas, mesmo em meio à pandemia. Contudo, os ataques racistas continuam nas redes sociais, como observado em lives, em diversos segmentos. Como mudar essa cultura, reverter essa lógica?

Mariani - É preciso ações mais profundas que postar um quadrado preto nas redes sociais. A educação precisa ser a base. A aplicação Lei 10.639/03 é um caminho. Preservar a memória, história e cultura africana e afro-brasileira e indígena. No âmbito cultural, além de possibilitar o acesso a formação, é preciso democratizar a distribuição dos recursos que financiam nosso mercado. Realizar a formação de críticos e curadores que possam avaliar da maneira correta as obras feitas por pessoas negras. E, antes de tudo, entender que com racismo não existe democracia, como afirma a Coalizão Negra por Direitos. O campo progressista precisa fazer do combate ao racismo a pauta prioritária. Se o Brasil não fosse racista, Bolsonaro não teria sido eleito. Ou a esquerda e o campo progressista entendem que nada se discute antes de raça ou não sairemos do lugar.

Com racismo não existe democracia

BdFRS - Que mudanças precisam ser feitas para superar essa invisibilidade da produção e imagem de artistas e realizadores negros, negras, negrxs?

Mariani - Democratizar o acesso a formação para pessoas negras, indígenas, LGBTQIA+, PDCs. Possibilitar o acesso a recursos econômicos e materiais, realizar a formação de críticos e curadores. A indústria também precisa entender a importância da formação de público e democratização do acesso ao cinema. Enquanto o ingresso  custar 50 reais, ir ao cinema será privilégio de poucos. 
 
BdFRS - Qual a importância de projetos como Macumba LaB?

Mariani - Grupos como o Macumba Lab, Griottes Narrativas, Apan e tantos outros, são caminhos para a gente se organizar e buscar juntos as mudanças  para o nosso mercado.  A única saída  para a profunda crise que vivemos hoje é coletiva. 


"Não é à toa que a desigualdade entre brancos e negros é a maior do país. O nosso cinema é um retrato disso" / Divulgação

BdFRS - Desde o golpe contra a presidenta Dilma tem se apontado uma falta de investimento no audiovisual, desmantelamento da agência e um descaso para com o setor. Como vês esse cenário?

Mariani - Os ataques à Ancine, a possibilidade de extinção do Fundo Setorial Audiovisual (FSA), de extinção da Lei da TV Paga, o abandono da Cinemateca Brasileira, a censura em obras audiovisuais, como a que ocorreu no Edital TVs Públicas 2018. Tudo isso coloca em cheque nossa produção audiovisual e a própria Democracia e os mais afetados são os realizadores negres. Se o FSA for extinto, quem vai seguir fazendo cinema no Brasil? Narrativas emergentes, pretas, trans, periféricas terão espaço? 
 

BdFRS -  O Brasil não tem clássicos de seu cinema onde o negro é figura principal roteirizados e dirigidos por negros/as. Há muitos exemplos como Palmares, Chica da Silva, etc. Tais filmes seriam diferentes se dirigidos por negros?

Mariani - Certamente as narrativas seriam completamente diferentes se pessoas negras tivessem voz e comando nessas produções. É no audiovisual que parte do nosso imaginário é construído. Hoje esse imaginário é branco e racista.  Quando Griffith lançou "O Nascimento de uma Nação", a Ku Klux Klan, que estava quase extinta, ganhou milhões de membros. Só por esse fato, conseguimos medir o poder que as histórias têm de construir nosso mundo. Por isso, realizadores negros e negras precisam ter o direito de contar suas histórias. Nossas narrativas precisam ser ouvidas para que o imaginário da sociedade mude. 

BdFRS - Quando os/as negros/as tiverem pleno acesso aos recursos para fazer cinema no Brasil, que cinema farão? O que apontarão que não foi apontado até agora?

Mariani - O cinema negro brasileiro sempre existiu e sempre teve uma potência narrativa gigante. Odilon Lopes com "Um É Pouco Dois é Bom" fez o que Jordan Peele vai fazer em "Corra" quase 50 anos antes. Temos uma nova geração de cineastas muito vibrantes, Gabriel Martins, Ulisses Arthur, André Novais, Renata Martins, Glenda Nicácio, Camila de Moraes, Juliana Balhego, Gautier Lee. São narrativas que imprimem o nosso olhar sobre o mundo e mostram novas possibilidades de existência para pessoas negras, normalizar nossa presença em todos os espaços.

BdFRS - Ao falarmos de racismo no Brasil, seria correto afirmar que para a comunidade negra o Sul do Brasil é pior, uma vez que aqui são minoria? O Sul é mais racista ainda do que o restante do Brasil?

Mariani - O Sul é extremamente racista. O evento mais celebrado no Estado é a Revolução Farroupilha. Guerra civil que terminou com o massacre dos Lanceiros Negros e a manutenção do regime escravocrata. Nosso hino é racista, a louvação da migração europeia também. No Sul a história negra e indígena é apagada numa tentativa de vender para o restante do país que o Estado começou com os centauros dos pampas e os imigrantes brancos europeus. Não é à toa que a desigualdade entre brancos e negros é a maior do país. O nosso cinema é um retrato disso. 


" Existe uma relação direta entre a construção de um imaginário branco, que retrata o negro de forma subalternizada e estereotipada no audiovisual brasileiro" / Arquivo Pessoal

BdFRS - E por último, indicações de filmes, conteúdo audiovisual sobre o tema...

Mariani - O Caso do Homem Errado, de Camila de Moraes;
Quero Ir para Los Angeles, Juliana Balhego;
Sem Asas, Renata Martins;
Café com Canela, Glenda Nicácio;
Temporada, André Novais;
No Coração do Mundo, Gabriel Martins;
Peripatético, Jessica Queiroz;
188, de Gautier Lee (filme que está sendo finalizado) Link para o financiamento coletivo da produção: https://benfeitoria.com/188ofilme;
Ilhas de Calor, de Ulisses Arthur;
A Negação do Brasil, Joel Zito Araújo;
E principalmente UM É POUCO DOIS É BOM, de Odilon Lopes.

Edição: Marcelo Ferreira